Estavam
dentro do carro há largos minutos, talvez fosse de tarde, ele só entusiasmo,
ela apenas lhe acompanhava gestos e frases, com anuências apreensivas, de
repente, ele abre a porta, sai, ela segue-o, vão ter com um sujeito que os
aguarda, de pasta na mão, expressão e gestos plásticos, tudo num excesso de
artificialidade, ainda uns metros a separá-los, o sujeito da pasta já com um
enorme sorriso e a mão erguida em rotundas saudações, após os cumprimentos, Vão ver que este é o espaço ideal! Tem duas
excelentes montras. No piso de cima, estamos a falar de uma área útil à volta
dos oitenta metros quadrados, na cave, desde já ressalvo que dá um excelente
armazém, estamos a falar de cerca de cento e cinquenta metros quadrados!
Imagine! Se quiser, até pode subalugar parte do espaço, repare, é só uma ideia…
Ela, neste ponto, pensou em manifestar o seu desagrado ao sujeito da pasta,
por, subitamente, o seu discurso se alterar para o singular, mas continuou
impassível, como espectadora chegou, assim quer partir, ao contrário dele, que,
neste momento, estava para além do entusiasmo, num estado muito próximo do
êxtase com a possibilidade, quase tangível, de alugar o espaço, a pasta
compreendeu-lhe o enlevo, Então, o que
lhe parece? É mesmo aquilo que procura, não é? Isto, bem negociado com o
proprietário, ainda se consegue descer um pouco a renda… Mas teríamos que
fechar o negócio hoje! Quer avançar? Por acaso, tenho aqui, já pronta, uma
minuta do contrato… Quer dar uma vista de olhos? Ela resolve arrefecer um
pouco as coisas, Desculpe, mas antes de
mais, diga-me uma coisa… Quantos cafés há neste bairro? É que, antes de
fecharmos seja o que for, gostaríamos de conhecer a zona… A pasta emudeceu,
procurou refúgio no êxtase vislumbrado há pouco, ele nem sentiu aquele súbito
arrefecimento, continua a povoar o espaço despido à sua volta das ilusões que o
habitam, quase mecanicamente lá soletrou Sim,
é isto mesmo que procuramos. Da minha parte, podemos avançar, ela não se
conteve, colocou-se diante dele, abriu-lhe bem os olhos, Não aprendeste mesmo nada, pois não? O que sabes deste bairro? Ao
menos, antes, dá duas, não, pelo menos, oito voltas ao quarteirão, antes de
assinares seja o que for… Ou queres, daqui a mês e meio, fechar outra vez as
portas? Eu não aguento mais isto! Por que é que não te empregas como toda a
gente? Porquê esta mania dos negócios e de ser patrão? Não compreendo,
desculpa, mas não consigo entender, estou cansada… Aqui chegados,
sublinhe-se que a pasta, assim que percebeu o toque demasiado pessoal da
conversa, puxou de um cigarro e foi até ao passeio, o gesto foi apreciado, ela
também saiu, não por um cigarro púdico, mas para aquietar uma alma dorida, ele
quis sossegá-la, ainda pensou em ir atrás, mas por ali ficou, a povoar o espaço
despido à sua volta das ilusões que o habitam, duas questões de há pouco não se
calavam dentro de si Por que é que não te
empregas como toda a gente? Porquê esta mania dos negócios e de ser patrão? Como
explicar-lhe que a vida o desviara, em demasia, das mesas da escola? De certa
forma, uma opção sua, mas só se compreende o caminho quando se olha para trás,
e agora, com a idade que tem, com tão escassa bagagem em termos de livros, que
empregos pode ambicionar? E, depois, há aquilo, de que tão pouco se fala, mas
que está lá sempre, como uma sombra do que não somos, pois, pois é, o orgulho,
e a irmã dela, com uma vida tão boa, dois filhos, o cunhado, advogado, já com
escritório numa das principais ruas da cidade, vão-se mudar para uma vivenda,
vejam bem, os sogros embevecidos, o nome do cunhado em cada frase, numa ocasião
até os ouviu dizer, Pelo menos, a mais
velha já tem o futuro garantido… A mais nova é que é um problema… E o
problema, claro, tem as sílabas do seu nome, a sogra, certa vez, não se
apercebeu de que ele saíra da sala, de que estava estático, e em revolta, num
determinado ponto da casa, a ouvir o seu telefonema, ela continuava, O que é que podemos fazer? Só se mete em
alhadas! Quer ter, à força, um negócio! Ora veja-se bem… Em vez de ir trabalhar
como toda a gente… Pois, tem toda a razão. E o pior, é que não há um que dê
certo! Já teve dois cafés, um mini-mercado e uma papelaria! Todos faliram!
Sabe, às vezes, acho que se abrisse uma chapelaria, as pessoas passavam a
nascer sem cabeça… Só tenho pena da minha filha, coitada, mas há-de crescer… Certas
frases não nos largam, por muito que as tentemos lançar para longe, elas
sentam-se num qualquer canto de nós, e ali ficam a olhar-nos, um conjunto de
palavras que formam um sentido do que fomos, somos, ou quisemos ser, apenas e
só, escusado será dizer que, nesse dia, ele saiu de rompante, nem se despediu,
quando se apercebeu, ela seguiu-o, não era o primeiro registo de tal facto, a colecção
destas ocorrências era farta, tal como o desgaste, mas aquela frase, em
verdade, não se sentou a um canto, sentou-se bem diante dele, Sabe, às vezes, acho que se abrisse uma
chapelaria, as pessoas passavam a nascer sem cabeça… Isto acontece quando
um conjunto de palavras formam um sentido do que quisemos ser, a vida começava
a ultrapassá-lo, pelo espelho, só encontrava grisalhos, pelas ruas, já era o
senhor, neste momento, ela saiu, não por um cigarro púdico, mas para aquietar
uma alma dorida, ele ainda por ali, a povoar o espaço despido à sua volta das
ilusões que o habitam, a pasta, entretanto, terminara o seu púdico cigarro,
hesita em puxar por um segundo, Sabe, às
vezes, acho que se abrisse uma chapelaria, as pessoas passavam a nascer sem
cabeça…, há coisas que doem até às raízes, talvez por abrirem chagas de
onde nos saem sonhos em vez de sangue, ou talvez seja uma outra coisa essa dor
demasiada, o destino a apontar uma outra direcção, pois, talvez, olha-a do
outro lado da rua, está de costas, percebe que cruzara os braços, não espera
muito mais, vai ao seu encontro, atravessa a estrada, diz-lhe qualquer coisa ao
ouvido, ela volta-se com um sorriso.

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