E é assim… Pois, sabe como é? A vida é
isto mesmo! Um dia estamos lá em cima, e, de repente, caímos. Não há nada a
fazer, temos é de nos levantar de novo e caminhar, custa, bem sei, mas não
temos outra opção. Você, hoje, olha para mim e não imagina quanta gente tive à
minha responsabilidade. É que não imagina mesmo! Eu era o responsável pelo
sector do pessoal! Quase duas centenas de pessoas, isto só no distrito de
Lisboa. Agora pense a nível nacional quantas seriam, pois é… Sabe, sinto falta
daquilo, embora não fosse feliz. É curioso, não é? Sentir falta de algo que não
nos traz felicidade, não sei como o dizer, hoje só me resta olhar o vazio de
frente, naquela altura apenas o sentia andar à minha volta, talvez fosse isso,
mas nunca o tinha enfrentado, muito menos olhos nos olhos como agora o faço. E
olhe que não é fácil, nada fácil mesmo… Costuma-se dizer para aí que só damos
valor às coisas quando as perdemos, eu repito, para quem me quiser ouvir, que
sinto falta daquilo, embora não fosse feliz. Pois, como lhe tinha dito,
sentia-o andar à minha volta (sim, o vazio), a sucessão de dias, invariável, o
despertar sem sequer interromper um sonho (há quanto não me habitam sonhos?),
logo olhos no relógio, desde então, senhor e servo estipulados, ela ainda
ficava a dormir, nunca soube se ao acordar interrompia sonhos, também não soube
encontrar essa questão para lhe colocar, a lentidão demasiada e cinzenta do
trânsito, uma repetição obstinada de um ontem feito hoje, por vezes, e foram
tantas, socorria-me de um calendário para me saber, por fim, o edifício, de
tijolo, que nos engolia durante todo o dia que soava a uma existência, acho,
ainda hoje, que uma parte da minha alma por ali ficou, sabe, é estranho, mas
aquilo, de facto, engolia-nos, sempre alguma coisa por resolver, a vertigem da
produção, olhos que não víamos, mas sabíamos que controlavam cada nosso
movimento, apesar de tudo, e pelo que ouvia, o tipo nem era mau de todo,
entretanto, o tempo caminhou, deu para nos sustentarmos, para pagar a casa, um
carrito em segunda mão, ao Domingo íamos até Cascais comer um gelado, sabia o
quanto ela gostava deste ritual, por norma, nessas ocasiões, envergava o seu
mais recente vestido, até o passava de véspera, a seguir ao gelado, um passeio
pelo paredão, nos últimos meses, é bem verdade, uma história cansada, isto,
aquilo, os chineses, não vale a pena, ainda hoje, diante de mim, a cancela para
baixo e a sirene calada… Durante mais de trinta anos, quando a sirene nos
mandava trabalhar, eu já no meu posto. Sabe, orgulho-me particularmente disto,
pensa que alguém deu valor? Acho que nem os tijolos se recordam de tal… A vida
é isto: no fim, nem as pedras se vão lembrar de nós. Quando, lá por casa, o mês
passou a durar mais, e eu próximo como nunca da Matemática, ela a afastar-se, a
criticar a minha apatia, como se algum leme ao meu alcance, enfim, todas as
manhãs fazia questão de me acordar, ainda gritava “Se eu vou trabalhar, ao
menos acorda e finge que vais fazer alguma coisa”, às vezes, a dor vem de tanto
lado que não sabemos o que nos dói mais, é um pouco isto, sem dúvida, durante
mais de trinta anos respirámos lado a lado, e hoje, diante de mim, uma
estranha… A vida é isto: no fim, nem as pedras se vão lembrar de nós. Muito
subterraneamente, comecei a perceber onde íamos desaguar. Foi num Domingo, de
tarde, não sei porquê, mas cada dia tem o seu próprio respirar, e o Domingo tem
qualquer coisa de uma eternidade silenciosa, é estranho, bem sei, mas as
sombras parecem colar-se ao chão, como se gritassem bem alto, na sua imobilidade,
os sonhos que cada um enterrou… E é assim… Pois, sabe como é? A vida é isto
mesmo! Um dia estamos lá em cima, e, de repente, caímos. Não há nada a fazer,
temos é de nos levantar de novo e caminhar, custa, bem sei, mas não temos outra
opção. Você, hoje, olha para mim e não imagina quanta gente tive à minha
responsabilidade. Mas, dizia eu, foi num Domingo de tarde, o nosso carrito já
partira em busca de uma terceira mão, Cascais agora mais longe, eu sentado à
mesa com a Matemática, ela, de repente, da ombreira da porta, “Lamento, mas não
posso mais”, virei-me, percebi-lhe uma mala em cada mão, sabe, estava já tão
por terra que nem tentei, mesmo que, não conseguia, como se, num recanto de
mim, uma voz sussurrasse “deixa-a ir”, como se percebesse a inevitabilidade de
tal, o acontecer prévio ao ser, tudo sobreveio com uma lucidez dilacerante,
parecia que me sentara no monte mais longínquo que o meu pensamento conseguira
alcançar, daí via-me às voltas com a Matemática, não a da sobrevivência,
pousada no tampo da mesa, mas a do orgulho que me fazia permanecer sentado,
imóvel, a maquilhar a surpresa e a dor imensas por aquelas malas, por “Lamento,
mas não posso mais”, por ser Domingo, de tarde, e o Domingo tem qualquer coisa
de uma eternidade silenciosa, é estranho, bem sei, contudo, as sombras parecem
colar-se ao chão, como se gritassem bem alto, na sua imobilidade, os sonhos que
cada um enterrou… E tudo aconteceu sob a ombreira da porta. Se, ao menos, ainda
as chaves, do carrito em segunda mão, pelo meu bolso, podia levantar-me,
dizer-lhe “Espera! Põe o teu vestido, sim, esse mesmo, o mais recente, está
passado desde ontem, e vamos até Cascais, comer um gelado, a seguir, damos um
passeio pelo paredão, eu sei o quanto gostas deste ritual…”, ou será que me
enganei? Tem razão, o que lá vai, lá vai, mas sabe, o mais importante, a certa
altura, é que haja em nós algumas certezas, e o olhar para trás permita que o
pensar do hoje repouse em lugares do ontem, uns chamam a isso memórias. Já não
seria mau. O que lhe parece? Acha pouco? Para mim, é o suficiente. Sabe, a vida
é isto: no fim, nem as pedras se vão lembrar de nós.

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