Livros do Escritor

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sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Parece que foi ontem

 


E é assim… Pois, sabe como é? A vida é isto mesmo! Um dia estamos lá em cima, e, de repente, caímos. Não há nada a fazer, temos é de nos levantar de novo e caminhar, custa, bem sei, mas não temos outra opção. Você, hoje, olha para mim e não imagina quanta gente tive à minha responsabilidade. É que não imagina mesmo! Eu era o responsável pelo sector do pessoal! Quase duas centenas de pessoas, isto só no distrito de Lisboa. Agora pense a nível nacional quantas seriam, pois é… Sabe, sinto falta daquilo, embora não fosse feliz. É curioso, não é? Sentir falta de algo que não nos traz felicidade, não sei como o dizer, hoje só me resta olhar o vazio de frente, naquela altura apenas o sentia andar à minha volta, talvez fosse isso, mas nunca o tinha enfrentado, muito menos olhos nos olhos como agora o faço. E olhe que não é fácil, nada fácil mesmo… Costuma-se dizer para aí que só damos valor às coisas quando as perdemos, eu repito, para quem me quiser ouvir, que sinto falta daquilo, embora não fosse feliz. Pois, como lhe tinha dito, sentia-o andar à minha volta (sim, o vazio), a sucessão de dias, invariável, o despertar sem sequer interromper um sonho (há quanto não me habitam sonhos?), logo olhos no relógio, desde então, senhor e servo estipulados, ela ainda ficava a dormir, nunca soube se ao acordar interrompia sonhos, também não soube encontrar essa questão para lhe colocar, a lentidão demasiada e cinzenta do trânsito, uma repetição obstinada de um ontem feito hoje, por vezes, e foram tantas, socorria-me de um calendário para me saber, por fim, o edifício, de tijolo, que nos engolia durante todo o dia que soava a uma existência, acho, ainda hoje, que uma parte da minha alma por ali ficou, sabe, é estranho, mas aquilo, de facto, engolia-nos, sempre alguma coisa por resolver, a vertigem da produção, olhos que não víamos, mas sabíamos que controlavam cada nosso movimento, apesar de tudo, e pelo que ouvia, o tipo nem era mau de todo, entretanto, o tempo caminhou, deu para nos sustentarmos, para pagar a casa, um carrito em segunda mão, ao Domingo íamos até Cascais comer um gelado, sabia o quanto ela gostava deste ritual, por norma, nessas ocasiões, envergava o seu mais recente vestido, até o passava de véspera, a seguir ao gelado, um passeio pelo paredão, nos últimos meses, é bem verdade, uma história cansada, isto, aquilo, os chineses, não vale a pena, ainda hoje, diante de mim, a cancela para baixo e a sirene calada… Durante mais de trinta anos, quando a sirene nos mandava trabalhar, eu já no meu posto. Sabe, orgulho-me particularmente disto, pensa que alguém deu valor? Acho que nem os tijolos se recordam de tal… A vida é isto: no fim, nem as pedras se vão lembrar de nós. Quando, lá por casa, o mês passou a durar mais, e eu próximo como nunca da Matemática, ela a afastar-se, a criticar a minha apatia, como se algum leme ao meu alcance, enfim, todas as manhãs fazia questão de me acordar, ainda gritava “Se eu vou trabalhar, ao menos acorda e finge que vais fazer alguma coisa”, às vezes, a dor vem de tanto lado que não sabemos o que nos dói mais, é um pouco isto, sem dúvida, durante mais de trinta anos respirámos lado a lado, e hoje, diante de mim, uma estranha… A vida é isto: no fim, nem as pedras se vão lembrar de nós. Muito subterraneamente, comecei a perceber onde íamos desaguar. Foi num Domingo, de tarde, não sei porquê, mas cada dia tem o seu próprio respirar, e o Domingo tem qualquer coisa de uma eternidade silenciosa, é estranho, bem sei, mas as sombras parecem colar-se ao chão, como se gritassem bem alto, na sua imobilidade, os sonhos que cada um enterrou… E é assim… Pois, sabe como é? A vida é isto mesmo! Um dia estamos lá em cima, e, de repente, caímos. Não há nada a fazer, temos é de nos levantar de novo e caminhar, custa, bem sei, mas não temos outra opção. Você, hoje, olha para mim e não imagina quanta gente tive à minha responsabilidade. Mas, dizia eu, foi num Domingo de tarde, o nosso carrito já partira em busca de uma terceira mão, Cascais agora mais longe, eu sentado à mesa com a Matemática, ela, de repente, da ombreira da porta, “Lamento, mas não posso mais”, virei-me, percebi-lhe uma mala em cada mão, sabe, estava já tão por terra que nem tentei, mesmo que, não conseguia, como se, num recanto de mim, uma voz sussurrasse “deixa-a ir”, como se percebesse a inevitabilidade de tal, o acontecer prévio ao ser, tudo sobreveio com uma lucidez dilacerante, parecia que me sentara no monte mais longínquo que o meu pensamento conseguira alcançar, daí via-me às voltas com a Matemática, não a da sobrevivência, pousada no tampo da mesa, mas a do orgulho que me fazia permanecer sentado, imóvel, a maquilhar a surpresa e a dor imensas por aquelas malas, por “Lamento, mas não posso mais”, por ser Domingo, de tarde, e o Domingo tem qualquer coisa de uma eternidade silenciosa, é estranho, bem sei, contudo, as sombras parecem colar-se ao chão, como se gritassem bem alto, na sua imobilidade, os sonhos que cada um enterrou… E tudo aconteceu sob a ombreira da porta. Se, ao menos, ainda as chaves, do carrito em segunda mão, pelo meu bolso, podia levantar-me, dizer-lhe “Espera! Põe o teu vestido, sim, esse mesmo, o mais recente, está passado desde ontem, e vamos até Cascais, comer um gelado, a seguir, damos um passeio pelo paredão, eu sei o quanto gostas deste ritual…”, ou será que me enganei? Tem razão, o que lá vai, lá vai, mas sabe, o mais importante, a certa altura, é que haja em nós algumas certezas, e o olhar para trás permita que o pensar do hoje repouse em lugares do ontem, uns chamam a isso memórias. Já não seria mau. O que lhe parece? Acha pouco? Para mim, é o suficiente. Sabe, a vida é isto: no fim, nem as pedras se vão lembrar de nós.

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