Livros do Escritor

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sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Um lugar vazio à mesa

 


Ao olhar para trás, a impressão mais nítida é a hora das refeições, pelo tanto que por ali se calava, os olhos no prato, se os levantasse, a cadeira vazia, bem diante de mim, como se me gritasse, a minha mãe também com o prato, para evitar as súplicas lacrimejantes do vazio daquela cadeira, para mim, em gritos, para a minha mãe, numa súplica de contornos salgados, e as horas lá em casa que se arrastavam numa desesperança emudecida, como se um veredicto de dor, então Domingo à tarde, as sombras como se numa imobilidade obstinada, eu a brincar na carpete, só o galope da minha imaginação era movimento, de resto, tudo numa imobilidade pétrea, a televisão a debitar uma qualquer boçalidade de fim-de-semana, no entanto, sem som, o meu olhar ao nível da carpete, mas o meu pensar por outros tempos e em outros lugares, segurava as personagens das histórias por mim criadas, ora castelos sitiados, ora fortes, algures no Oeste, a capitular às investidas de índios, enquanto isto, a minha mãe deitada no sofá, num sono embalado por dois ou três comprimidos, ao certo não sei, nunca me dei ao trabalho de os contar, mas compreendia aquela necessidade, afinal, as horas lá em casa arrastavam-se numa desesperança emudecida, como se um veredicto de dor, então Domingo à tarde, as sombras como se numa imobilidade obstinada, quando já provinham do nosso tecto, ela a dar indícios de um lento regresso, por vezes, quando o meu olhar tropeçava no telefone, questionava o porquê da sua existência, afinal, ninguém nos ligava, e a quem íamos nós ligar? A campainha, se não fosse a altura mensal das contas, também convidava a reflexões de porquês e de existências, seguia-se o jantar, um copo de leite e umas torradas, dizia-me sempre Meu filho, não devemos ir para a cama com o estômago pesado, e eu que sempre lhe obedeci, talvez para não lhe amargar ainda mais as tardes de Domingo, durante a semana, a pôr e buscar-me à escola, apreciava-lhe o gesto, contudo, sempre silenciei aquela dor revoltada que me subia pelo peito, quando, ao sair do portão, me apercebia da sua sombra singular no interior da viatura, quando, em quase todas, duas sombras aguardavam os outros, nunca falámos sobre isto, ou talvez tenhamos discutido abertamente, naqueles silêncios que tanto gritam de nós, e que escola de silêncios gritados foi o meu lar, há uma coisa que nunca lhe irei perdoar, talvez por não a compreender, aquele seu ostensivo monopólio da dor, como se mais ninguém lhe fosse páreo nesse domínio, assim que fechava a porta do carro, o regresso, perguntas de ocasião sobre o meu dia escolar, nunca sobre mim, apenas, repito, sobre o meu dia escolar, respondia a beber cada nuance daquele trajecto, na esperança de que, não sei porquê, fosse noutra direcção, por uma outra rua, para uma outra casa, que, talvez se, conseguíssemos ser outros…

Há questões, volta e meia, que insistem em nos sair ao caminho, de início, numa timidez artificial, que acaba por se esfumar pela rapidez faminta das últimas sílabas, sempre que (E lembras-te do teu pai?) a saltar-me ao caminho, dou por mim a ginasticar a memória ou a afastar-me desdenhosamente de tamanha curiosidade, porquê (E lembras-te do teu pai?), como se quisessem espreitar por uma janela, incautamente aberta, para o meu interior, quando gosto, sou eu a convidar para virem a minha casa, dizem que, com o tempo, as coisas tendem a um vazio, que dará o seu lugar à paciente nostalgia, não sei, talvez discorde em vários pontos, há uns dias, nem sei porquê, mas, uma vez mais, aquela questão (E lembras-te do teu pai?) a saltar-me ao caminho, ainda por cima, na voz do meu filho mais velho, eu, incrédulo, tinha ido buscá-lo à escola, a ponderar se tinha deixado alguma janela, incautamente aberta, para o meu interior, ainda pensei se, nalgum momento do trajecto, ele desejaria que, não sei porquê, fosse noutra direcção, por uma outra rua, para uma outra casa, que, talvez se, conseguíssemos ser outros… De novo, diante de mim (E lembras-te do teu pai?), sempre silenciei aquela dor revoltada que me subia pelo peito, quando, ao sair do portão, me apercebia da sua sombra singular no interior da viatura, até hoje, não suporto sombras singulares no interior de uma viatura, talvez ela o percebesse, daí um sono embalado por dois ou três comprimidos, ao certo não sei, nunca me dei ao trabalho de os contar, mas compreendia aquela necessidade, afinal, as horas lá em casa arrastavam-se numa desesperança emudecida, já tinha quatro anos quando, numa noite chuvosa, que ainda hoje perdura em algumas partes de mim, dizem que, com o tempo, as coisas tendem a um vazio, que dará o seu lugar à paciente nostalgia, não sei, talvez discorde em vários pontos, este é um deles, ainda hoje perdura uma noite chuvosa em cada passo que dou, olhei o miúdo, não podia deixar a questão suspensa por muito mais (E lembras-te do teu pai?), socorri-me de lugares comuns, enquanto o meu pensar por outros tempos e em outros lugares, neste caso um portão de escola, de onde saía, à minha espera, a sua sombra singular no interior da viatura, fui ao seu encontro, num passo decidido, bati ao de leve no vidro, e disse-lhe, naqueles silêncios que tanto gritam de nós, Ainda bem que nunca te esqueceste de mim.

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