Livros do Escritor

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domingo, 12 de outubro de 2025

Hoje não me apetece respirar…

 


Hoje trouxe esta ideia comigo da almofada, acho que me surgiu entre sonos, “Revisitar um lugar onde fui outro”, algures por aí, percebi que os anos não me esqueceram quando, há uns dias, dei por mim a mandar calar todos para ouvir o Telejornal, até me assustei, “Eu queria ouvir o Telejornal”, mas isso só interessa aos velhos, pensava eu em criança, e logo adicionava outra certeza, “Eu nunca hei-de ouvir um Telejornal”, afinal, para quê? Aquilo não tem interesse nenhum, só via uns sujeitos de fato, aborrecidíssimos, que não se calavam… Nem vislumbres de heróis, lutas dramáticas, suspense, tudo pintado com a cor da meninice, e a minha certeza: “Eu nunca hei-de ouvir um Telejornal”. Corri para um espelho, e por ali me quedei, atónito, “Estarei a ficar velho?” ou “Afinal, que idade tenho eu?”, estas e outras questões por mim, estarrecido com os auspícios de uma evidência nascida do acaso (“Eu queria ouvir o Telejornal”), estarei eu a ficar aborrecidíssimo? Será que não me calo? Embora nunca use fato… De repente, a caminhar pela minha memória, a imagem de um vizinho que, volta e meia, entrava no barbeiro do bairro, sentava-se, fechava os olhos, ali ficava, durante o que, para si, seria necessário, o corte de cabelo não se concretizava, apesar disso, pagava e, por fim, saía, houve dias em que ali entrou, pelo menos, duas vezes, quando soube disto, não me contive, questionei o porquê lá em casa, a mão do meu pai pelo meu ombro e, com uma naturalidade desarmante, disse-me: “Porquê esse espanto? Há lugar no mundo mais confortável que a cadeira de um barbeiro?” Confesso, neste preciso momento, em que escrevo estas linhas, que o espanto de então ainda não partiu de mim… Aqui permanece com todo o seu fulgor: “Há lugar no mundo mais confortável que a cadeira de um barbeiro?” Julgo que não. Meu pai ainda acrescentou uma frase, “Quando tiveres de tomar decisões importantes, quando fores grande, procura sempre um sítio confortável para o fazeres”, porém, aquela pergunta (“Há lugar no mundo mais confortável que a cadeira de um barbeiro?”), nesse momento, submergira-me, mais tarde, soube que esse vizinho era juiz, dava longos passeios pelo bairro e arredores, sempre muito direito, de mãos atrás das costas, das nuvens da minha meninice tentava perscrutar-lhe as cores do pensar, tinha uma aura de profeta, não sei se pelas barbas brancas, se pelo ar sofrido de quem olha fontes de lágrimas, prometi a mim mesmo que iria estar mais atento aos passos deste profeta, certa tarde, uma bola rematada para longe, assim que o vejo sair do prédio e a dirigir-se para a barbearia, prontifico-me a ir buscá-la, num repente, corro desalmadamente rua fora, até à porta da barbearia, recolho a bola, presa debaixo de um carro, e fico a vê-lo ali entrar, uma cadeira ocupada, a outra vaga, o barbeiro faz-lhe sinal para se sentar, ele tira o casaco, pendura-o no cabide, e senta-se, sempre muito direito, reparei que fechou, de imediato, os olhos, nisto, gritos por mim, pela bola, faço-lhes sinal que já vou, mas os gritos impacientam-se, atiro-lhes a bola como bálsamo e persisto com o profeta sentado de olhos fechados, entretanto, do fundo da rua, os gritos aligeiram-se, mas ainda insistem por mim, antes de regressar àquele importantíssimo dérbi, assisto ao rito de preparação do corte de cabelo, embora saiba que não se irá concretizar, o profeta, impassível, de olhos fechados, talvez num diálogo que o direccione para uma melhor resolução, quem sabe? Regressei ao jogo, retomei o meu posto, ainda o vi passar, muito direito, mãos atrás das costas, talvez fosse o único a seguir-lhe os passos, os outros a atenção só com a bola, pouco mais, nunca lhes falei de profetas, cadeiras de cabeleireiro, olhos fechados e tomadas de decisão… Para quê? Tenho a certeza de que não me iriam compreender. Há dias em que sou eu a regressar entardecido a casa, tento, por vezes fico-me pela tentativa, um sorriso, sempre é uma brisa que nos relembra outras paragens, talvez lugares onde a cabeça pese menos à almofada, ela frenética com o jantar e os miúdos, ainda o telefone, insaciável, os avós, o jantar das crianças, os nutrientes necessários, o próximo fim-de-semana, a comunhão da mais nova, o vestido, eu a pensar que ainda faltam quatro meses, mas só a pensar, nem uma vírgula ouso articular, ainda tenho um relatório pela frente, que me vai levar, no mínimo, duas horas, e amanhã desperto às seis, nestes momentos, percebo que tudo isto é um absurdo, uma corrida insaciável para um não sei quê, nem nos perguntam se queremos fazer parte deste absurdo, já fazemos antes de sermos, de novo, a caminhar pela minha memória, a imagem de um vizinho que, volta e meia, entrava no barbeiro do bairro, sentava-se, fechava os olhos, ali ficava, durante o que, para si, seria necessário, de novo, a mão do meu pai pelo meu ombro e, com uma naturalidade desarmante, a dizer-me: “Porquê esse espanto? Há lugar no mundo mais confortável que a cadeira de um barbeiro?”

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