Los veranos que te
inventas,
Sales del agua, eres de
piedra.
Ten cuidado, estoy muy
cerca.
Los Veranos, McEnroe
O maior paradoxo do
desejo não está em procurar-se sempre outra coisa: está em se procurar a mesma,
depois de se ter encontrado.
Vergílio Ferreira
ÍNDICE
Pai………………………………………………………………..
Mãe……………………………………………………………….
Filho……………………………………..……………………….
Pai
- Estou a olhar,
pela janela, a rua. Já reparaste, hoje cheguei a casa, cinco e pouco da tarde,
a noite já abraçava o mundo, nessa altura, não sei porquê, sempre me pareceu
despertar todas as dores adormecidas em nós… Lá vai a vizinha, do prédio em
frente, com o cão à rua. Fá-lo mais de uma dezena de vezes por dia, incrível!
Não achas? Viúva, o cão tornou-se-lhe o único parente, há tanta solidão no
mundo… E tu, onde estás?
- Deitado, a
olhar não o tecto, mas paisagens idas… Às vezes receio afogar-me na melancolia
que me habita… Ando sempre debruçado sobre a janela do passado… Talvez por lá
termos ficado. Nada me prende ao aqui, não desejo o amanhã! Há coisa pior? Não
desejo amanhãs!
- Tens sonhado?
- Menos, mas,
sim, e continuam muito vívidos.
- Por que
perguntas? Não te foste embora?
- Vamos voltar à
mesma conversa? Isso foi há anos, não havia outra possibilidade. Tive de pensar
pelos dois. E não respondeste: Ainda sonhas connosco?
- Alguma vez
deixei? E tu?
- De vez em
quando… Lembras-te daquela noite em que te liguei?
- Sim…
- Se te dissesse
onde estava, o que pensava fazer…
- Então?
Lembro-me de te ouvir angústia, trocámos duas ou três frases, disseste “Deixa estar…” Eu repeti: “Queres que vá ter
contigo? Queres que vá ter contigo?” Sabes, um aceno teu, nessa noite, e eu virava costas
ao mundo! Como invejo os que viram costas ao mundo – seja qual for a razão!
- Estava no
terraço do meu prédio, queria ir-me embora… Percebeste…? De repente, a tua
imagem, não, foi a tua voz, a ecoar em mim, os dedos com avidez a procurar o
teu nome, o receio pela hora, não, não te iludas, como receei ligar-te àquela
hora da noite, assim que atendes, uma serenidade nasceu-me, soube, de imediato,
haver um porto-seguro à minha espera neste mundo… E como, nesse momento, dele
precisava! Mas bastou-me a tua voz. Nunca quis que fizesses algum disparate!
Mais tarde ou mais cedo, virias cobrá-lo!
- Pelos vistos,
tornaste-te adivinha!
- Pára com as
ironias! Sabes bem que não se trata de nada disso! Eu fiz o que achei melhor
para os dois! Ou achas que não te amei?
- Se amaste,
passou-te depressa.
- Se o dizes…
- Sempre me
senti, não sei porquê, nas faldas desta coisa que apelidam de sociedade. Sempre
em busca de um grupo onde me revisse na totalidade, no fundo, que me desse um
espelho-integral do “eu”, ainda hoje o busco, mas, em verdade, acho que tal
não existe… Daí este meu lado desenraizado, quando te conheci, e os nossos
olhares se encontraram, percebi-te também uma náufraga, e como isso me atraiu
em ti… Com o tempo, compreendi, muito a contragosto, que procuravas, de todas
as formas, integrar-te, aqui começaste a morrer-me enquanto ideia… Não o
esperava! Desiludiste-me, e muito! Nunca compreendi como, com tanta
irreverência, originalidade, ousadia, essa latente necessidade de pertença ao
rebanho…
- A vizinha do
cão regressa…
- Agora
desconversas?
- Pelo contrário!
Acho uma figura fascinante, como se um espelho da inquietude do hoje, viúva,
uma filha distante, só lhe resta o cão – a coisinha
mais irritante que já conheci de quatro-patas, minúscula, pindérica, ladra a
tudo que se mexe, até para os carros, já ouvi miúdos chamarem-lhe o demoniozinho do bairro, vê bem a fama alcançada –,
vai, pelo menos, dez vezes por dia passeá-lo à rua, já viste? Pelo menos, dez
vezes por dia! Há uns tempos…
- Vais continuar
com a história da tua vizinha e do cão irritante?
- Espera!
Deixa-me terminar! Vais achar interessante, eu sei que te enterneces com estas
personagens, há uns tempos, irritante como é, o pindérico fê-la desequilibrar-se,
alta e rechonchuda caiu no passeio, partiu um braço, além dos inevitáveis
arranhões… Na manhã seguinte, seriam umas sete horas, de braço-ao-peito, ei-la
a cumprir o seu imperativo-de-vida, e o pindérico-irritante como se nada
tivesse ocorrido, nunca gostei de nutrir compaixão por estas personagens,
somente um enorme respeito, não sei onde posso desaguar, daí jamais atrever-me
a lapidar! Persistir na caminhada pelo aqui apenas por um cão irritantíssimo?!
Pois, é deveras pobre, mas foi a forma encontrada para sublimar a solidão, quem
pode censurar?
- E tu? Já
descobriste a forma de sublimar a tua? Não é isso que todos procuramos?
- Devolvo-te a
questão!
- Há uns anos,
na faculdade, ouvi um grande Mestre, felizmente também os encontrei pelo
caminho, apesar de num número muito aquém dos medíocres, estes multiplicam-se
com uma facilidade assoladora, afirmar algo que muito me inquietou, ainda hoje
tem esse condão, “O homem não deve temer a solidão, porque só aí cumpre o seu desígnio.”
Não
é a primeira vez que o afirmo: É desolador ver um adulto, num Sábado ou
Domingo, a almoçar ou jantar só; há uma aura de desamparo, de queda iminente, mais
até se for homem, a mulher é mais completa, logo mais
robustecida, agora, no homem, a orfandade grita-se-lhe à distância,
esta é a realidade, não compreendo a tua questão, sabes como consegui contornar
esse problema, em verdade, nunca se soluciona, é um inimigo que nos espreita
permanentemente das trevas, sei que não temes a solidão – pois, lá está, a
mulher é mais completa, logo mais robustecida –, embora não a receies, insistes
em ocultá-la a cada instante…
- E de que
forma?
- Queres mesmo
voltar a esse tema? Mais duas ou três frases e acabamos a conversa, já sabes
onde isso vai dar…
- Sim, tens
razão, não vale a pena chatearmo-nos. Não foste tu que, certa vez, escreveste: “Viver, aprender…”?
- Ainda te lembras
disso?
- Como vês,
presto atenção ao que dizes. E sei qual foi a circunstância em que escreveste
isto!
- Uma vez mais
surpreendes-me!
- Lá fora, os
candeeiros já iluminados, de onde estou, não vejo ninguém pelos passeios, ainda
bem, cada vez gosto menos de gente, começo a achar que gente rima com mentira,
um carro ou outro a cumprir o seu regresso, serei a única que detesta o seu
trabalho? Que acha esta existência um desperdício?
- Sabes bem que
não! Agora que falas nisso, veio-me à memória o pai de uma amiga, retornados do
Ultramar, ele nunca se adaptou a esta vida comezinha, sem horizontes, lembra-te:
regressava de África; um homem inteligente, quando Deus nos dota de uma
inteligência profunda, a felicidade, por estes lados, torna-se uma utopia, só
os tolos aqui são felizes, bom, como dizia, de certa forma, a inteligência é
uma maldição, talvez por iluminar a mediocridade, o mais próspero deste mundo,
a mulher, pelo contrário, foi pródiga em se adaptar a esta realidade (a mulher
é mais completa, logo mais robustecida), de carácter
fútil, embora emanasse uma aura de simpatia indesmentível, vaidosa de si, já que as presentes
finanças não permitiam que por aí se estendesse, quando assim é, por norma,
refugiam-se no passado (“Nem imaginas… Já tive… Já fiz… Já fui…”), o habitual de quem já nada é, fumadora e consumidora
de café compulsiva, arranjou trabalho e, em abono da verdade, diga-se, lucidamente
preservou-o, era o único salário certo lá de casa, a sua vida centrou-se essencialmente nestes três contextos:
casa, café e, infelizmente, trabalho – um mal demasiado necessário; uma questão
interessante que cada um se deveria colocar: quais os contextos essenciais da
sua vida? A futilidade, no entanto, estava à superfície da pele, em contraste com
as funduras de alma do marido, apesar desta profunda diferença, o seu sentir
era palpável, só o elo do amor permite iluminar olhares, como já percebeste,
tiveram uma filha, de carácter volátil, indolente, e sem grandes dívidas para
com a inteligência, neste aspecto puxou ao lado materno, não caminhava por si,
andava ao sabor das correntes, pois, não tinha dívidas com a inteligência, à
superfície das coisas uma aura de simpatia
indesmentível, tal como a mãe, havia uma rivalidade latejante entre elas, embora
mais da filha para com a mãe, a génese estaria numa recalcada inveja pelos
holofotes sociais que a aura de simpatia indesmentível da mãe granjeava, neste
ponto, como já te referi, seguia-lhe os passos, o que a condicionava era a
indolência, daí estar sempre aquém do protagonismo materno, o tempo só agudiza
o recalcamento, este caso não foi excepção, é possível que tudo isto não
passasse despercebido ao olhar paterno, as excessivas exigências, com o tempo,
de liberdade da filha entravam em conflito com os seus valores, o único salário
certo lá de casa ser da mulher, a sua vida centrar-se essencialmente em dois
contextos: café e casa; acordar e a consciência de, à sua volta, um
sem-sentido! Há coisa pior? E uma inteligência profunda não se aliena com
facilidade, certa noite, à mesa de uma esplanada, virou-se para mim e
perguntou-me: “Quando dois sujeitos discutem, quantas verdades há?”, em silêncio,
aguardei a resposta, “Três! A verdade de um, a verdade do outro e a
Verdade”, anuí, e ruminei
o necessário na frase, há frases e pensamentos que levei décadas a iluminar,
isso é positivo, nunca gostei de coisas espontâneas, a Verdade viaja com o
Tempo, como vês, nunca me esqueci desta sua gratuita e tão profunda lição sobre
as singularidades do fenómeno humano, extraordinário, eu bebi as suas palavras,
na altura, hoje ainda um pouco, levantava, de imediato, objecções em surdina,
ao menos, dessa vez, tive a educação do silêncio, certa noite, somos
confrontados com a sua partida, foi das despedidas que mais me doeu, assim, do
nada, cinquenta e poucos anos, logo a sua frase a regressar-me: “Três!
A verdade de um, a verdade do outro e a Verdade”; escolheu uma
forma limpa e elegante (como se o houvesse para os que ficam deste lado a
assistir à partida) de se retirar de cena, químicos, sem estrépito, barulho,
sangue, apenas um adormecer sem regresso, para mim, sempre foi um acto de
profunda coragem, não me canso de o sublinhar, talvez o acto mais radical da
existência: renegá-la enquanto se respira! Ainda hoje, respeito e compreendo a
sua escolha, como não? Chegou a trazer um macaco de Angola, não cheguei a
conhecê-lo, morrera anos antes, contaram-me que saía de casa ao seu ombro, há
lugares que se nos colam na pele, talvez por ser mais fácil sorrir, é natural
que de lá viesse com um espelho pelo ombro, para não se esquecer de quem havia
sido, como é essencial, nesta caminhada pelo aqui, o espelho do nosso sorriso,
já que tanto rareia face às noites da existência…
- Como o
compreendo… A asfixiante sensação de respirarmos sós. De o nosso sentir não
encontrar um peito onde se alojar… E o que sucedeu com a mulher e a filha?
- Percorrem as
suas caminhadas… Sei que, por estes dias, a filha vive no exterior, após vários
namoros fracassados, lá acabou por engravidar de um, não sei se chegaram a
oficializar a relação à luz de Deus e dos homens, tiveram uma filha e
emigraram… A mãe permanece na mesma casa, é uma solitária amargurada, gabava-se
dos inúmeros amigos, incrível, não é? Os inúmeros amigos… A maturidade tarda em
muitos casos! Se é que chega… Quando a ouvia proferir essas máximas, “Eu
tenho muitos amigos!”, só me suscitava compaixão,
pouco mais, nem ousava replicar, uma voz minha dizia para me silenciar, apenas
isso, “Eu
tenho muitos amigos!”, apoia-se numa muleta, deambula, de dia, pelo bairro
de sempre, a sua grande companhia, até há uns anos, era a irmã, um pouco mais
nova, o coração acabou por ceder a tanto café e demasiados cigarros, também era
de carácter fútil, embora distante de uma aura de simpatia indesmentível e nada
vaidosa de si, para além dos cafés e dos cigarros, a sua vida centrava-se no
único filho, nos animais e no marido, além das imperativas telenovelas, claro,
de vez em quando tomava partido num dos temas fracturantes do momento, quando o
discutia chegava a ruborizar, no fundo, era uma boa mulher, falo dela com
saudades, ambas estavam aquém da profundidade de pensamentos que permitem
verbalizar certas frases (“Três! A verdade de um, a verdade do outro e a Verdade”), apesar da
muleta, desde sempre, se arvorar a certos voos para os quais nunca teve asas,
pois, a vaidade não se cingia à imagem, os animais (cães, gatos, pássaros…)
ocupavam o terceiro lugar na lista das irmãs, a seguir aos cafés e cigarros,
ambas tinham cães, gatos, pássaros, se, por acaso, ouvissem algum latir ou
miar, pelas ruas, agonizante, traziam, de imediato, para casa, ou procuravam
logo providenciar-lhe um tecto para silenciar a aflição, pelo menos, uma vez por
mês, no regresso a casa, após mais uma noite de cafés e cigarros, um desvalido
latir ou miar encontrava aqueles piedosos ouvidos, logo acorriam ao seu
encontro, para lhes proporcionar calor e conforto, como se um imperativo-ético
por voz oculta, agora que te conto isto, penso nos inúmeros rostos que comigo
se cruzaram nesta caminhada, meu Deus, nem de um décimo me recordo, se, de
repente, me pedissem para enumerar dois ou três, lá estaria o teu…
- Deixas-me
honrada. Concluímos, há muito, que algo de indefinível nos une… Lembras-te da
primeira vez que nos vimos?
- Sim, claro,
como não? Fiquei perdido no teu olhar. Por muito que lhe tentasse fugir,
acabava por sempre lhe regressar, como se só aí pudesse repousar. E tu és tudo,
menos serenidade…
- Olha que tu…
- Tanta gente
naquela sala, e eu logo perdido nessas labaredas do teu rosto, sabes muito bem como
podes ser hipnotizante, creio que, nesses espelhos ardentes, cada um se revê na
sua melhor versão, um dom apenas ao alcance de uma feiticeira… Foste a última a
chegar, surpreendeu-te a mudança, como fui tão desatento aos pormenores
essenciais da minha vida, sem dúvida aos mais prometedores de luz, já que para
as trevas sempre tive uma acuidade demasiada, enfim… Vem aí o Natal, como
detesto esta época! Não suporto! Com excepção das luzes, o único aspecto
suportável desta quadra, bem sabes que não suporto sombras, já me bastam as da
minha alma.
- Mais um
aspecto que nos une. No meu caso, pelas memórias que se me levantam, nunca
compreendi, ao certo, a razão desse teu asco, sinceramente pensei que fosse uma
questão de irreverência, uma busca de originalidade, a ânsia de ser diferente que
sempre te caracterizou… No que me respeita, como em tempos te contei, foi a
partida do meu pai! A sua primeira saída de casa, no fundo, sempre a mais
dolorosa, teria os meus seis ou sete anos, uma sombra desceu sobre a casa, não
sei de onde veio, mas eu senti-a, quase a tacteava, desde o amanhecer, ao longo
desse dia, vi minha mãe envelhecer décadas, não, não estou a exagerar, minha
mãe envelheceu décadas num só dia, a dor pela partida de meu pai, a revolta
silenciada por ter sido trocada, como deve ser doloroso: ser-se trocado, um
atestado de insuficiência, sem direito a réplica, questões a emergir
incessantemente num recanto de si (“O que a outra tem a mais do que eu? O que lhe pode
oferecer de novo? Por que sorrirá mais a seu lado?”); e a idade em que
isso sucedeu, já no Outono da existência, quando o frio do Inverno já no
horizonte, a vida a golpeá-la com esta violência, a angústia pela
aproximação da noite de Natal, por saber que um lugar estaria vazio à mesa, que
seria soterrada pelas nossas questões, sobretudo pelos nossos olhares, talvez
lhes lê-se uma censura calada, pelo fim do casamento, logo na noite consagrada
à família, uma pergunta repetir-se-ia, entoada, com indignação, por cada um: “Mãe: onde está o pai?” Escolheu o dia que nos seria mais dilacerante,
Natal, precisamente, durante o ano, a única noite em que todos estaríamos
reunidos à mesa para jantar, coitada, como detesto este adjectivo, hoje talvez
o corrija, que força teve para ali estar, impassível, enfrentou-nos com a maior
naturalidade possível, no fundo, a forma mais sensata de lidar com tal
problema: “Mãe:
onde está o pai?”, “O vosso pai conheceu uma senhora, apaixonou-se, foi viver
com ela, está no seu direito, não concordam?”, nessa altura, o meu irmão mais velho andaria pelos
doze ou treze anos, nem ousou responder, os restantes de nós mantivemos o
silêncio, por outras palavras, uma respeitosa anuência, lembro-me vagamente do
resto dessa noite, apenas que, volta-e-meia, o olhar de cada um fugia para a
cadeira que devia estar ocupada pelo nosso pai, procurávamos disfarçar para não
magoar mais a nossa mãe, desta distância, como admiro a estrutura daquela
mulher, conseguiu manter-se na vertical, conheceu cedo a dureza do trabalho,
horas e horas a segurar o cabo de uma esfregona, não seria um palerma, como o
meu pai, a derrubá-la! Eu fiquei destroçada, interpretei, na altura, como uma
traição, senti-me trocada, achei que, afinal, não gostava tanto assim de mim,
era descartável… Desde então, sempre que ouço Natal, é essa memória a
povoar-me… Procuro, dentro do possível, superar, a memória, no entanto, teima
em regressar, é da sua essência o carácter indelével, memórias: bênção ou
maldição.
- Devias saber
que não gosto de ajuntamentos. Confusão. Hipocrisia. Há muito deixei de
festejar o meu aniversário. Mais um dia sob este céu, apenas e só, como todos
os outros… A verdade talvez more noutro lado, nunca fui
muito de festas, risadas altas, histerias, com o tempo, o pouco se
transformou em aversão. Só festejo, curioso, com o futebol, o meu clube, claro,
embora, também aí, os motivos estejam num decréscimo galopante…
- Quem te
conhecer à superfície das coisas, dirá precisamente o oposto, mas eu conheço os
subterrâneos da tua alma, creio, sinceramente, ter sido a única com arrojo para
tal, não o digo com arrogância, apenas a lucidez de constatar um facto, estou
errada?
- Não sou eu que
devo ajuizar tal. Se o dizes, sabê-lo-ás. De repente, olhamos para alguém e
percebemos que há muito nos conhecemos, um estranho elo impele-nos na sua
direcção, foi o que contigo se passou, conhecia-te, só não me lembrava de onde
e quando, estava ditado o destino dos meus passos, como é inebriante a magia
dessa ligação, no meio de todas aquelas caras, só pelo teu rosto me sentia a
regressar a casa…
- E como ambos,
na prática, desconhecemos esse conceito!
- Verdade… Ainda
hoje me questiono como conseguiste ler tanta coisa em mim… Sempre pensei ser um
excelente actor no exercício das minhas funções!
- Só para os
tolinhos, é notória a tua irritabilidade e insatisfação pelas vezes que procuras
as janelas, anseias por horizontes, quão fulminante és com os cretinos, isso
agradou-me desde logo, confesso, a constante mobilidade e ligeireza com que
andas pela sala, uma ânsia de partida impronunciada, não te querias demorar por
ali, percebia-se não ser lugar onde pousasses a mala, também não seria ali que
pousava a minha, e, claro, a tua outra vida para além daquilo, onde
verdadeiramente derramas esse mundo que te habita, quem tem um mundo dentro de
si não se pode contentar com salas e cretinos, estou errada?
- Claro que não.
A tua leitura dos factos está correctíssima, não esperava outra coisa de ti, só
quem está familiarizado com a dor tem tamanha facilidade em ler o mundo, estou
errado? Quem te magoou tanto? Depois de tanto tempo, continuas com tantas portas
fechadas?
- Como todos,
não é verdade?
- Discordo!
Aproximámo-nos numa fase em que escancarei publicamente quase todas, não é
verdade?
- Sim e não.
Continuas, mesmo assim, com muitas por abrir. Ou estou enganada?
- Falávamos de
ti, se bem me lembro…
- Achas que é
fácil o meio onde cresci? Às vezes, dou por mim a olhar para trás, e acho que
foi um milagre aqui ter chegado. Não te acontece o mesmo?
- Sempre que me
debruço sobre o passado: como aqui cheguei? Pois, um milagre… Apesar de tudo,
há sempre em mim ou à minha volta uma dor indistinta, um aperto no peito, como
se por um caminho que não tivesse percorrido… Estranho, não é? De vez em
quando, concluo que somos seres demasiado complexos, outras que somos seres
bastantes estúpidos! Cambaleio nesta ambivalência, e ainda não me decidi. O
problema, apesar de reconhecer o milagre de aqui ter chegado, é essa dor, a
insatisfação que me sombreia a face…
- Acho curioso
falares de sombras, então se…
- Não me venhas
com a ladainha da desvalida, por favor, se há alguém que conhece o Inferno, e
regressou para o relatar, sou eu!
- Devolvo-te o
elogio de desvalidos! Sabes qual é um dos teus grandes problemas? É quando te
deixas enfeitiçar e caminhas atrás desse ego insuflado!
- Desculpa,
nunca me tinham dito tal! Esse é um dos teus encantos: és uma lúcida-frontal!
- Não precisas
de dar graxa… Sabes bem que nunca me vitimizei, nem gosto da
ladainha-dos-desfavorecidos do existir, se partilho certas coisas contigo, é
por saber que as compreendes de uma outra forma, há pouco disseste que nunca
foste muito de festas, risadas altas, histerias, pois eu também não, e não fui
por ter havido aniversários sem os parabéns de pai e mãe, o primeiro por
esquecimento, a segunda por cansaço, durante anos chegou a casa já a noite
pensava em partir, trabalhava nas limpezas das sucursais-bancárias, agora que
falo nisto, não me recordo de ver aquela mulher sem as mangas arregaçadas, nunca
se escusou a uma oferta de trabalho, mesmo assim não trazia o suficiente,
éramos muitos para tão esquálida bolsa, isso leva-me a uma questão: o que é a
fome? Uma criança que vai para a escola com o estômago contraído, salivar com o
cheiro a bolos do refeitório, mas com a certeza pétrea de não comer nenhum, os
bolsos numa permanente leveza contrastavam com a alma da menina que nunca fui, os
outros sempre a ostentar marcas, como se saídos de uma linha-de-produção, um
halo à sua volta intransponível, a menos que o salvo-conduto da marca, claro,
ali estava, reluzente, a fronteira entre a pertença ou a exclusão, não preciso
de te esclarecer onde sempre me posicionei, ou fui colocada, por um lado, nunca
me importei, odiava queques, linhas-de-produção, e aquele efeito de clonagem
das marcas, coitados, precisavam disso para se afirmar, simultaneamente também
nutria compaixão, eu tinha o estômago contraído, eles tinham os horizontes,
questionei-me, tanto, qual seria o mais pobre?
- Ainda hoje
cultivas um estilo muito próprio de vestir, percebo, agora, a lonjura das suas
raízes. Consideras que essas vivências te tornaram mais forte?
- É-me muito
mais fácil dizer adeus – apenas isso! A fome muda-nos dramaticamente toda a
perspectiva do mundo. Este não é o lugar do sonho, aqui enterram-se os mortos,
logo o sonho habita noutro lado, não concordas?
- Como podia
discordar? Veio-me à memória o meu primeiro dia de
aulas…
- De onde veio
tal?
- Boa pergunta!
Tens este efeito em mim, suavizas-me o pensar, redescubro-me, já não há
máscaras contigo, sabe-lo bem, tiveste o privilégio, na primeira-fila, de as
conhecer, hoje sorri-lhes, na altura detestaste algumas, claro que ainda as
coloco, dão-me algum gozo, falava do meu primeiro dia de aulas, foi o meu pai
levar-me, nessa altura, ela trabalhava longe, acho que, de certa forma, não se
importava da distância, como se uma segurança dos filhos – sob o escudo
perfeito: ganhar o pão-nosso de cada dia –, deixou-me ao portão, nem do carro
saiu, diante de mim, um oceano de miúdos, até então, jamais tinha visto tantos
juntos, nem sonhava que tal fosse possível, antes de entrar, procurei ver se
meu pai já partira, ainda não, fizera inversão-de-sentido, persistia a
olhar-me. Como se avaliasse a minha reacção, ostentava um
sorriso de entendimento, não era encorajador, compassivo, nada disso, somente
compreensão, as lágrimas instantâneas da meninice nasciam-me,
refreei-as e avancei, não vejas aqui qualquer laivo de heroicidade, pelo
contrário, cedo compreendi que, nesta vida, há coisas de que não podemos fugir,
os miúdos com quem brincava na praceta eram para lá de uma dúzia, naquele
recreio estavam perto de uma centena, foi um choque para um puto de seis anos,
logo me rodearam com mil e uma perguntas (Quem era? O meu nome? De onde vinha?
Onde morava?), num lugar de mim nasceu-me um orgulho indesmentível, fôra capaz
de refrear as lágrimas instantâneas da meninice, até hoje, só contei este
episódio uma vez, acreditas? Nem sei porquê, algo de que me orgulho, não é
fácil, com seis anos de idade, numa inusitada e tão adversa circunstância,
possuir tal autocontrole, a segunda vez que olhei para trás, só o vazio da
estrada, meu pai partira, nunca falou sobre este dia, confesso a importância,
antes de dar o primeiro passo, em direcção à entrada, de encontrar um sorriso
de entendimento, não era encorajador, compassivo, nada disso, somente
compreensão, é o que mais pedimos nesta vida, não é verdade?
- Não me lembro
do meu primeiro dia de escola, com esse pormenor muito menos, creio que não
sofri um choque tão grande, talvez por ter irmãos, dois ou três com idade
próximas, talvez por a escola ficar duas ruas abaixo de casa, tudo muito
distante de colégios-particulares…
- Olha a
benesse: um trauma para o resto da vida! Agora a sério, apesar dos nossos
percursos distintos, temos demasiados pontos em comum… Não encontrei, até hoje,
alguém que me desse tanto espelho…
- Calculo que
fales da noite das nossas almas…
- Alguma dúvida?
Desde muito cedo, intuí haver, em mim, uma parte por amanhecer, um sentir de orfandade,
de desamparo face ao aqui, nunca consegui viver de eternidade em eternidade,
como a maioria, sempre estive consciente de estar de passagem…
- A proximidade
da morte não concorreu para essa ideia?
- Não, longe
disso! Repito: foi desde muito cedo… A consciência de que havia divisões, em
mim, que jamais sairiam da sombra. Qualquer esforço por iluminá-las estaria
condenado ao malogro, não sei de onde me vinha esta convicção, simplesmente me
habitava, jamais, até hoje, a partilhei, estranho esta vontade, hoje, de falar,
dizem que o entardecer agiliza o verbo, e que a companhia certa também, talvez
por subtrair o pudor destas questões. Sempre amei dialogar contigo! Dás réplica
e és sagaz nas observações, tão raro, a maioria só se repete e provoca-me
bocejos, trago no bolso duas ou três frases de ocasião para complementar as
boçais observações que ouço diariamente, ficam felizes, julgam-se compreendidos
e donos-da-razão, queres melhor? Concluí, há uns tempos, que, pelo caminho, se
perdeu algo essencial: a capacidade de se ouvir o outro; tão raro, por estes
dias, encontrarmos alguém com este dom: saber ouvir; por norma, ninguém nos
ouve: julgam-nos à medida que falamos, se o nosso pensar se desvia do padrão
estabelecido… Como isso me seduziu em ti, criaste os teus próprios valores e
regras; nem sonhas como isso me fascinou, pareceu-me, de repente, que se me
abria a porta para uma realidade-paralela infinitamente mais sedutora…
- Deixas-me
lisonjeada, hoje sou outra, isso foi numa outra vida.
- Não seremos
sempre o mesmo, só mudamos as roupagens?
- Não me parece!
Não tenho nada que ver com a menina pobre que olhava por uma janela, de
estômago contraído, o fundo-da-rua, na ânsia do regresso do pai ao lar…
- Não serás hoje
a ansiada negação dessa menina? Desculpa, não te quero ofender…
- Alguma vez
precisámos de máscaras? Então, para quê esse maquilhar, com palavras, de uma
questão óbvia e directa? Essa menina sonhava, por outras palavras, tinha
esperança, eu, como sabes, vivo de factos, há muito perdi o sonho, dizem que
sou fria, é mentira, simplesmente desaprendi a esperança.
- Pelos vistos,
até no amor…
- Sobretudo aí!
- Foste
imensamente magoada, é normal que tenhas criado defesas…
- Agora deste em
consertador de corações?
- Se percebesse
disso, começaria por consertar o meu, não te parece?
- Lá vai outra
vez a velha com o cão à rua, incrível! Mais de uma dezena de vezes, por dia,
passear aquele bicho irritante – o demoniozinho do bairro! Não há dia que não a
veja! Sabes, às vezes receio terminar assim, o desígnio de vida restringido a
um rafeiro ou a gatos, como há muitas, novas ou velhas… Quando alguma amiga ou
conhecida me diz que vai ficar com um gato, começo logo a pensar que muito mal
vai de amores… É indissociável, hás-de reparar: gatos: ou velhas ou solteironas
inveteradas! Desculpa, falavas de consertar o teu coração, mas quem, de facto,
o magoou?
- Não tentes
subir um degrau, não vale apena, e até te fica mal, foi a
vida, com o seu tumultuoso caudal, a única com esse poder… Há muitos que se
escondem da vida, ou a família procura criar-lhes refúgios, pura ilusão, tarde
ou cedo, a vida encontra-os e, com toda a sua ferocidade, apresenta-lhes os
factos do existir. Desta convicção ninguém me demove. Tenho visto muita coisa,
demasiadas quedas de quem se achava gente…Veio-me, agora, à memória, uma antiga
vizinha, casal, dois filhos, rapaz e rapariga, ambos frequentavam
colégios-particulares caríssimos, mais valia doar esse dinheiro aos
necessitados (qual o mais burro? Pois, questão complexa…), cada um com a sua
mota, conversas de superfície, mesmo assim com muito esforço, a boca sempre
aberta, talvez pela alegria de respirar, ou para conter o imperativo cigarro da
moda, sempre providenciava um ar de reflexão e maturidade – a efemeridade da
imagem a um olhar mais atento –, o pai era um sujeito anafado, trabalhava com
peixe, em minha casa chamavam-no de peixeiro, há trabalhos onde, por muito que
se tente, o cheiro jamais larga o indivíduo, aspecto boçal – também a um olhar
mais atento –, o carro com a imperativa marca de prestígio, muito verniz, porém
o focinho de suíno era uma evidência – a um olhar mais atento, claro –, o
caprichoso caudal do tempo desconhece a permanência, nós bem insistimos nesta
ilusão, tarde a compreendemos, muitos nem aqui chegam, há uns anos, encontrei
essa vizinha a trabalhar, como lojista, numa lojeca de
um centro-comercial de subúrbio, assim que me viu, o sobressalto deu lugar
à consternação, fiz questão de a cumprimentar, revesti-me de toda a ironia e
acrimónia possíveis, imaginas a justificação dela para ali estar? Calculo que
não, vê o desespero da presa acossada: “Estou a fazer um favor a
uma amiga…” Se sempre tive a
pior das impressões dessas quatro figuras, esta frase só a consubstanciou, claro
que lhe sorri desdenhosamente e segui, dos filhos felizmente não voltei a ter
notícias, o peixeiro vi-o uma vez a caminhar amparado pela mulher, de coquete a
lojista de um centro-comercial de subúrbio, pois, a vida e o seu tumultuoso
caudal, acho que já nem é vivo, não me alongo em considerações, escusas de
reunir o amaldiçoado politicamente-correcto, em menos de duas décadas tudo perderam,
não falo de dignidade porque sempre desconheceram esse conceito, repara: desde
puto sempre me ensinaram que o trabalho dignifica o
homem! Aquela mulher, a caminhar para o fim do Outono da vida, persistia
com os seus laivos de arrogância (“Estou a fazer um favor a uma amiga…”), desconhecia algo
tão essencial: o trabalho dignifica o homem! Creio ter-me cruzado uma ou duas
vezes com ela pelos passeios ou nas compras, já sabes da minha malfadada
memória-visual, às vezes é uma vantagem, também não fazia questão de a
cumprimentar, essa é a verdade, podia contar-te mais…
- Não, não é
preciso… Sabes bem que muito pisei o chão dos caídos. Histórias assim conheço
sobejamente! E bem piores! Gente que comia pão com manteiga às refeições para
andar vestida com marcas, que corria os estores durante, pelo menos, uma
semana, nem de casa saía, para depois se pavonear que esteve de férias num
qualquer destino longínquo, e a palidez a gritar bem alto a sua mentira, enfim,
tanta coisa, às vezes penso que o homem é um barco sem leme, creio não haver
limites para os paradoxos humanos, olho, de novo, pela janela, tudo agora
sossegado, como se este mundo fosse um lugar de paz, enfim, mais um pouco e
chega o Natal, sabes como odeio esta época, pelo Inverno, pela hipocrisia, pela
alegria plástica, pelo consumo desenfreado, creio que por tudo, como estamos
numa de confissões, há um aspecto que a tudo se sobrepõe, uma memória, de há
uns largos anos, um Natal que sozinha passei, eles, sempre com a desculpa de
talvez ser o último da minha avó-materna, rumaram para a aldeia, insisti em
ficar, no fundo, queria ver quanto tempo despendiam a tentar convencer-me a
acompanhá-los, em verdade, não foi com espanto a compreensão chegada de que nem
uma frase gastaram para me persuadir, nada, tudo decorreu, para eles, com a
naturalidade possível, como se eu fosse uma mera estranha, meus irmãos
acompanharam-nos, e tão críticos eram nas suas costas, de facto, a nossa
compreensão das coisas é muito limitada, sempre vemos o mundo da ilha de nós,
sob a anestesia de uma dor demasiada, que na altura me consumia, assisti aos
preparativos da viagem, à saída de casa, não fui à janela ver o carro a
abandonar a rua, foi ponto-de-honra para mim, e, de repente, senti-me a única
habitante do mundo, os ecos da casa recrudesciam, as divisões pareceram
triplicar de tamanho, desceu-me uma súbita paz e simultaneamente uma dor
estranha, como se algo em mim latejasse e num murmúrio dissesse: “Não são dias para se
estar só… Não são dias para se estar só… Não são
dias para se estar só…” Ainda hoje, desconheço de onde me chegava essa voz,
creio que jamais saberei a sua fonte, o certo é que não me abandonou durante
aqueles dias, e sempre que os recordo, regressa-me, com a mesma eloquência de
então (“Não são dias para se
estar só…”), de repente, estou diante da sempre tão fria evidência de um facto: há
dias que foram feitos para não estarmos sós! E tão mal-acompanhada estava, com
a minha demasiada dor, na altura pensei ter reagido bem, no entanto, como vês,
as marcas perduram, sempre ficam, por mais que as tentemos maquilhar, como é
evidente, não era com eles que queria estar, daí a minha demasiada dor, porém
doeu-me a ligeireza com que me viraram costas, logo numa altura em o mundo
anuncia: “Não
são dias para se estar só…” Mas assim fiquei,
só, durante esses dias, recordo-me bem: passei essa noite de Natal a rever
filmes, do resto pouco me lembro; a dor
já me consumia de uma forma indizível, como demorei a concluir que tão
descartável lhes era, soube-o nessa altura, todavia optei por soterrar essa
certeza, o instinto de sobrevivência norteia-nos mais os passos do que
julgamos, creio que foi por aqui a selecção das minhas memórias, de forma
compreensível, como deves calcular, desde então, cresceu-me uma repulsa
visceral por esta época, e a tudo que lhe esteja associado, daqui não me
consigo demover, creio ser a mais hipócrita altura do ano, regressaram, todos,
com um ar pesaroso, ainda hoje não percebi se pelas saudades da bela família
deixada na província ou se por eu não ter deixado a casa…

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