Livros do Escritor

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sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Da arte de viver

 


Lembro-me de uma frase, acho que a li em casa dos meus avós (“Um dia, quando eu morrer, não quero choros nem gritos…”), estava numa jarra pendurada na cozinha, sempre pensei, um dia, retirar dali a jarra para ler o resto da frase, ocultado pela parede, nunca o fiz, guardei para um amanhã que nunca amanheceu, o que se seguiria a “Um dia, quando eu morrer, não quero choros nem gritos…”?

Não me lembro do meu pai, nem da voz, sempre o que perdura em nós depois de tudo, dos gestos, da forma de andar, de ser, sobretudo de quem ele afinal era, nada, às vezes, na escola, talvez pela surpresa, talvez por simples crueldade, os colegas “Ao menos, lembras-te do nome? Ou nem isso?” Do nome, sim, e do rosto também, até há pouco, volta e meia, dava por mim a abrir uma caixa de sapatos onde a minha mãe guarda as fotos, há duas lá do meu pai, numa está abraçado à minha mãe, noutra comigo ao colo, e é tudo… Há quem ache pouco, mas, para mim, é tanto… Que fazer? Confesso que não visito a caixa de sapatos há muito, não lhe sinto a falta, estou naquela idade de virar costas a tudo, talvez seja por isso, a minha mãe quase diariamente “Estás insuportável! Entraste mesmo na fase do armário…”, certa tarde, ao regressar a casa, via-a dentro de um carro com um sujeito, ele em gestos lentos, numa artificialidade teatral, ela com uma alegria incontida, percebi que a sua carência se desmoronava, sempre lhe reconheci uma indisfarçável carência da palavra ao acto, quantas vezes, à noite, na companhia da caixa de sapatos, aberta, na cama, cheguei a ouvi-la soluçar, como se pedisse ao passado que corresse para a abraçar, nesses momentos, recolhia-me no meu quarto e por aí ficava, nunca falámos do conteúdo daquela caixa de sapatos, talvez por pudor, talvez pelo receio de uma carência demasiada, talvez por uma competição velada para saber quem primeiro abraçava o passado…

Certa tarde, estava a três meses de terminar o liceu, o sujeito do carro dentro de casa com a minha mãe, desta vez, ambos com gestos apressados e espontâneos, estavam de saída, não me escapou os cabelos molhados, pois, a carência sempre se desmoronara, até que a presença dele se tornou uma constante, os meus avós, primeiro, circunspectos, afinal, eram os principais investidores do nosso lar, a minha mãe, digamos, não acertava com a vocação profissional, daí que coleccionasse empregos e alguns investimentos, falhados, é certo, mas ainda assim onerosos, o que mais tenho presente é o café, talvez por ser o último, era relativamente perto de nossa casa, tinha até uma boa esplanada, contudo, não chegou a oito meses, no último momento conseguiu trespassá-lo, mas sem rever grande parte do investimento, a certa altura, fechou-se em casa, falou em depressão, as duas empregadas impacientes, os atrasos nos seus ordenados passaram a norma, numa manhã solarenga de Julho, não apareceram, o café fechado, foi uma vizinha, a caminho do mercado, que deu conta, ao saber disto, vi-a ir até à casa-de-banho, engolir metade de uma lamela (soube, mais tarde, das propriedades dos ansiolíticos e dos antidepressivos), correr o estore do quarto e deitar-se, os meus avós, uma vez mais, acorreram a solucionar ordenados em atraso, metades de lamelas e estores corridos… Mas, desta vez, não sei porquê, percebi-lhes uma singular prostração face ao sujeito do carro, como se aquela paisagem, de cabelos molhados, lhes fosse familiar, daí a súbita imobilidade…

De facto, a presença do sujeito do carro tornou-se demasiado constante, ao ponto de, num domingo à tarde, entrar munido de duas malas, perante aquele quadro, só me ocorreu pensar que a minha mãe desistira definitivamente de abraçar o passado, fiquei para ali, no sofá, distante da tristeza e da alegria, a estranhar-me pela súbita indiferença com que assistia a tudo, nem me levantei para o cumprimentar, limitei-me a sorrir-lhe de onde estava, não podia mais, não queria mais… Desde aquelas duas malas, os meus avós subtraíram-se, não percebi o porquê, teve de me ser apresentado, foi o tempo quem se encarregou de tal, apesar de tudo, os primeiros tempos sem nada a registar, o único facto a caixa de sapatos que permaneceu num abandono de sombras debaixo da cama, sem dúvida, a minha mãe desistira definitivamente (?) de abraçar o passado…

Certo dia, acho que de fim-de-semana, gritos logo de manhã, o almoço silencioso, mais gritos de tarde, não sei porquê lembrei-me de que não os via sair de cabelos molhados há algum tempo, os gritos, lá por casa, passaram a regra, do telefone à caixa-do-correio tudo passava pelo crivo inquisitorial do sujeito do carro, a vida da minha mãe desenrolava-se sob o seu olhar, decidi, neste ponto, ir para casa dos meus avós. Certa tarde, uma vizinha, regressava eu da escola, atravessa-se no meu caminho, insiste para que a acompanhe até casa, eu, primeiro, admirada com aquele súbito interesse por mim, depois, algo no meu sentir a agitar-se e uma trémula questão a brotar-me “Passa-se alguma coisa…? Foi com a minha mãe…?” Ela baixou os olhos, estava tudo dito.

Cheguei a vê-lo, ainda nesse dia, dentro do carro da polícia. Depois disso, só me interessou a pena, chegou a pouco mais de uma dezena de anos… A minha foi perpétua, desde então, não há semana em que não visite a caixa de sapatos, abro-a e disponho as fotos por cima da colcha: fico a olhá-las e, por vezes, lembro-me, não sei porquê, dos velhos nos jardins da cidade, entre pombos ávidos e sombras indolentes, em conversas do ontem para calar a dor do hoje, de vez em quando, fecham os olhos, numa súplica muito sua, para que o passado os abrace, nem que seja por menos de um minutinho… Há quem ache pouco, mas, para mim, é tanto…

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