Livros do Escritor

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sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Nada



 A tua questão traz-me à memória uma amiga da minha irmã, estava quase a chegar aos trinta, vivia maritalmente, mãe de dois filhos, viviam numa rulote, no parque-de-campismo, foi o que conseguiram, apesar de o sonho dela em adquirir uma casa, no entanto, o pecúlio mensal de ambos mal cobria as despesas obrigatórias, ele de biscate em biscate, ela, durante o dia, repositora num super-mercado, de noite, trabalhava numa empresa de limpezas, apaixonaram-se demasiado novos e pensaram que fosse para a vida, o descuido habitual da paixão originou o primeiro filho, eram só namorados, com surpresa foram os pais dele a reagir pior, os dela, apesar da avançada idade, separados, a mãe suportava o existir alienada pelo álcool, o pai, quase sempre, com o rosto velado pelas capa e contracapa de um livro, a certa altura, segundo ouvi dizer, já nem de casa saía, gabava-se de Tenho aqui livros suficientes para ler até à minha morte, por conseguinte, não podiam contar com a ajuda de nenhum dos lados, a rulote foi uma prenda do avô-materno dele, tão novos e com um filho nos braços afigurou-se-lhes o ninho perfeito, além, como é evidente, da aura de aventura, nem todos se podem vangloriar de amanhecer no meio de pinheiros, uma rulote não prima por espaços avantajados, assim sendo, embalados por aquela aura de aventura, o segundo filho não tardou muito, desta vez, uma menina, passaram oito anos e continuam na rulote, ela com vinte e quatro anos, menos dois que ele, o amanhecer no meio de pinheiros perdeu toda a magia, tornou-se uma fatalidade, adquirir uma casa, para ela, um sonho de uma outra vida, ele acomodado com a circunstância, volta e meia Nunca compreendi essa coisa de quereres uma casa… Nem visitas temos!, nesta ocasião, foi lesta a responder Isto, algum dia, é lugar para receber alguém? Uma barraca com rodas!, não podia assim ficar Se arranjas melhor, força!, não era comum discussões entre eles, a paixão arrefecera, mas ainda respirava, os pais dele ainda não conheciam os netos, a sua intransigência somava-se, em verdade, ao desinteresse deles, oito anos sem os ver, não lhes sente a falta, a mãe dela, quando se esquece de encher um ou múltiplos copos, acaba por lá passar, leva-lhes compras e brinquedos para os miúdos, tem o dom de compreender o horizonte sonhador de uma criança, como isso é raro, quanto ao pai, pois, Tenho aqui livros suficientes para ler até à minha morte, o rosto, quase sempre, velado pelas capa e contracapa de um livro, ela equacionou visitá-lo com as crianças, contudo, ele insurgiu-se com toda a veemência, Desculpa? Mas não é ele teu pai? Não és tu que trabalhas dia e noite para pôr o pão na mesa? Que consideração esse indivíduo merece? Nem a um telefonema se dignou! Nem sequer para perguntar os nomes dos miúdos! Perante estes argumentos, viu-se obrigada a capitular, o seu motivo era mais subterrâneo, simplesmente tinha saudades do pai e daquele mundo de livros, aquela era, sem dúvida, a casa com mais janelas que já conhecera, se a paixão batesse à sua porta um pouco mais tarde, tem consciência de que muitas janelas abriria na casa paterna, todas as semanas vai à biblioteca levantar um livro, em pequenita o pai fez-lhe uma lista dos autores a que não poderia virar costas, ainda hoje a preserva numa gaveta muito sua, nunca lhe partilhou isto, quando a vê, com um livro, limita-se ao silêncio, apaixonaram-se demasiado novos, olha-a como se uma estranha, afinal, há dimensões nossas que sempre serão estrangeiras para os outros, se a ouvisses falar, verias a riqueza do seu léxico, muito para além de uma mera repositora de super-mercado ou empregada de uma firma de limpezas, se a vida outra, estaria a terminar o seu curso-superior, com a maior das facilidades, é um espírito-inquieto, interroga-se, procura, nas narrativas, os espaços de evasão que tão precocemente a vida lhe encerrou, pelo contrário, ele nunca procurou ir além da sua circunstância, trabalhos de trolha, pouco mais, concluí que, quando conhecemos alguém, a pergunta essencial é: O que fazes nos tempos-livres? E não: Como ganhas a vida? Ele, por exemplo, bilhar no café das proximidades ou consumir jogos de futebol, regados a litros de cerveja, no improvisado sofá da rulote, apesar de tudo, era um pai extremoso, nesse aspecto, a dedicação aos filhos equivalia-se da parte de ambos, como se, por aí, o ontem em reconciliação com o hoje – talvez a paixão os enlevasse na devida altura, nem antes, nem depois, pois, talvez… –, estou para aqui a falar e nem te contei como se conheceram, foi durante um concerto de uma banda em voga há uns anos, a minha irmã presenciou, a certa altura os céus resolvem visitar a terra, ninguém queria perder o lugar, ele tira o casaco e coloca-lhe sobre os ombros, nunca haviam trocado uma palavra, os olhos dela oscilavam entre gratidão e espanto, desde esse instante souberam-se um, como vês, foi de uma forma muito romântica, a minha irmã presenciou, quando se pensa que o maior dos problemas reside no facto de viverem numa caravana, de ela ter de se valer de dois trabalhos para liquidar as contas, de ele apenas somar biscates, tão aquém de uma sonhada estabilidade, o destino relembra a sua existência e tudo baralha, ela, desde há uns meses, a queixar-se de um braço, custava-lhe, cada vez mais, mobilizá-lo, mesmo assim, as prateleiras do super-mercado eram povoadas e os escritórios limpos, os filhos podiam morar numa rulote, mas nos seus pratos jamais faltaria comida, roupas para se vestirem, sapatos nos pés e muitos livros para, no amanhã, não trabalhar sob o sol e sob as estrelas, uma promessa que fez a si mesma, médico, exames, a dor persistia, outro médico, mais exames, até que, após uma longa espera, a conclusão: o médico pegou na sua cadeira, do outro lado da secretária, e ladeou-a, murmurou-lhe haver diagnósticos que não conseguia verbalizar de frente, ela sorriu e Quanto tempo tenho?

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