Ao olhar para trás, a impressão mais nítida é
a hora das refeições, pelo tanto que por ali se calava, os olhos no prato, se
os levantasse, a cadeira vazia, bem diante de mim, como se me gritasse, a minha
mãe também com o prato, para evitar as súplicas lacrimejantes do vazio daquela
cadeira, para mim, em gritos, para a minha mãe, numa súplica de contornos
salgados, e as horas lá em casa que se arrastavam numa desesperança emudecida,
como se um veredicto de dor, então Domingo à tarde, as sombras como se numa imobilidade
obstinada, eu a brincar na carpete, só o galope da minha imaginação era
movimento, de resto, tudo numa imobilidade pétrea, a televisão a debitar uma
qualquer boçalidade de fim-de-semana, no entanto, sem som, o meu olhar ao nível
da carpete, mas o meu pensar por outros tempos e em outros lugares, segurava as
personagens das histórias por mim criadas, ora castelos sitiados, ora fortes,
algures no Oeste, a capitular às investidas de índios, enquanto isto, a minha
mãe deitada no sofá, num sono embalado por dois ou três comprimidos, ao certo
não sei, nunca me dei ao trabalho de os contar, mas compreendia aquela
necessidade, afinal, as horas lá em casa arrastavam-se numa desesperança
emudecida, como se um veredicto de dor, então Domingo à tarde, as sombras como
se numa imobilidade obstinada, quando já provinham do nosso tecto, ela a dar
indícios de um lento regresso, por vezes, quando o meu olhar tropeçava no
telefone, questionava o porquê da sua existência, afinal, ninguém nos ligava, e
a quem íamos nós ligar? A campainha, se não fosse a altura mensal das contas,
também convidava a reflexões de porquês e de existências, seguia-se o jantar,
um copo de leite e umas torradas, dizia-me sempre Meu filho, não devemos ir para a cama com o estômago pesado, e eu
que sempre lhe obedeci, talvez para não lhe amargar ainda mais as tardes de
Domingo, durante a semana, a pôr e buscar-me à escola, apreciava-lhe o gesto,
contudo, sempre silenciei aquela dor revoltada que me subia pelo peito, quando,
ao sair do portão, me apercebia da sua sombra singular no interior da viatura,
quando, em quase todas, duas sombras aguardavam os outros, nunca falámos sobre
isto, ou talvez tenhamos discutido abertamente, naqueles silêncios que tanto
gritam de nós, e que escola de silêncios gritados foi o meu lar, há uma coisa
que nunca lhe irei perdoar, talvez por não a compreender, aquele seu ostensivo
monopólio da dor, como se mais ninguém lhe fosse páreo nesse domínio, assim que
fechava a porta do carro, o regresso, perguntas de ocasião sobre o meu dia
escolar, nunca sobre mim, apenas, repito, sobre o meu dia escolar, respondia a
beber cada nuance daquele trajecto, na esperança de que, não sei porquê, fosse
noutra direcção, por uma outra rua, para uma outra casa, que, talvez se,
conseguíssemos ser outros…
Há questões, volta e meia, que insistem em nos
sair ao caminho, de início, numa timidez artificial, que acaba por se esfumar
pela rapidez faminta das últimas sílabas, sempre que (E lembras-te do teu pai?) a saltar-me ao caminho, dou por mim a
ginasticar a memória ou a afastar-me desdenhosamente de tamanha curiosidade,
porquê (E lembras-te do teu pai?),
como se quisessem espreitar por uma janela, incautamente aberta, para o meu
interior, quando gosto, sou eu a convidar para virem a minha casa, dizem que,
com o tempo, as coisas tendem a um vazio, que dará o seu lugar à paciente
nostalgia, não sei, talvez discorde em vários pontos, há uns dias, nem sei
porquê, mas, uma vez mais, aquela questão (E
lembras-te do teu pai?) a saltar-me ao caminho, ainda por cima, na voz do
meu filho mais velho, eu, incrédulo, tinha ido buscá-lo à escola, a ponderar se
tinha deixado alguma janela, incautamente aberta, para o meu interior, ainda
pensei se, nalgum momento do trajecto, ele desejaria que, não sei porquê, fosse
noutra direcção, por uma outra rua, para uma outra casa, que, talvez se,
conseguíssemos ser outros… De novo, diante de mim (E lembras-te do teu pai?), sempre silenciei aquela dor revoltada
que me subia pelo peito, quando, ao sair do portão, me apercebia da sua sombra
singular no interior da viatura, até hoje, não suporto sombras singulares no
interior de uma viatura, talvez ela o percebesse, daí um sono embalado por dois
ou três comprimidos, ao certo não sei, nunca me dei ao trabalho de os contar,
mas compreendia aquela necessidade, afinal, as horas lá em casa arrastavam-se
numa desesperança emudecida, já tinha quatro anos quando, numa noite chuvosa,
que ainda hoje perdura em algumas partes de mim, dizem que, com o tempo, as
coisas tendem a um vazio, que dará o seu lugar à paciente nostalgia, não sei,
talvez discorde em vários pontos, este é um deles, ainda hoje perdura uma noite
chuvosa em cada passo que dou, olhei o miúdo, não podia deixar a questão
suspensa por muito mais (E lembras-te do
teu pai?), socorri-me de lugares comuns, enquanto o meu pensar por outros
tempos e em outros lugares, neste caso um portão de escola, de onde saía, à
minha espera, a sua sombra singular no interior da viatura, fui ao seu
encontro, num passo decidido, bati ao de leve no vidro, e disse-lhe, naqueles
silêncios que tanto gritam de nós, Ainda
bem que nunca te esqueceste de mim.

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