… quando as nossas sombras oriundas dos
candeeiros, pela calçada irregular, a relembrarem a urgência de um calor, fomos
para o hotel, parei o carro mais possível da porta, talvez, por mim, um
indizível receio de que ela capitulasse, saí, abri a bagageira, retirei a minha
mala, de seguida, a sua, não sei porquê, mas pareceu-me ainda mais pequena,
dei-lhe a mão sem a olhar nos olhos, cerca de duas dezenas de metros até à
entrada, após cinco ou seis passos,
percebo que ela se imobiliza, a sua mão abandona a minha, paro, olho-a agora no
rosto, percebo-lhe a lonjura, procuro construir uma frase oportuna, talvez uma
graça, mas nada, apenas um lugar-comum (Passa-se
alguma coisa?), do qual logo me arrependo, porém, já me fizera refém de
tamanha estupidez (Passa-se alguma coisa?),
como não se podia passar? Nós os dois, àquela hora, a uns escassos passos de
entrar num hotel, ela vinda de um divórcio de dor, pois, partiu da outra parte
a ideia, eu, apesar da separação, aquém de dores, afinal, há muito que nos
voltáramos as costas, a compreender e, de certa forma, a apreciar a sua
relutância, sinal de escrúpulos, ela ainda com a lonjura, regressa em passos
hesitantes, olha-me, a sua mão, de novo, a repousar na minha, Não, não se passa nada… Apenas senti um
ligeiro frio, entrámos, a recepção, os procedimentos normais, preço,
quantas noites, uma, apenas, pequeno-almoço incluído, documento de
identificação, por fim, entregou-nos a chave, na forma de um cartão, uma
brochura do hotel, e disse Segundo andar,
terceira porta à direita. Votos de uma boa estadia, agradecemos,
dirigimo-nos para o elevador, não me passou despercebido que eu sempre na
frente, ela ora endireitava a alça da carteira, ora a teimosa madeixa de cabelo
que lhe ocultava, por instantes, o olhar, nalgumas ocasiões, talvez lhe fosse
conveniente, pois, não sei, a sair do elevador, uma vez mais, tive de assumir a
dianteira, nada dissemos sobre isso, como se fosse um papel que inevitavelmente
me estivesse, desde há muito, atribuído, nem me atrevi a esboçar um singelo
gesto de cavalheirismo para ela seguir na frente, nada, não sei porquê, mas
parecia-me uma obscenidade, assim, também fui eu a abrir a porta do quarto,
aqui chegados, dei-lhe a primazia, não podia, de todo, persistir aquele
inglório jogo de aparentes obscenidades, a minha educação prevaleceu
felizmente, ela a entrar, uma vez mais nessa noite, em passos hesitantes, ora
endireitava a alça da carteira, ora a teimosa madeixa de cabelo que lhe
ocultava, por instantes, o olhar, nalgumas ocasiões, talvez lhe fosse
conveniente, coloquei o cartão no espaço próprio ao lado da porta, logo o
quarto se iluminou, reparei no seu olhar embaraçado diante da única cama
existente, perante isto, optei pela informalidade, enquanto me descalçava,
elogiei as generosas dimensões da divisão, ao mesmo tempo, ela às voltas com a
mala, até que eu Queres ajuda? Ela
estacou, de novo, a teimosa madeixa de cabelo que lhe ocultava, por instantes,
o olhar, nalgumas ocasiões, talvez lhe fosse conveniente, a questão ficou a
ecoar, por algum tempo, na inquieta atmosfera do quarto (Queres ajuda?), como se nos desvelássemos num repente, naquele
momento, eu atingia a exaustão de alças de carteira que se endireitavam até ao
infinito e madeixas de cabelo que ininterruptamente ocultavam olhares e
emoções, ela estacou, deixou a mala e sentou-se do seu lado na cama, antes de
falar, de novo, a teimosa madeixa de cabelo, Desculpa, mas ainda não estou preparada… Se tiveres paciência para me
esperar… Eu, atónito, ouvi-a, com a devida incredulidade, ela a fechar a
mala, a dirigir-se para a porta, antes de sair, Não te preocupes, regresso pelos meus meios… Antes, no fôlego que
me restava, Mas porquê? Ela, a
virar-se para trás, com uma tristeza resignada, Ainda não o esqueci… Desculpa-me, mas está ainda tão presente em mim… E
foi embora… Quase caí sobre a cama, o fim-de-semana em Óbidos, ao princípio,
renitente, a perna do pai ainda nos saiu ao caminho, no entanto, viemos,
falámos e falámos, também rimos, a noite, e agora isto, a frase atravessava-me Desculpa-me, mas está ainda tão presente em
mim… E, de novo, Desculpa-me, mas
está ainda tão presente em mim… Deitei-me, de mãos na nuca, a olhar o
tecto, parte de mim, embora não o reconhecesse, agradada com aquele gesto,
sinal de escrúpulos, como se esperança para isto que somos, porém, no restante,
eu apenas espanto, devia ser um tipo incrível, não só a deixou, como ela ainda
com um sentir de fidelidade, de facto, devia ser um tipo incrível, a todos os
níveis, de certeza que teria aquele dom de fazer uma mulher sentir-se singular,
o carinho de um gesto recatado numa esplanada de Verão, a um beijo ardente numa
praia que entardece, as frases melodiosas em tardes de lençóis, pois, devia ser
um tipo incrível, de outra forma, como explicar a sua súbita capitulação? Pediu-me
Se tiveres paciência para me esperar…,
não sei, talvez não seja um tipo incrível que improvise recatados gestos
carinhosos numa esplanada de Verão, ou dê beijos ardentes em praias que
entardecem, ou melodie frases em tardes de lençóis, de facto, não sou, mas sou
incapaz de virar costas a um sentir tão desordenado, apago as luzes, fecho os
olhos, é extraordinário como alguém foge de uma felicidade possível, tudo por
um ontem desejado presente, devia ser um tipo incrível, invulgar, o que se
quiser, amanhã regresso, sozinho, bem o sei, nunca gostei particularmente de
Óbidos, logo eu, que nem apreciador da Estremadura sou, amanhã regresso, claro
que não a vou procurar, espero que ela também o faça, há equívocos que nunca
partem de si mesmos, este foi um deles, ela insiste em trazer o passado
consigo, dificilmente se libertará de tal fardo, se assim não fosse, teria
reparado na minha expressão apaixonada quando, por breves instantes,
brevíssimos mesmo, se esqueceu da alça da carteira e daquela teimosa madeixa de
cabelo que lhe ocultava, por momentos, o olhar… E como amei o seu gesto de a
repor no lugar!

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