Hoje trouxe esta ideia comigo da almofada,
acho que me surgiu entre sonos, “Revisitar um lugar onde fui outro”, algures
por aí, percebi que os anos não me esqueceram quando, há uns dias, dei por mim
a mandar calar todos para ouvir o Telejornal, até me assustei, “Eu queria ouvir
o Telejornal”, mas isso só interessa aos velhos, pensava eu em criança, e logo
adicionava outra certeza, “Eu nunca hei-de ouvir um Telejornal”, afinal, para
quê? Aquilo não tem interesse nenhum, só via uns sujeitos de fato, aborrecidíssimos,
que não se calavam… Nem vislumbres de heróis, lutas dramáticas, suspense, tudo
pintado com a cor da meninice, e a minha certeza: “Eu nunca hei-de ouvir um
Telejornal”. Corri para um espelho, e por ali me quedei, atónito, “Estarei a
ficar velho?” ou “Afinal, que idade tenho eu?”, estas e outras questões por
mim, estarrecido com os auspícios de uma evidência nascida do acaso (“Eu queria
ouvir o Telejornal”), estarei eu a ficar aborrecidíssimo? Será
que não me calo? Embora nunca use fato… De
repente, a caminhar pela minha memória, a imagem de um vizinho que, volta e
meia, entrava no barbeiro do bairro, sentava-se, fechava os olhos, ali ficava,
durante o que, para si, seria necessário, o corte de cabelo não se
concretizava, apesar disso, pagava e, por fim, saía, houve dias em que ali
entrou, pelo menos, duas vezes, quando soube disto, não me contive, questionei
o porquê lá em casa, a mão do meu pai pelo meu ombro e, com uma naturalidade
desarmante, disse-me: “Porquê esse espanto? Há lugar no mundo mais confortável
que a cadeira de um barbeiro?” Confesso, neste preciso momento, em que escrevo
estas linhas, que o espanto de então ainda não partiu de mim… Aqui permanece
com todo o seu fulgor: “Há lugar no mundo mais confortável que a cadeira de um
barbeiro?” Julgo que não. Meu pai ainda acrescentou uma frase, “Quando tiveres
de tomar decisões importantes, quando fores grande, procura sempre um sítio
confortável para o fazeres”, porém, aquela pergunta (“Há lugar no mundo mais
confortável que a cadeira de um barbeiro?”), nesse momento, submergira-me, mais
tarde, soube que esse vizinho era juiz, dava longos passeios pelo bairro e
arredores, sempre muito direito, de mãos atrás das costas, das nuvens da minha
meninice tentava perscrutar-lhe as cores do pensar, tinha uma aura de profeta,
não sei se pelas barbas brancas, se pelo ar sofrido de quem olha fontes de
lágrimas, prometi a mim mesmo que iria estar mais atento aos passos deste
profeta, certa tarde, uma bola rematada para longe, assim que o vejo sair do
prédio e a dirigir-se para a barbearia, prontifico-me a ir buscá-la, num
repente, corro desalmadamente rua fora, até à porta da barbearia, recolho a
bola, presa debaixo de um carro, e fico a vê-lo ali entrar, uma cadeira
ocupada, a outra vaga, o barbeiro faz-lhe sinal para se sentar, ele tira o
casaco, pendura-o no cabide, e senta-se, sempre muito direito, reparei que
fechou, de imediato, os olhos, nisto, gritos por mim, pela bola, faço-lhes
sinal que já vou, mas os gritos impacientam-se, atiro-lhes a bola como bálsamo
e persisto com o profeta sentado de olhos fechados, entretanto, do fundo da
rua, os gritos aligeiram-se, mas ainda insistem por mim, antes de regressar
àquele importantíssimo dérbi, assisto ao rito de preparação do corte de cabelo,
embora saiba que não se irá concretizar, o profeta, impassível, de olhos
fechados, talvez num diálogo que o direccione para uma melhor resolução, quem
sabe? Regressei ao jogo, retomei o meu posto, ainda o vi passar, muito direito,
mãos atrás das costas, talvez fosse o único a seguir-lhe os passos, os outros a
atenção só com a bola, pouco mais, nunca lhes falei de profetas, cadeiras de
cabeleireiro, olhos fechados e tomadas de decisão… Para quê? Tenho a certeza de
que não me iriam compreender. Há dias em que sou eu a regressar entardecido a
casa, tento, por vezes fico-me pela tentativa, um sorriso, sempre é uma brisa
que nos relembra outras paragens, talvez lugares onde a cabeça pese menos à
almofada, ela frenética com o jantar e os miúdos, ainda o telefone, insaciável,
os avós, o jantar das crianças, os nutrientes necessários, o próximo
fim-de-semana, a comunhão da mais nova, o vestido, eu a pensar que ainda faltam
quatro meses, mas só a pensar, nem uma vírgula ouso articular, ainda tenho um
relatório pela frente, que me vai levar, no mínimo, duas horas, e amanhã
desperto às seis, nestes momentos, percebo que tudo isto é um absurdo, uma
corrida insaciável para um não sei quê, nem nos perguntam se queremos fazer
parte deste absurdo, já fazemos antes de sermos, de novo, a caminhar pela minha
memória, a imagem de um vizinho que, volta e meia, entrava no barbeiro do
bairro, sentava-se, fechava os olhos, ali ficava, durante o que, para si, seria
necessário, de novo, a mão do meu pai pelo meu ombro e, com uma naturalidade
desarmante, a dizer-me: “Porquê esse espanto? Há lugar no mundo mais
confortável que a cadeira de um barbeiro?”

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