Livros do Escritor

Livros do Escritor

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

A história do homem que se abrisse uma chapelaria, todos passavam a nascer sem cabeça

 


Estavam dentro do carro há largos minutos, talvez fosse de tarde, ele só entusiasmo, ela apenas lhe acompanhava gestos e frases, com anuências apreensivas, de repente, ele abre a porta, sai, ela segue-o, vão ter com um sujeito que os aguarda, de pasta na mão, expressão e gestos plásticos, tudo num excesso de artificialidade, ainda uns metros a separá-los, o sujeito da pasta já com um enorme sorriso e a mão erguida em rotundas saudações, após os cumprimentos, Vão ver que este é o espaço ideal! Tem duas excelentes montras. No piso de cima, estamos a falar de uma área útil à volta dos oitenta metros quadrados, na cave, desde já ressalvo que dá um excelente armazém, estamos a falar de cerca de cento e cinquenta metros quadrados! Imagine! Se quiser, até pode subalugar parte do espaço, repare, é só uma ideia… Ela, neste ponto, pensou em manifestar o seu desagrado ao sujeito da pasta, por, subitamente, o seu discurso se alterar para o singular, mas continuou impassível, como espectadora chegou, assim quer partir, ao contrário dele, que, neste momento, estava para além do entusiasmo, num estado muito próximo do êxtase com a possibilidade, quase tangível, de alugar o espaço, a pasta compreendeu-lhe o enlevo, Então, o que lhe parece? É mesmo aquilo que procura, não é? Isto, bem negociado com o proprietário, ainda se consegue descer um pouco a renda… Mas teríamos que fechar o negócio hoje! Quer avançar? Por acaso, tenho aqui, já pronta, uma minuta do contrato… Quer dar uma vista de olhos? Ela resolve arrefecer um pouco as coisas, Desculpe, mas antes de mais, diga-me uma coisa… Quantos cafés há neste bairro? É que, antes de fecharmos seja o que for, gostaríamos de conhecer a zona… A pasta emudeceu, procurou refúgio no êxtase vislumbrado há pouco, ele nem sentiu aquele súbito arrefecimento, continua a povoar o espaço despido à sua volta das ilusões que o habitam, quase mecanicamente lá soletrou Sim, é isto mesmo que procuramos. Da minha parte, podemos avançar, ela não se conteve, colocou-se diante dele, abriu-lhe bem os olhos, Não aprendeste mesmo nada, pois não? O que sabes deste bairro? Ao menos, antes, dá duas, não, pelo menos, oito voltas ao quarteirão, antes de assinares seja o que for… Ou queres, daqui a mês e meio, fechar outra vez as portas? Eu não aguento mais isto! Por que é que não te empregas como toda a gente? Porquê esta mania dos negócios e de ser patrão? Não compreendo, desculpa, mas não consigo entender, estou cansada… Aqui chegados, sublinhe-se que a pasta, assim que percebeu o toque demasiado pessoal da conversa, puxou de um cigarro e foi até ao passeio, o gesto foi apreciado, ela também saiu, não por um cigarro púdico, mas para aquietar uma alma dorida, ele quis sossegá-la, ainda pensou em ir atrás, mas por ali ficou, a povoar o espaço despido à sua volta das ilusões que o habitam, duas questões de há pouco não se calavam dentro de si Por que é que não te empregas como toda a gente? Porquê esta mania dos negócios e de ser patrão? Como explicar-lhe que a vida o desviara, em demasia, das mesas da escola? De certa forma, uma opção sua, mas só se compreende o caminho quando se olha para trás, e agora, com a idade que tem, com tão escassa bagagem em termos de livros, que empregos pode ambicionar? E, depois, há aquilo, de que tão pouco se fala, mas que está lá sempre, como uma sombra do que não somos, pois, pois é, o orgulho, e a irmã dela, com uma vida tão boa, dois filhos, o cunhado, advogado, já com escritório numa das principais ruas da cidade, vão-se mudar para uma vivenda, vejam bem, os sogros embevecidos, o nome do cunhado em cada frase, numa ocasião até os ouviu dizer, Pelo menos, a mais velha já tem o futuro garantido… A mais nova é que é um problema… E o problema, claro, tem as sílabas do seu nome, a sogra, certa vez, não se apercebeu de que ele saíra da sala, de que estava estático, e em revolta, num determinado ponto da casa, a ouvir o seu telefonema, ela continuava, O que é que podemos fazer? Só se mete em alhadas! Quer ter, à força, um negócio! Ora veja-se bem… Em vez de ir trabalhar como toda a gente… Pois, tem toda a razão. E o pior, é que não há um que dê certo! Já teve dois cafés, um mini-mercado e uma papelaria! Todos faliram! Sabe, às vezes, acho que se abrisse uma chapelaria, as pessoas passavam a nascer sem cabeça… Só tenho pena da minha filha, coitada, mas há-de crescer… Certas frases não nos largam, por muito que as tentemos lançar para longe, elas sentam-se num qualquer canto de nós, e ali ficam a olhar-nos, um conjunto de palavras que formam um sentido do que fomos, somos, ou quisemos ser, apenas e só, escusado será dizer que, nesse dia, ele saiu de rompante, nem se despediu, quando se apercebeu, ela seguiu-o, não era o primeiro registo de tal facto, a colecção destas ocorrências era farta, tal como o desgaste, mas aquela frase, em verdade, não se sentou a um canto, sentou-se bem diante dele, Sabe, às vezes, acho que se abrisse uma chapelaria, as pessoas passavam a nascer sem cabeça… Isto acontece quando um conjunto de palavras formam um sentido do que quisemos ser, a vida começava a ultrapassá-lo, pelo espelho, só encontrava grisalhos, pelas ruas, já era o senhor, neste momento, ela saiu, não por um cigarro púdico, mas para aquietar uma alma dorida, ele ainda por ali, a povoar o espaço despido à sua volta das ilusões que o habitam, a pasta, entretanto, terminara o seu púdico cigarro, hesita em puxar por um segundo, Sabe, às vezes, acho que se abrisse uma chapelaria, as pessoas passavam a nascer sem cabeça…, há coisas que doem até às raízes, talvez por abrirem chagas de onde nos saem sonhos em vez de sangue, ou talvez seja uma outra coisa essa dor demasiada, o destino a apontar uma outra direcção, pois, talvez, olha-a do outro lado da rua, está de costas, percebe que cruzara os braços, não espera muito mais, vai ao seu encontro, atravessa a estrada, diz-lhe qualquer coisa ao ouvido, ela volta-se com um sorriso.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.