Lembro-me de uma frase, acho que a li em
casa dos meus avós (“Um dia, quando eu morrer, não quero choros nem gritos…”),
estava numa jarra pendurada na cozinha, sempre pensei, um dia, retirar dali a
jarra para ler o resto da frase, ocultado pela parede, nunca o fiz, guardei
para um amanhã que nunca amanheceu, o que se seguiria a “Um dia, quando eu
morrer, não quero choros nem gritos…”?
Não me lembro do meu pai, nem da voz,
sempre o que perdura em nós depois de tudo, dos gestos, da forma de andar, de
ser, sobretudo de quem ele afinal era, nada, às vezes, na escola, talvez pela
surpresa, talvez por simples crueldade, os colegas “Ao menos, lembras-te do
nome? Ou nem isso?” Do nome, sim, e do rosto também, até há pouco, volta e
meia, dava por mim a abrir uma caixa de sapatos onde a minha mãe guarda as
fotos, há duas lá do meu pai, numa está abraçado à minha mãe, noutra comigo ao
colo, e é tudo… Há quem ache pouco, mas, para mim, é tanto… Que fazer? Confesso
que não visito a caixa de sapatos há muito, não lhe sinto a falta, estou
naquela idade de virar costas a tudo, talvez seja por isso, a minha mãe quase
diariamente “Estás insuportável! Entraste mesmo na fase do armário…”, certa
tarde, ao regressar a casa, via-a dentro de um carro com um sujeito, ele em
gestos lentos, numa artificialidade teatral, ela com uma alegria incontida,
percebi que a sua carência se desmoronava, sempre lhe reconheci uma
indisfarçável carência da palavra ao acto, quantas vezes, à noite, na companhia
da caixa de sapatos, aberta, na cama, cheguei a ouvi-la soluçar, como se
pedisse ao passado que corresse para a abraçar, nesses momentos, recolhia-me no
meu quarto e por aí ficava, nunca falámos do conteúdo daquela caixa de sapatos,
talvez por pudor, talvez pelo receio de uma carência demasiada, talvez por uma
competição velada para saber quem primeiro abraçava o passado…
Certa tarde, estava a três meses de
terminar o liceu, o sujeito do carro dentro de casa com a minha mãe, desta vez,
ambos com gestos apressados e espontâneos, estavam de saída, não me escapou os
cabelos molhados, pois, a carência sempre se desmoronara, até que a presença
dele se tornou uma constante, os meus avós, primeiro, circunspectos, afinal,
eram os principais investidores do nosso lar, a minha mãe, digamos, não
acertava com a vocação profissional, daí que coleccionasse empregos e alguns
investimentos, falhados, é certo, mas ainda assim onerosos, o que mais tenho
presente é o café, talvez por ser o último, era relativamente perto de nossa
casa, tinha até uma boa esplanada, contudo, não chegou a oito meses, no último
momento conseguiu trespassá-lo, mas sem rever grande parte do investimento, a
certa altura, fechou-se em casa, falou em depressão, as duas empregadas
impacientes, os atrasos nos seus ordenados passaram a norma, numa manhã
solarenga de Julho, não apareceram, o café fechado, foi uma vizinha, a caminho
do mercado, que deu conta, ao saber disto, vi-a ir até à casa-de-banho, engolir
metade de uma lamela (soube, mais tarde, das propriedades dos ansiolíticos e
dos antidepressivos), correr o estore do quarto e deitar-se, os meus avós, uma
vez mais, acorreram a solucionar ordenados em atraso, metades de lamelas e
estores corridos… Mas, desta vez, não sei porquê, percebi-lhes uma singular
prostração face ao sujeito do carro, como se aquela paisagem, de cabelos
molhados, lhes fosse familiar, daí a súbita imobilidade…
De facto, a presença do sujeito do carro
tornou-se demasiado constante, ao ponto de, num domingo à tarde, entrar munido
de duas malas, perante aquele quadro, só me ocorreu pensar que a minha mãe
desistira definitivamente de abraçar o passado, fiquei para ali, no sofá,
distante da tristeza e da alegria, a estranhar-me pela súbita indiferença com
que assistia a tudo, nem me levantei para o cumprimentar, limitei-me a sorrir-lhe
de onde estava, não podia mais, não queria mais… Desde aquelas duas malas, os
meus avós subtraíram-se, não percebi o porquê, teve de me ser apresentado, foi
o tempo quem se encarregou de tal, apesar de tudo, os primeiros tempos sem nada
a registar, o único facto a caixa de sapatos que permaneceu num abandono de
sombras debaixo da cama, sem dúvida, a minha mãe desistira definitivamente (?)
de abraçar o passado…
Certo dia, acho que de fim-de-semana,
gritos logo de manhã, o almoço silencioso, mais gritos de tarde, não sei porquê
lembrei-me de que não os via sair de cabelos molhados há algum tempo, os gritos,
lá por casa, passaram a regra, do telefone à caixa-do-correio tudo passava pelo
crivo inquisitorial do sujeito do carro, a vida da minha mãe desenrolava-se sob
o seu olhar, decidi, neste ponto, ir para casa dos meus avós. Certa tarde, uma
vizinha, regressava eu da escola, atravessa-se no meu caminho, insiste para que
a acompanhe até casa, eu, primeiro, admirada com aquele súbito interesse por
mim, depois, algo no meu sentir a agitar-se e uma trémula questão a brotar-me
“Passa-se alguma coisa…? Foi com a minha mãe…?” Ela baixou os olhos, estava
tudo dito.
Cheguei a vê-lo, ainda nesse dia, dentro
do carro da polícia. Depois disso, só me interessou a pena, chegou a pouco mais
de uma dezena de anos… A minha foi perpétua, desde então, não há semana em que
não visite a caixa de sapatos, abro-a e disponho as fotos por cima da colcha:
fico a olhá-las e, por vezes, lembro-me, não sei porquê, dos velhos nos jardins
da cidade, entre pombos ávidos e sombras indolentes, em conversas do ontem para
calar a dor do hoje, de vez em quando, fecham os olhos, numa súplica muito sua,
para que o passado os abrace, nem que seja por menos de um minutinho… Há quem
ache pouco, mas, para mim, é tanto…

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