Livros do Escritor

Livros do Escritor

terça-feira, 12 de agosto de 2025

Um ontem tão hoje

 



Ainda a ouço dizer Desculpa, mas…, perante isto, não posso falar de surpresa, nada disso, pelo contrário, creio que uma parte de mim o esperava, Desculpa, mas…, tudo começou não quando nos conhecemos, mas quando nos fomos conhecendo, há pessoas que, nesta viagem a que uns apelidam de vida, nos fazem pousar a bagagem, respirar, e olhar as coisas, assim foi com ela, certa tarde falámo-nos e parecia que já nos conhecíamos, desde então, já não éramos somente mais dois estranhos, as vozes fizeram eco no interior de cada um, saímos, passeámos, ela vinha de um divórcio difícil, isso só acontece quando a ideia partiu da outra parte, percebi que ainda havia por ali muito sentir desordenado, quando falava dele, olhava noutra direcção, isso não me passou despercebido, assim como aquelas pausas que se prolongavam, sempre numa vã tentativa de imobilizar uma memória que se nos escapa entre os dedos famintos de um sentir do ontem, continuámos a sair, a passear, eu já com a minha bagagem toda pousada, de vez em quando, ela a olhar noutra direcção, e isso a não me passar despercebido, talvez só lhe faltasse pousar uma mala, ou duas, de certa forma compreendia aquele olhar noutra direcção, afinal, ainda esteve casada seis anos, sei que partiu dele a ideia de um fim, nunca me disse o porquê, confesso que também não me interessava, como se fosse a vida de uma outra pessoa, não a desta que agora caminha a meu lado, em certa medida, até me irritava esse assunto, pois, é verdade, eu já com a minha bagagem toda pousada, no meu pensar só o seu rosto, até que me surgiu a ideia de um fim-de-semana fora, falei-lhe nisso num fim de tarde, devia ser uma quarta-feira de Primavera, ela com um elegante vestido azul, o cabelo solto, falávamos de trabalho, do pai dela que se queixava de uma perna, lembrei-me logo de um bom ortopedista, eu a pensar que só falamos presente quando não temos uma história, ou temos dúvidas em construí-la, de repente, dou por mim Não queres ir passar este fim-de-semana fora? Podíamos ir até Óbidos… Logo o seu olhar noutra direcção, isso não me passou despercebido, renitente, agora a olhar o copo quase vazio, soletrou, como se um pensamento feito voz, Óbidos… Por momentos, achei ridícula a minha sugestão, logo eu que nem apreciador da Estremadura era, contudo, uma luz a surgir, Desde criança que lá não vou, a frase surgiu-lhe sonhadora, a janela para o passado também não me passou despercebida, Desde criança que lá não vou, começámos os pormenores, e logo a perna do pai como primeiro obstáculo, desde o divórcio, o regresso à casa de onde partira, pois, sempre a paterna, o vazio mitigado pela dedicação à exigência da velhice, lembrei-lhe que um fim-de-semana é somente composto por dois dias e uma noite, ela anuiu, se bem que a palavra noite ficasse a pairar entre nós, uma vez mais, o seu olhar noutra direcção, isso não me passou despercebido, no dia seguinte, disse-me que sim, Sábado íamos para Óbidos, ouvi a sua voz, repetir numa pausada nostalgia, Desde criança que lá não vou, como foi ao telefone, não sei se houve olhares noutras direcções, também não me interessou, afinal, Sábado íamos para Óbidos, cheguei dez minutos atrasado, confesso que estacionei uma rua antes da casa dos pais dela a fazer tempo, não sei porquê, mas uma voz insistia, num canto de mim, para não chegar a horas, pareceu-me avisado, ela, descomplexada, já me esperava, com uma pequena mala, desconheço a razão, mas afigurou-se-me tão diminuta, era só um fim-de-semana, contudo, para mim, sabia-me a eternidade, desde que, e foi há tanto, a minha primeira mulher me deixou, eu longe de um sentir assim, nos últimos tempos, já nem nos falávamos, foi com alívio que nos virámos costas, compreendi, com tristeza, que éramos somente mais dois estranhos que se tinham equivocado a partilhar um tecto, apenas a ilusão momentânea de que tínhamos tanto em comum, pois, uma solidão para partilhar, e logo quantas construções daí não brotam, como dizia, ela já me esperava, com uma pequena mala, não sei porquê, mas afigurou-se-me tão diminuta, o céu em sintonia com os meus desejos, de um azul que realçava a nobreza estóica das singulares nuvens que se espreguiçavam no nosso horizonte, almoçámos entre risos cúmplices do universo que construíamos, não me passou despercebido que, pela primeira vez, nem vestígios de olhares noutras direcções, a tarde passámos, de mão dada, entre as muralhas e a calçada irregular, ora vislumbrámos horizontes de nevoeiro, ora diante de lojas esconsas, como se vestígios de tempo feitos pedra, quando as nossas sombras oriundas dos candeeiros, pela calçada irregular, a relembrarem a urgência de um calor, fomos para o hotel, parei o carro mais possível da porta, talvez, por mim, um indizível receio de que ela capitulasse, saí, abri a bagageira, retirei a minha mala, de seguida, a sua, não sei porquê, mas pareceu-me ainda mais pequena, dei-lhe a mão sem a olhar nos olhos, cerca de duas dezenas de metros até à entrada, após cinco  ou seis passos, percebo que ela se imobiliza, a sua mão abandona a minha, paro, olho-a agora no rosto, por ali apenas uma imensa tristeza, atravessam-me tantas e tantas questões, consigo articular somente uma: Porquê? Como resposta Ainda não o esqueci, nisto, um táxi a deixar um hóspede, ela retira-me, com delicadeza, a sua pequena mala da mão, enquanto ajeita o cabelo, diz-me Desculpa, como gostaria que tudo fosse diferente, encaminha-se para o táxi, fiquei a vê-la afastar-se, arrasado, senti que a minha alma engolia esta e todas as noites por vir, nem uma sílaba consegui articular, é engraçado, à medida que ela se afastava, pareceu-me que a sua diminuta mala se agigantava.


Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.