Ainda
a ouço dizer Desculpa, mas…, perante
isto, não posso falar de surpresa, nada disso, pelo contrário, creio que uma
parte de mim o esperava, Desculpa, mas…,
tudo começou não quando nos conhecemos, mas quando nos fomos conhecendo, há
pessoas que, nesta viagem a que uns apelidam de vida, nos fazem pousar a
bagagem, respirar, e olhar as coisas, assim foi com ela, certa tarde falámo-nos
e parecia que já nos conhecíamos, desde então, já não éramos somente mais dois
estranhos, as vozes fizeram eco no interior de cada um, saímos, passeámos, ela
vinha de um divórcio difícil, isso só acontece quando a ideia partiu da outra
parte, percebi que ainda havia por ali muito sentir desordenado, quando falava
dele, olhava noutra direcção, isso não me passou despercebido, assim como
aquelas pausas que se prolongavam, sempre numa vã tentativa de imobilizar uma
memória que se nos escapa entre os dedos famintos de um sentir do ontem,
continuámos a sair, a passear, eu já com a minha bagagem toda pousada, de vez
em quando, ela a olhar noutra direcção, e isso a não me passar despercebido,
talvez só lhe faltasse pousar uma mala, ou duas, de certa forma compreendia
aquele olhar noutra direcção, afinal, ainda esteve casada seis anos, sei que
partiu dele a ideia de um fim, nunca me disse o porquê, confesso que também não
me interessava, como se fosse a vida de uma outra pessoa, não a desta que agora
caminha a meu lado, em certa medida, até me irritava esse assunto, pois, é
verdade, eu já com a minha bagagem toda pousada, no meu pensar só o seu rosto,
até que me surgiu a ideia de um fim-de-semana fora, falei-lhe nisso num fim de
tarde, devia ser uma quarta-feira de Primavera, ela com um elegante vestido
azul, o cabelo solto, falávamos de trabalho, do pai dela que se queixava de uma
perna, lembrei-me logo de um bom ortopedista, eu a pensar que só falamos
presente quando não temos uma história, ou temos dúvidas em construí-la, de
repente, dou por mim Não queres ir passar
este fim-de-semana fora? Podíamos ir até Óbidos… Logo o seu olhar noutra
direcção, isso não me passou despercebido, renitente, agora a olhar o copo
quase vazio, soletrou, como se um pensamento feito voz, Óbidos… Por momentos, achei ridícula a minha sugestão, logo eu que
nem apreciador da Estremadura era, contudo, uma luz a surgir, Desde criança que lá não vou, a frase
surgiu-lhe sonhadora, a janela para o passado também não me passou
despercebida, Desde criança que lá não
vou, começámos os pormenores, e logo a perna do pai como primeiro
obstáculo, desde o divórcio, o regresso à casa de onde partira, pois, sempre a
paterna, o vazio mitigado pela dedicação à exigência da velhice, lembrei-lhe
que um fim-de-semana é somente composto por dois dias e uma noite, ela anuiu,
se bem que a palavra noite ficasse a pairar entre nós, uma vez mais, o seu
olhar noutra direcção, isso não me passou despercebido, no dia seguinte,
disse-me que sim, Sábado íamos para
Óbidos, ouvi a sua voz, repetir numa pausada nostalgia, Desde criança que lá não vou, como foi
ao telefone, não sei se houve olhares noutras direcções, também não me interessou,
afinal, Sábado íamos para Óbidos, cheguei
dez minutos atrasado, confesso que estacionei uma rua antes da casa dos pais
dela a fazer tempo, não sei porquê, mas uma voz insistia, num canto de mim,
para não chegar a horas, pareceu-me avisado, ela, descomplexada, já me
esperava, com uma pequena mala, desconheço a razão, mas afigurou-se-me tão
diminuta, era só um fim-de-semana, contudo, para mim, sabia-me a eternidade,
desde que, e foi há tanto, a minha primeira mulher me deixou, eu longe de um
sentir assim, nos últimos tempos, já nem nos falávamos, foi com alívio que nos
virámos costas, compreendi, com tristeza, que éramos somente mais dois
estranhos que se tinham equivocado a partilhar um tecto, apenas a ilusão
momentânea de que tínhamos tanto em comum, pois, uma solidão para partilhar, e
logo quantas construções daí não brotam, como dizia, ela já me esperava, com
uma pequena mala, não sei porquê, mas afigurou-se-me tão diminuta, o céu em
sintonia com os meus desejos, de um azul que realçava a nobreza estóica das
singulares nuvens que se espreguiçavam no nosso horizonte, almoçámos entre
risos cúmplices do universo que construíamos, não me passou despercebido que,
pela primeira vez, nem vestígios de olhares noutras direcções, a tarde
passámos, de mão dada, entre as muralhas e a calçada irregular, ora
vislumbrámos horizontes de nevoeiro, ora diante de lojas esconsas, como se
vestígios de tempo feitos pedra, quando as nossas sombras oriundas dos
candeeiros, pela calçada irregular, a relembrarem a urgência de um calor, fomos
para o hotel, parei o carro mais possível da porta, talvez, por mim, um
indizível receio de que ela capitulasse, saí, abri a bagageira, retirei a minha
mala, de seguida, a sua, não sei porquê, mas pareceu-me ainda mais pequena,
dei-lhe a mão sem a olhar nos olhos, cerca de duas dezenas de metros até à
entrada, após cinco ou seis passos,
percebo que ela se imobiliza, a sua mão abandona a minha, paro, olho-a agora no
rosto, por ali apenas uma imensa tristeza, atravessam-me tantas e tantas questões,
consigo articular somente uma: Porquê?
Como resposta Ainda não o esqueci,
nisto, um táxi a deixar um hóspede, ela retira-me, com delicadeza, a sua
pequena mala da mão, enquanto ajeita o cabelo, diz-me Desculpa, como gostaria que tudo fosse diferente, encaminha-se para
o táxi, fiquei a vê-la afastar-se, arrasado, senti que a minha alma engolia
esta e todas as noites por vir, nem uma sílaba consegui articular, é engraçado,
à medida que ela se afastava, pareceu-me que a sua diminuta mala se agigantava.

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