Livros do Escritor

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quarta-feira, 6 de agosto de 2025

O lento esvoaçar das cortinas pela manhã




Los veranos que te inventas,

Sales del agua, eres de piedra.

Ten cuidado, estoy muy cerca.

Los Veranos, McEnroe

 

O maior paradoxo do desejo não está em procurar-se sempre outra coisa: está em se procurar a mesma, depois de se ter encontrado.

Vergílio Ferreira



ÍNDICE

  

Pai………………………………………………………………..

Mãe……………………………………………………………….

Filho……………………………………..……………………….

 

 

 

Pai

 


 

- Estou a olhar, pela janela, a rua. Já reparaste, hoje cheguei a casa, cinco e pouco da tarde, a noite já abraçava o mundo, nessa altura, não sei porquê, sempre me pareceu despertar todas as dores adormecidas em nós… Lá vai a vizinha, do prédio em frente, com o cão à rua. Fá-lo mais de uma dezena de vezes por dia, incrível! Não achas? Viúva, o cão tornou-se-lhe o único parente, há tanta solidão no mundo… E tu, onde estás?

- Deitado, a olhar não o tecto, mas paisagens idas… Às vezes receio afogar-me na melancolia que me habita… Ando sempre debruçado sobre a janela do passado… Talvez por lá termos ficado. Nada me prende ao aqui, não desejo o amanhã! Há coisa pior? Não desejo amanhãs!

- Tens sonhado?

- Menos, mas, sim, e continuam muito vívidos.

- Ainda sonhas connosco?

- Por que perguntas? Não te foste embora?

- Vamos voltar à mesma conversa? Isso foi há anos, não havia outra possibilidade. Tive de pensar pelos dois. E não respondeste: Ainda sonhas connosco?

- Alguma vez deixei? E tu?

- De vez em quando… Lembras-te daquela noite em que te liguei?

- Sim…

- Se te dissesse onde estava, o que pensava fazer…

- Então? Lembro-me de te ouvir angústia, trocámos duas ou três frases, disseste “Deixa estar…” Eu repeti: “Queres que vá ter contigo? Queres que vá ter contigo?” Sabes, um aceno teu, nessa noite, e eu virava costas ao mundo! Como invejo os que viram costas ao mundo – seja qual for a razão!

- Estava no terraço do meu prédio, queria ir-me embora… Percebeste…? De repente, a tua imagem, não, foi a tua voz, a ecoar em mim, os dedos com avidez a procurar o teu nome, o receio pela hora, não, não te iludas, como receei ligar-te àquela hora da noite, assim que atendes, uma serenidade nasceu-me, soube, de imediato, haver um porto-seguro à minha espera neste mundo… E como, nesse momento, dele precisava! Mas bastou-me a tua voz. Nunca quis que fizesses algum disparate! Mais tarde ou mais cedo, virias cobrá-lo!

- Pelos vistos, tornaste-te adivinha!

- Pára com as ironias! Sabes bem que não se trata de nada disso! Eu fiz o que achei melhor para os dois! Ou achas que não te amei?

- Se amaste, passou-te depressa.

- Se o dizes…

- Sempre me senti, não sei porquê, nas faldas desta coisa que apelidam de sociedade. Sempre em busca de um grupo onde me revisse na totalidade, no fundo, que me desse um espelho-integral do “eu”, ainda hoje o busco, mas, em verdade, acho que tal não existe… Daí este meu lado desenraizado, quando te conheci, e os nossos olhares se encontraram, percebi-te também uma náufraga, e como isso me atraiu em ti… Com o tempo, compreendi, muito a contragosto, que procuravas, de todas as formas, integrar-te, aqui começaste a morrer-me enquanto ideia… Não o esperava! Desiludiste-me, e muito! Nunca compreendi como, com tanta irreverência, originalidade, ousadia, essa latente necessidade de pertença ao rebanho…

- A vizinha do cão regressa…

- Agora desconversas?

- Pelo contrário! Acho uma figura fascinante, como se um espelho da inquietude do hoje, viúva, uma filha distante, só lhe resta o cão – a coisinha mais irritante que já conheci de quatro-patas, minúscula, pindérica, ladra a tudo que se mexe, até para os carros, já ouvi miúdos chamarem-lhe o demoniozinho do bairro, vê bem a fama alcançada –, vai, pelo menos, dez vezes por dia passeá-lo à rua, já viste? Pelo menos, dez vezes por dia! Há uns tempos…

- Vais continuar com a história da tua vizinha e do cão irritante?

- Espera! Deixa-me terminar! Vais achar interessante, eu sei que te enterneces com estas personagens, há uns tempos, irritante como é, o pindérico fê-la desequilibrar-se, alta e rechonchuda caiu no passeio, partiu um braço, além dos inevitáveis arranhões… Na manhã seguinte, seriam umas sete horas, de braço-ao-peito, ei-la a cumprir o seu imperativo-de-vida, e o pindérico-irritante como se nada tivesse ocorrido, nunca gostei de nutrir compaixão por estas personagens, somente um enorme respeito, não sei onde posso desaguar, daí jamais atrever-me a lapidar! Persistir na caminhada pelo aqui apenas por um cão irritantíssimo?! Pois, é deveras pobre, mas foi a forma encontrada para sublimar a solidão, quem pode censurar?

- E tu? Já descobriste a forma de sublimar a tua? Não é isso que todos procuramos?

- Devolvo-te a questão!

- Há uns anos, na faculdade, ouvi um grande Mestre, felizmente também os encontrei pelo caminho, apesar de num número muito aquém dos medíocres, estes multiplicam-se com uma facilidade assoladora, afirmar algo que muito me inquietou, ainda hoje tem esse condão, “O homem não deve temer a solidão, porque só aí cumpre o seu desígnio.” Não é a primeira vez que o afirmo: É desolador ver um adulto, num Sábado ou Domingo, a almoçar ou jantar só; há uma aura de desamparo, de queda iminente, mais até se for homem, a mulher é mais completa, logo mais robustecida, agora, no homem, a orfandade grita-se-lhe à distância, esta é a realidade, não compreendo a tua questão, sabes como consegui contornar esse problema, em verdade, nunca se soluciona, é um inimigo que nos espreita permanentemente das trevas, sei que não temes a solidão – pois, lá está, a mulher é mais completa, logo mais robustecida –, embora não a receies, insistes em ocultá-la a cada instante…

- E de que forma?

- Queres mesmo voltar a esse tema? Mais duas ou três frases e acabamos a conversa, já sabes onde isso vai dar…

- Sim, tens razão, não vale a pena chatearmo-nos. Não foste tu que, certa vez, escreveste: “Viver, aprender…”?

- Ainda te lembras disso?

- Como vês, presto atenção ao que dizes. E sei qual foi a circunstância em que escreveste isto!

- Uma vez mais surpreendes-me!

- Lá fora, os candeeiros já iluminados, de onde estou, não vejo ninguém pelos passeios, ainda bem, cada vez gosto menos de gente, começo a achar que gente rima com mentira, um carro ou outro a cumprir o seu regresso, serei a única que detesta o seu trabalho? Que acha esta existência um desperdício?

- Sabes bem que não! Agora que falas nisso, veio-me à memória o pai de uma amiga, retornados do Ultramar, ele nunca se adaptou a esta vida comezinha, sem horizontes, lembra-te: regressava de África; um homem inteligente, quando Deus nos dota de uma inteligência profunda, a felicidade, por estes lados, torna-se uma utopia, só os tolos aqui são felizes, bom, como dizia, de certa forma, a inteligência é uma maldição, talvez por iluminar a mediocridade, o mais próspero deste mundo, a mulher, pelo contrário, foi pródiga em se adaptar a esta realidade (a mulher é mais completa, logo mais robustecida), de carácter fútil, embora emanasse uma aura de simpatia indesmentível, vaidosa de si, já que as presentes finanças não permitiam que por aí se estendesse, quando assim é, por norma, refugiam-se no passado (“Nem imaginas… Já tive… Já fiz… Já fui…”), o habitual de quem já nada é, fumadora e consumidora de café compulsiva, arranjou trabalho e, em abono da verdade, diga-se, lucidamente preservou-o, era o único salário certo lá de casa, a sua vida centrou-se essencialmente nestes três contextos: casa, café e, infelizmente, trabalho – um mal demasiado necessário; uma questão interessante que cada um se deveria colocar: quais os contextos essenciais da sua vida? A futilidade, no entanto, estava à superfície da pele, em contraste com as funduras de alma do marido, apesar desta profunda diferença, o seu sentir era palpável, só o elo do amor permite iluminar olhares, como já percebeste, tiveram uma filha, de carácter volátil, indolente, e sem grandes dívidas para com a inteligência, neste aspecto puxou ao lado materno, não caminhava por si, andava ao sabor das correntes, pois, não tinha dívidas com a inteligência, à superfície das coisas uma aura de simpatia indesmentível, tal como a mãe, havia uma rivalidade latejante entre elas, embora mais da filha para com a mãe, a génese estaria numa recalcada inveja pelos holofotes sociais que a aura de simpatia indesmentível da mãe granjeava, neste ponto, como já te referi, seguia-lhe os passos, o que a condicionava era a indolência, daí estar sempre aquém do protagonismo materno, o tempo só agudiza o recalcamento, este caso não foi excepção, é possível que tudo isto não passasse despercebido ao olhar paterno, as excessivas exigências, com o tempo, de liberdade da filha entravam em conflito com os seus valores, o único salário certo lá de casa ser da mulher, a sua vida centrar-se essencialmente em dois contextos: café e casa; acordar e a consciência de, à sua volta, um sem-sentido! Há coisa pior? E uma inteligência profunda não se aliena com facilidade, certa noite, à mesa de uma esplanada, virou-se para mim e perguntou-me: “Quando dois sujeitos discutem, quantas verdades há?”, em silêncio, aguardei a resposta, “Três! A verdade de um, a verdade do outro e a Verdade”, anuí, e ruminei o necessário na frase, há frases e pensamentos que levei décadas a iluminar, isso é positivo, nunca gostei de coisas espontâneas, a Verdade viaja com o Tempo, como vês, nunca me esqueci desta sua gratuita e tão profunda lição sobre as singularidades do fenómeno humano, extraordinário, eu bebi as suas palavras, na altura, hoje ainda um pouco, levantava, de imediato, objecções em surdina, ao menos, dessa vez, tive a educação do silêncio, certa noite, somos confrontados com a sua partida, foi das despedidas que mais me doeu, assim, do nada, cinquenta e poucos anos, logo a sua frase a regressar-me: “Três! A verdade de um, a verdade do outro e a Verdade”; escolheu uma forma limpa e elegante (como se o houvesse para os que ficam deste lado a assistir à partida) de se retirar de cena, químicos, sem estrépito, barulho, sangue, apenas um adormecer sem regresso, para mim, sempre foi um acto de profunda coragem, não me canso de o sublinhar, talvez o acto mais radical da existência: renegá-la enquanto se respira! Ainda hoje, respeito e compreendo a sua escolha, como não? Chegou a trazer um macaco de Angola, não cheguei a conhecê-lo, morrera anos antes, contaram-me que saía de casa ao seu ombro, há lugares que se nos colam na pele, talvez por ser mais fácil sorrir, é natural que de lá viesse com um espelho pelo ombro, para não se esquecer de quem havia sido, como é essencial, nesta caminhada pelo aqui, o espelho do nosso sorriso, já que tanto rareia face às noites da existência…

- Como o compreendo… A asfixiante sensação de respirarmos sós. De o nosso sentir não encontrar um peito onde se alojar… E o que sucedeu com a mulher e a filha?

- Percorrem as suas caminhadas… Sei que, por estes dias, a filha vive no exterior, após vários namoros fracassados, lá acabou por engravidar de um, não sei se chegaram a oficializar a relação à luz de Deus e dos homens, tiveram uma filha e emigraram… A mãe permanece na mesma casa, é uma solitária amargurada, gabava-se dos inúmeros amigos, incrível, não é? Os inúmeros amigos… A maturidade tarda em muitos casos! Se é que chega… Quando a ouvia proferir essas máximas, “Eu tenho muitos amigos!”, só me suscitava compaixão, pouco mais, nem ousava replicar, uma voz minha dizia para me silenciar, apenas isso, “Eu tenho muitos amigos!”, apoia-se numa muleta, deambula, de dia, pelo bairro de sempre, a sua grande companhia, até há uns anos, era a irmã, um pouco mais nova, o coração acabou por ceder a tanto café e demasiados cigarros, também era de carácter fútil, embora distante de uma aura de simpatia indesmentível e nada vaidosa de si, para além dos cafés e dos cigarros, a sua vida centrava-se no único filho, nos animais e no marido, além das imperativas telenovelas, claro, de vez em quando tomava partido num dos temas fracturantes do momento, quando o discutia chegava a ruborizar, no fundo, era uma boa mulher, falo dela com saudades, ambas estavam aquém da profundidade de pensamentos que permitem verbalizar certas frases (“Três! A verdade de um, a verdade do outro e a Verdade”), apesar da muleta, desde sempre, se arvorar a certos voos para os quais nunca teve asas, pois, a vaidade não se cingia à imagem, os animais (cães, gatos, pássaros…) ocupavam o terceiro lugar na lista das irmãs, a seguir aos cafés e cigarros, ambas tinham cães, gatos, pássaros, se, por acaso, ouvissem algum latir ou miar, pelas ruas, agonizante, traziam, de imediato, para casa, ou procuravam logo providenciar-lhe um tecto para silenciar a aflição, pelo menos, uma vez por mês, no regresso a casa, após mais uma noite de cafés e cigarros, um desvalido latir ou miar encontrava aqueles piedosos ouvidos, logo acorriam ao seu encontro, para lhes proporcionar calor e conforto, como se um imperativo-ético por voz oculta, agora que te conto isto, penso nos inúmeros rostos que comigo se cruzaram nesta caminhada, meu Deus, nem de um décimo me recordo, se, de repente, me pedissem para enumerar dois ou três, lá estaria o teu…

- Deixas-me honrada. Concluímos, há muito, que algo de indefinível nos une… Lembras-te da primeira vez que nos vimos?

- Sim, claro, como não? Fiquei perdido no teu olhar. Por muito que lhe tentasse fugir, acabava por sempre lhe regressar, como se só aí pudesse repousar. E tu és tudo, menos serenidade…

- Olha que tu…

- Tanta gente naquela sala, e eu logo perdido nessas labaredas do teu rosto, sabes muito bem como podes ser hipnotizante, creio que, nesses espelhos ardentes, cada um se revê na sua melhor versão, um dom apenas ao alcance de uma feiticeira… Foste a última a chegar, surpreendeu-te a mudança, como fui tão desatento aos pormenores essenciais da minha vida, sem dúvida aos mais prometedores de luz, já que para as trevas sempre tive uma acuidade demasiada, enfim… Vem aí o Natal, como detesto esta época! Não suporto! Com excepção das luzes, o único aspecto suportável desta quadra, bem sabes que não suporto sombras, já me bastam as da minha alma.

- Mais um aspecto que nos une. No meu caso, pelas memórias que se me levantam, nunca compreendi, ao certo, a razão desse teu asco, sinceramente pensei que fosse uma questão de irreverência, uma busca de originalidade, a ânsia de ser diferente que sempre te caracterizou… No que me respeita, como em tempos te contei, foi a partida do meu pai! A sua primeira saída de casa, no fundo, sempre a mais dolorosa, teria os meus seis ou sete anos, uma sombra desceu sobre a casa, não sei de onde veio, mas eu senti-a, quase a tacteava, desde o amanhecer, ao longo desse dia, vi minha mãe envelhecer décadas, não, não estou a exagerar, minha mãe envelheceu décadas num só dia, a dor pela partida de meu pai, a revolta silenciada por ter sido trocada, como deve ser doloroso: ser-se trocado, um atestado de insuficiência, sem direito a réplica, questões a emergir incessantemente num recanto de si (“O que a outra tem a mais do que eu? O que lhe pode oferecer de novo? Por que sorrirá mais a seu lado?”); e a idade em que isso sucedeu, já no Outono da existência, quando o frio do Inverno já no horizonte, a vida a golpeá-la com esta violência, a angústia pela aproximação da noite de Natal, por saber que um lugar estaria vazio à mesa, que seria soterrada pelas nossas questões, sobretudo pelos nossos olhares, talvez lhes lê-se uma censura calada, pelo fim do casamento, logo na noite consagrada à família, uma pergunta repetir-se-ia, entoada, com indignação, por cada um: “Mãe: onde está o pai?” Escolheu o dia que nos seria mais dilacerante, Natal, precisamente, durante o ano, a única noite em que todos estaríamos reunidos à mesa para jantar, coitada, como detesto este adjectivo, hoje talvez o corrija, que força teve para ali estar, impassível, enfrentou-nos com a maior naturalidade possível, no fundo, a forma mais sensata de lidar com tal problema: “Mãe: onde está o pai?”, “O vosso pai conheceu uma senhora, apaixonou-se, foi viver com ela, está no seu direito, não concordam?”, nessa altura, o meu irmão mais velho andaria pelos doze ou treze anos, nem ousou responder, os restantes de nós mantivemos o silêncio, por outras palavras, uma respeitosa anuência, lembro-me vagamente do resto dessa noite, apenas que, volta-e-meia, o olhar de cada um fugia para a cadeira que devia estar ocupada pelo nosso pai, procurávamos disfarçar para não magoar mais a nossa mãe, desta distância, como admiro a estrutura daquela mulher, conseguiu manter-se na vertical, conheceu cedo a dureza do trabalho, horas e horas a segurar o cabo de uma esfregona, não seria um palerma, como o meu pai, a derrubá-la! Eu fiquei destroçada, interpretei, na altura, como uma traição, senti-me trocada, achei que, afinal, não gostava tanto assim de mim, era descartável… Desde então, sempre que ouço Natal, é essa memória a povoar-me… Procuro, dentro do possível, superar, a memória, no entanto, teima em regressar, é da sua essência o carácter indelével, memórias: bênção ou maldição.

- Devias saber que não gosto de ajuntamentos. Confusão. Hipocrisia. Há muito deixei de festejar o meu aniversário. Mais um dia sob este céu, apenas e só, como todos os outros… A verdade talvez more noutro lado, nunca fui muito de festas, risadas altas, histerias, com o tempo, o pouco se transformou em aversão. Só festejo, curioso, com o futebol, o meu clube, claro, embora, também aí, os motivos estejam num decréscimo galopante…

- Quem te conhecer à superfície das coisas, dirá precisamente o oposto, mas eu conheço os subterrâneos da tua alma, creio, sinceramente, ter sido a única com arrojo para tal, não o digo com arrogância, apenas a lucidez de constatar um facto, estou errada?

- Não sou eu que devo ajuizar tal. Se o dizes, sabê-lo-ás. De repente, olhamos para alguém e percebemos que há muito nos conhecemos, um estranho elo impele-nos na sua direcção, foi o que contigo se passou, conhecia-te, só não me lembrava de onde e quando, estava ditado o destino dos meus passos, como é inebriante a magia dessa ligação, no meio de todas aquelas caras, só pelo teu rosto me sentia a regressar a casa…

- E como ambos, na prática, desconhecemos esse conceito!

- Verdade… Ainda hoje me questiono como conseguiste ler tanta coisa em mim… Sempre pensei ser um excelente actor no exercício das minhas funções!

- Só para os tolinhos, é notória a tua irritabilidade e insatisfação pelas vezes que procuras as janelas, anseias por horizontes, quão fulminante és com os cretinos, isso agradou-me desde logo, confesso, a constante mobilidade e ligeireza com que andas pela sala, uma ânsia de partida impronunciada, não te querias demorar por ali, percebia-se não ser lugar onde pousasses a mala, também não seria ali que pousava a minha, e, claro, a tua outra vida para além daquilo, onde verdadeiramente derramas esse mundo que te habita, quem tem um mundo dentro de si não se pode contentar com salas e cretinos, estou errada?

- Claro que não. A tua leitura dos factos está correctíssima, não esperava outra coisa de ti, só quem está familiarizado com a dor tem tamanha facilidade em ler o mundo, estou errado? Quem te magoou tanto? Depois de tanto tempo, continuas com tantas portas fechadas?

- Como todos, não é verdade?

- Discordo! Aproximámo-nos numa fase em que escancarei publicamente quase todas, não é verdade?

- Sim e não. Continuas, mesmo assim, com muitas por abrir. Ou estou enganada?

- Falávamos de ti, se bem me lembro…

- Achas que é fácil o meio onde cresci? Às vezes, dou por mim a olhar para trás, e acho que foi um milagre aqui ter chegado. Não te acontece o mesmo?

- Sempre que me debruço sobre o passado: como aqui cheguei? Pois, um milagre… Apesar de tudo, há sempre em mim ou à minha volta uma dor indistinta, um aperto no peito, como se por um caminho que não tivesse percorrido… Estranho, não é? De vez em quando, concluo que somos seres demasiado complexos, outras que somos seres bastantes estúpidos! Cambaleio nesta ambivalência, e ainda não me decidi. O problema, apesar de reconhecer o milagre de aqui ter chegado, é essa dor, a insatisfação que me sombreia a face…

- Acho curioso falares de sombras, então se…

- Não me venhas com a ladainha da desvalida, por favor, se há alguém que conhece o Inferno, e regressou para o relatar, sou eu!

- Devolvo-te o elogio de desvalidos! Sabes qual é um dos teus grandes problemas? É quando te deixas enfeitiçar e caminhas atrás desse ego insuflado!

- Desculpa, nunca me tinham dito tal! Esse é um dos teus encantos: és uma lúcida-frontal!

- Não precisas de dar graxa… Sabes bem que nunca me vitimizei, nem gosto da ladainha-dos-desfavorecidos do existir, se partilho certas coisas contigo, é por saber que as compreendes de uma outra forma, há pouco disseste que nunca foste muito de festas, risadas altas, histerias, pois eu também não, e não fui por ter havido aniversários sem os parabéns de pai e mãe, o primeiro por esquecimento, a segunda por cansaço, durante anos chegou a casa já a noite pensava em partir, trabalhava nas limpezas das sucursais-bancárias, agora que falo nisto, não me recordo de ver aquela mulher sem as mangas arregaçadas, nunca se escusou a uma oferta de trabalho, mesmo assim não trazia o suficiente, éramos muitos para tão esquálida bolsa, isso leva-me a uma questão: o que é a fome? Uma criança que vai para a escola com o estômago contraído, salivar com o cheiro a bolos do refeitório, mas com a certeza pétrea de não comer nenhum, os bolsos numa permanente leveza contrastavam com a alma da menina que nunca fui, os outros sempre a ostentar marcas, como se saídos de uma linha-de-produção, um halo à sua volta intransponível, a menos que o salvo-conduto da marca, claro, ali estava, reluzente, a fronteira entre a pertença ou a exclusão, não preciso de te esclarecer onde sempre me posicionei, ou fui colocada, por um lado, nunca me importei, odiava queques, linhas-de-produção, e aquele efeito de clonagem das marcas, coitados, precisavam disso para se afirmar, simultaneamente também nutria compaixão, eu tinha o estômago contraído, eles tinham os horizontes, questionei-me, tanto, qual seria o mais pobre?

- Ainda hoje cultivas um estilo muito próprio de vestir, percebo, agora, a lonjura das suas raízes. Consideras que essas vivências te tornaram mais forte?

- É-me muito mais fácil dizer adeus – apenas isso! A fome muda-nos dramaticamente toda a perspectiva do mundo. Este não é o lugar do sonho, aqui enterram-se os mortos, logo o sonho habita noutro lado, não concordas?

- Como podia discordar? Veio-me à memória o meu primeiro dia de aulas

- De onde veio tal?

- Boa pergunta! Tens este efeito em mim, suavizas-me o pensar, redescubro-me, já não há máscaras contigo, sabe-lo bem, tiveste o privilégio, na primeira-fila, de as conhecer, hoje sorri-lhes, na altura detestaste algumas, claro que ainda as coloco, dão-me algum gozo, falava do meu primeiro dia de aulas, foi o meu pai levar-me, nessa altura, ela trabalhava longe, acho que, de certa forma, não se importava da distância, como se uma segurança dos filhos – sob o escudo perfeito: ganhar o pão-nosso de cada dia –, deixou-me ao portão, nem do carro saiu, diante de mim, um oceano de miúdos, até então, jamais tinha visto tantos juntos, nem sonhava que tal fosse possível, antes de entrar, procurei ver se meu pai já partira, ainda não, fizera inversão-de-sentido, persistia a olhar-me. Como se avaliasse a minha reacção, ostentava um sorriso de entendimento, não era encorajador, compassivo, nada disso, somente compreensão, as lágrimas instantâneas da meninice nasciam-me, refreei-as e avancei, não vejas aqui qualquer laivo de heroicidade, pelo contrário, cedo compreendi que, nesta vida, há coisas de que não podemos fugir, os miúdos com quem brincava na praceta eram para lá de uma dúzia, naquele recreio estavam perto de uma centena, foi um choque para um puto de seis anos, logo me rodearam com mil e uma perguntas (Quem era? O meu nome? De onde vinha? Onde morava?), num lugar de mim nasceu-me um orgulho indesmentível, fôra capaz de refrear as lágrimas instantâneas da meninice, até hoje, só contei este episódio uma vez, acreditas? Nem sei porquê, algo de que me orgulho, não é fácil, com seis anos de idade, numa inusitada e tão adversa circunstância, possuir tal autocontrole, a segunda vez que olhei para trás, só o vazio da estrada, meu pai partira, nunca falou sobre este dia, confesso a importância, antes de dar o primeiro passo, em direcção à entrada, de encontrar um sorriso de entendimento, não era encorajador, compassivo, nada disso, somente compreensão, é o que mais pedimos nesta vida, não é verdade?

- Não me lembro do meu primeiro dia de escola, com esse pormenor muito menos, creio que não sofri um choque tão grande, talvez por ter irmãos, dois ou três com idade próximas, talvez por a escola ficar duas ruas abaixo de casa, tudo muito distante de colégios-particulares…

- Olha a benesse: um trauma para o resto da vida! Agora a sério, apesar dos nossos percursos distintos, temos demasiados pontos em comum… Não encontrei, até hoje, alguém que me desse tanto espelho…

- Calculo que fales da noite das nossas almas…

- Alguma dúvida? Desde muito cedo, intuí haver, em mim, uma parte por amanhecer, um sentir de orfandade, de desamparo face ao aqui, nunca consegui viver de eternidade em eternidade, como a maioria, sempre estive consciente de estar de passagem…

- A proximidade da morte não concorreu para essa ideia?

- Não, longe disso! Repito: foi desde muito cedo… A consciência de que havia divisões, em mim, que jamais sairiam da sombra. Qualquer esforço por iluminá-las estaria condenado ao malogro, não sei de onde me vinha esta convicção, simplesmente me habitava, jamais, até hoje, a partilhei, estranho esta vontade, hoje, de falar, dizem que o entardecer agiliza o verbo, e que a companhia certa também, talvez por subtrair o pudor destas questões. Sempre amei dialogar contigo! Dás réplica e és sagaz nas observações, tão raro, a maioria só se repete e provoca-me bocejos, trago no bolso duas ou três frases de ocasião para complementar as boçais observações que ouço diariamente, ficam felizes, julgam-se compreendidos e donos-da-razão, queres melhor? Concluí, há uns tempos, que, pelo caminho, se perdeu algo essencial: a capacidade de se ouvir o outro; tão raro, por estes dias, encontrarmos alguém com este dom: saber ouvir; por norma, ninguém nos ouve: julgam-nos à medida que falamos, se o nosso pensar se desvia do padrão estabelecido… Como isso me seduziu em ti, criaste os teus próprios valores e regras; nem sonhas como isso me fascinou, pareceu-me, de repente, que se me abria a porta para uma realidade-paralela infinitamente mais sedutora…

- Deixas-me lisonjeada, hoje sou outra, isso foi numa outra vida.

- Não seremos sempre o mesmo, só mudamos as roupagens?

- Não me parece! Não tenho nada que ver com a menina pobre que olhava por uma janela, de estômago contraído, o fundo-da-rua, na ânsia do regresso do pai ao lar…

- Não serás hoje a ansiada negação dessa menina? Desculpa, não te quero ofender…

- Alguma vez precisámos de máscaras? Então, para quê esse maquilhar, com palavras, de uma questão óbvia e directa? Essa menina sonhava, por outras palavras, tinha esperança, eu, como sabes, vivo de factos, há muito perdi o sonho, dizem que sou fria, é mentira, simplesmente desaprendi a esperança.

- Pelos vistos, até no amor…

- Sobretudo aí!

- Foste imensamente magoada, é normal que tenhas criado defesas…

- Agora deste em consertador de corações?

- Se percebesse disso, começaria por consertar o meu, não te parece?

- Lá vai outra vez a velha com o cão à rua, incrível! Mais de uma dezena de vezes, por dia, passear aquele bicho irritante – o demoniozinho do bairro! Não há dia que não a veja! Sabes, às vezes receio terminar assim, o desígnio de vida restringido a um rafeiro ou a gatos, como há muitas, novas ou velhas… Quando alguma amiga ou conhecida me diz que vai ficar com um gato, começo logo a pensar que muito mal vai de amores… É indissociável, hás-de reparar: gatos: ou velhas ou solteironas inveteradas! Desculpa, falavas de consertar o teu coração, mas quem, de facto, o magoou?

- Não tentes subir um degrau, não vale apena, e até te fica mal, foi a vida, com o seu tumultuoso caudal, a única com esse poder… Há muitos que se escondem da vida, ou a família procura criar-lhes refúgios, pura ilusão, tarde ou cedo, a vida encontra-os e, com toda a sua ferocidade, apresenta-lhes os factos do existir. Desta convicção ninguém me demove. Tenho visto muita coisa, demasiadas quedas de quem se achava gente…Veio-me, agora, à memória, uma antiga vizinha, casal, dois filhos, rapaz e rapariga, ambos frequentavam colégios-particulares caríssimos, mais valia doar esse dinheiro aos necessitados (qual o mais burro? Pois, questão complexa…), cada um com a sua mota, conversas de superfície, mesmo assim com muito esforço, a boca sempre aberta, talvez pela alegria de respirar, ou para conter o imperativo cigarro da moda, sempre providenciava um ar de reflexão e maturidade – a efemeridade da imagem a um olhar mais atento –, o pai era um sujeito anafado, trabalhava com peixe, em minha casa chamavam-no de peixeiro, há trabalhos onde, por muito que se tente, o cheiro jamais larga o indivíduo, aspecto boçal – também a um olhar mais atento –, o carro com a imperativa marca de prestígio, muito verniz, porém o focinho de suíno era uma evidência – a um olhar mais atento, claro –, o caprichoso caudal do tempo desconhece a permanência, nós bem insistimos nesta ilusão, tarde a compreendemos, muitos nem aqui chegam, há uns anos, encontrei essa vizinha a trabalhar, como lojista, numa lojeca de um centro-comercial de subúrbio, assim que me viu, o sobressalto deu lugar à consternação, fiz questão de a cumprimentar, revesti-me de toda a ironia e acrimónia possíveis, imaginas a justificação dela para ali estar? Calculo que não, vê o desespero da presa acossada: “Estou a fazer um favor a uma amiga…” Se sempre tive a pior das impressões dessas quatro figuras, esta frase só a consubstanciou, claro que lhe sorri desdenhosamente e segui, dos filhos felizmente não voltei a ter notícias, o peixeiro vi-o uma vez a caminhar amparado pela mulher, de coquete a lojista de um centro-comercial de subúrbio, pois, a vida e o seu tumultuoso caudal, acho que já nem é vivo, não me alongo em considerações, escusas de reunir o amaldiçoado politicamente-correcto, em menos de duas décadas tudo perderam, não falo de dignidade porque sempre desconheceram esse conceito, repara: desde puto sempre me ensinaram que o trabalho dignifica o homem! Aquela mulher, a caminhar para o fim do Outono da vida, persistia com os seus laivos de arrogância (“Estou a fazer um favor a uma amiga…”), desconhecia algo tão essencial: o trabalho dignifica o homem! Creio ter-me cruzado uma ou duas vezes com ela pelos passeios ou nas compras, já sabes da minha malfadada memória-visual, às vezes é uma vantagem, também não fazia questão de a cumprimentar, essa é a verdade, podia contar-te mais…

- Não, não é preciso… Sabes bem que muito pisei o chão dos caídos. Histórias assim conheço sobejamente! E bem piores! Gente que comia pão com manteiga às refeições para andar vestida com marcas, que corria os estores durante, pelo menos, uma semana, nem de casa saía, para depois se pavonear que esteve de férias num qualquer destino longínquo, e a palidez a gritar bem alto a sua mentira, enfim, tanta coisa, às vezes penso que o homem é um barco sem leme, creio não haver limites para os paradoxos humanos, olho, de novo, pela janela, tudo agora sossegado, como se este mundo fosse um lugar de paz, enfim, mais um pouco e chega o Natal, sabes como odeio esta época, pelo Inverno, pela hipocrisia, pela alegria plástica, pelo consumo desenfreado, creio que por tudo, como estamos numa de confissões, há um aspecto que a tudo se sobrepõe, uma memória, de há uns largos anos, um Natal que sozinha passei, eles, sempre com a desculpa de talvez ser o último da minha avó-materna, rumaram para a aldeia, insisti em ficar, no fundo, queria ver quanto tempo despendiam a tentar convencer-me a acompanhá-los, em verdade, não foi com espanto a compreensão chegada de que nem uma frase gastaram para me persuadir, nada, tudo decorreu, para eles, com a naturalidade possível, como se eu fosse uma mera estranha, meus irmãos acompanharam-nos, e tão críticos eram nas suas costas, de facto, a nossa compreensão das coisas é muito limitada, sempre vemos o mundo da ilha de nós, sob a anestesia de uma dor demasiada, que na altura me consumia, assisti aos preparativos da viagem, à saída de casa, não fui à janela ver o carro a abandonar a rua, foi ponto-de-honra para mim, e, de repente, senti-me a única habitante do mundo, os ecos da casa recrudesciam, as divisões pareceram triplicar de tamanho, desceu-me uma súbita paz e simultaneamente uma dor estranha, como se algo em mim latejasse e num murmúrio dissesse: “Não são dias para se estar só… Não são dias para se estar só… Não são dias para se estar só…” Ainda hoje, desconheço de onde me chegava essa voz, creio que jamais saberei a sua fonte, o certo é que não me abandonou durante aqueles dias, e sempre que os recordo, regressa-me, com a mesma eloquência de então (“Não são dias para se estar só…”), de repente, estou diante da sempre tão fria evidência de um facto: há dias que foram feitos para não estarmos sós! E tão mal-acompanhada estava, com a minha demasiada dor, na altura pensei ter reagido bem, no entanto, como vês, as marcas perduram, sempre ficam, por mais que as tentemos maquilhar, como é evidente, não era com eles que queria estar, daí a minha demasiada dor, porém doeu-me a ligeireza com que me viraram costas, logo numa altura em o mundo anuncia: “Não são dias para se estar só…”  Mas assim fiquei, só, durante esses dias, recordo-me bem: passei essa noite de Natal a rever filmes, do resto pouco me  lembro; a dor já me consumia de uma forma indizível, como demorei a concluir que tão descartável lhes era, soube-o nessa altura, todavia optei por soterrar essa certeza, o instinto de sobrevivência norteia-nos mais os passos do que julgamos, creio que foi por aqui a selecção das minhas memórias, de forma compreensível, como deves calcular, desde então, cresceu-me uma repulsa visceral por esta época, e a tudo que lhe esteja associado, daqui não me consigo demover, creio ser a mais hipócrita altura do ano, regressaram, todos, com um ar pesaroso, ainda hoje não percebi se pelas saudades da bela família deixada na província ou se por eu não ter deixado a casa…

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