Amanhã temos de ir às compras! Falta… Desliguei,
já não o ouvi mais, às vezes, assalta-me esta noção de absurdo, como se tudo
isto fosse uma ridícula encenação repetida até ao que permite a exaustão de
cada um, Amanhã temos de ir às compras!
Falta… Ouço, durante os cinco dias, a que alguns baptizaram pomposamente de
dias úteis, que, no fundo, se revelam de uma total inutilidade para o viver, eu
que o diga, atrás daquele balcão, com um obrigatório sorriso postiço, mesmo
quando percebo que a carteira é inversamente proporcional aos modos e aparência
de quem lá entra, afinal, a experiência também é saber, ultimamente nem bom-dia ou boa-tarde, nada, às vezes questiono-me a quem dará jeito esta queda
da educação, o que custa um singelo bom-dia?
Quantas almas já não se terão erguido ao ouvir tal saudação? E quanta melodia
não fica a pairar quando se diz bom-dia?
Até parece uma declaração de esperança, uma saudação à luz que se ergue algures por aí… No dia seguinte, já sei que de tarde, lá vamos nós, mais a
miúda, para o centro-comercial do costume, de manhã, enquanto o estore
permitir, está a fechar mal em dois ou três pontos, repomos sonos, assim que a
luz nos invade a face, pelas duas ou três frestas, já sei que ele se aproxima,
pois, é fim-de-semana, há coisas que, com o tempo, mesmo que nos esforcemos
muito em contrário, se tornam mecânicas, nem um vislumbre daquela paixão que
nos deixava suspensos, pelo menos assim sucedia comigo, como dizia, há coisas
que, com o tempo, mesmo que nos esforcemos muito em contrário, se tornam
mecânicas, esta é a verdade, com isto não quero dizer que me desagrade, longe
disso, contudo, no fim, apenas uma noção de dever cumprido, o que é tão pouco,
se antes uma paixão que me deixava suspensa, antes de me levantar, bidé, sabão,
de novo assalta-me esta noção de absurdo, um dever cumprido, ele, coitado,
ainda me abraça, procura disfarçar a mecânica de há pouco, embora nas
entrelinhas lhe leia a ânsia de também se levantar, do pequeno-almoço, as
notícias da bola, as outras sempre lhe constituíram um frete, pelo menos, nunca
o disfarçou, mas lá me abraça, aprecio o gesto, é um gesto de pudor, um véu
sobre a mecânica, se, no fim, algo se velar, ao menos qualquer coisa subsiste,
enquanto isso, fala-me do quotidiano, com uma voz arrastada, como se para
enfatizar o momento, pois, um véu sobre a mecânica, ultimamente reparo que o
seu discurso já nem da calçada se levanta, antes, até parece que numa outra
vida, falava de filhos, agora, quanta calculadora para o frigorífico, livros, e
agasalhos da nossa menina, antes, chegou a falar numa vivenda com terreno,
curioso, não me recordo de pagarmos a renda com menos de uma semana de atraso,
do apartamentozito, no subúrbio do subúrbio, como lhe chamo, onde vivemos há
anos tantos, concluo que o tempo vai desbotando os sonhos, é possível, se os
dele, agora, já não se levantam da calçada, os meus há muito que estão
enterrados, não posso dizer que os tenha esquecido, mas também não os recordo,
remeti-os para uma zona indistinta de mim, talvez assim continue a dizer um
melodioso bom-dia em cada manhã,
depois do pequeno-almoço, café e torradas para nós, a miúda, felizmente, ainda
conseguimos providenciar uma tigela de cereais com leite, segue-se a lida da
casa, neste particular, não me posso queixar dele, pelo contrário, assume uma
prestabilidade resignada, uma vez, a brincar, disse-lhe Já viste se tivéssemos uma vivenda com terreno? Teríamos o décuplo do
trabalho… Se com este apartamentozito nos vimos à nora para limpar… Ele
sorriu-me tristeza, arrependi-me, logo, de ter falado da vivenda com terreno,
não o queria magoar, acho que ele o compreendeu, nesse momento, percebi que os
seus sonhos, ao contrário dos meus, ainda caminhavam, entretanto, a miúda com
os deveres da escola, após o almoço, arroz com salsichas e um ovo estrelado
para cada um, lá vamos para o centro-comercial do costume, de novo, por mim, a
noção de absurdo, ao longo do trajecto, devidamente soluçado pelo nosso
utilitário com mais de duas décadas, ele a maldizer os acentuados defeitos do
carro, a sempre adiada revisão, a inevitável fumarada sempre que se baixa uma
mudança, o característico chiar do banco do condutor, o pedido de reforma de
alguns plásticos entretanto impressos na nossa roupa, e eu a perceber que o
tempo vai desbotando os sonhos, é possível, se os dele, agora, já não se
levantam da calçada, os meus há muito que estão enterrados, ao menos a miúda
segue divertida, no banco de trás, a ouvir a orquestra polifónica de chiares e
buzinadelas, enquanto olha, lá fora, uma novidade chamada mundo, que os seus
sonhos desconheçam, por muitos e bons anos, a aspereza de uma calçada, não sei
porquê, mas sempre que avisto aquele edifício desmesurado, a gritar uma
desumanidade de formas e conteúdos, uma vez mais, por mim, a noção de absurdo,
assim que somos tragados nas suas entranhas, limito-me a cruzar os braços e a
emudecer, ele nunca reparou nestas minhas singularidades, como em muitas
outras, entretido que estava à procura de lugar, como se uma corrida por um
lugar ao sol, neste caso, a um tão pálido sol, Sábado depois de almoço, tudo para
ali converge, reparei que estava uma tarde aprazível ao longo do trajecto,
ainda na minha memória os passeios interrompidos por aqueles beijos que
saciavam, por escassos segundos, o sentir desordenado de um coração, ora à
beira de um lago, ora em falésias a contemplar o azul onde se espelhavam
amanhãs sonhados, e hoje estou para aqui, de braços cruzados, nas entranhas
desumanas disto, num Sábado de tarde, enquanto lá fora uma tarde aprazível, bem
sei que ele insistiu Amanhã temos de ir
às compras! Falta… Mas daí à minha resignação, quando lá fora, na minha
memória, os passeios interrompidos por aqueles beijos que saciavam, por
escassos segundos, o sentir desordenado de um coração, assim que transpomos a
fronteira artificial, devidamente vigiada por um sujeito fardado, com um ar
indolente que transparece uma recente e desajustada vinda a um território
fronteiriço, a expressão cansada e o perímetro abdominal farto indiciam, de
facto, a fantasia de certas fronteiras, ele logo para o corredor de ferramentas
e coisas assim, não sei porquê sempre nutri repulsa por essas coisas, quanto a
mim, a empurrar o carrinho, sei onde vou desaguar, assim foi desde que caminho,
sorrio ao contemplar as capas, mais os títulos, curioso, sempre foi o título a
prender-me a atenção, logo aí se abre a porta ao génio criador, nunca fui por
capas ou pompas, vislumbro, no meio daquela exaustiva oferta, alguns quase nos
são indecorosamente atirados à cara, só me cresce, de novo, a repulsa, um que
me deixa suspensa, pego-lhe, de seguida, tomo-lhe o peso, manuseio-o, com
discrição até o cheiro, sempre tive este hábito, é um objecto de tal ordem que
nos absorve por inteiro, sempre me pareceu uma manifestação de respeito, por
fim, a primeira linha, parei, não lia, lia-me, percebi, são estes que valem a
pena, sempre me pareceu obsceno colocar este objecto entre detergentes e litros
de leite, mas pouco mais podia fazer, assim que ele me visse a virar folhas, já
sei que lhe sairia uma qualquer boçalidade, desculpava-o, pouco mais podia fazer,
fui avisada há tanto, e as múltiplas discussões lá por casa, Esse rapaz não é para ti, minha filha…
Pertence a uma outra realidade… Vê se percebes! Olha que amanhã pode ser
demasiado tarde… Ele não é do nosso meio! Por favor, vê se acordas! Ainda
destróis a tua vida… Estás na faculdade, a meio de um curso, ele é um reles
mecânico de uma oficina do subúrbio… Nem a quarta-classe deve ter! Filha, por
favor…
Acho
que, dessa minha outra vida, só trouxe o meu fascínio por esse singular
objecto, pouco mais… Há pouco disse que me lia, é verdade, e essas linhas
ajudam a compreender-me: se me falassem de arrependimento, não podia negar de
todo; mas se me perguntassem se dava os mesmos passos, afirmava por inteiro;
afinal, quantas vezes, numa vida, se suspende tudo para saciar, através de um
beijo, o sentir desordenado de um coração…

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