A tua questão traz-me à memória uma amiga da minha irmã, estava quase a
chegar aos trinta, vivia maritalmente, mãe de dois filhos, viviam numa rulote,
no parque-de-campismo, foi o que conseguiram, apesar de o sonho dela em adquirir uma casa, no entanto, o pecúlio mensal de
ambos mal cobria as despesas obrigatórias, ele de biscate em biscate, ela,
durante o dia, repositora num super-mercado, de noite, trabalhava numa empresa
de limpezas, apaixonaram-se demasiado novos e pensaram que fosse para a vida, o
descuido habitual da paixão originou o primeiro filho, eram só namorados, com
surpresa foram os pais dele a reagir pior, os dela, apesar da avançada idade,
separados, a mãe suportava o existir alienada pelo álcool, o pai, quase sempre,
com o rosto velado pelas capa e contracapa de um livro,
a certa altura, segundo ouvi dizer, já nem de casa saía, gabava-se de Tenho aqui livros suficientes para ler até à minha
morte, por conseguinte, não podiam contar com a ajuda de nenhum dos
lados, a rulote foi uma prenda do avô-materno dele, tão novos e com um filho
nos braços afigurou-se-lhes o ninho perfeito, além, como é evidente, da aura de
aventura, nem todos se podem vangloriar de amanhecer no
meio de pinheiros, uma rulote não prima por espaços avantajados, assim
sendo, embalados por aquela aura de aventura, o segundo filho não tardou muito,
desta vez, uma menina, passaram oito anos e continuam na rulote, ela com vinte
e quatro anos, menos dois que ele, o amanhecer no meio de pinheiros perdeu toda
a magia, tornou-se uma fatalidade, adquirir uma casa, para ela, um sonho de uma
outra vida, ele acomodado com a circunstância, volta e meia Nunca compreendi
essa coisa de quereres uma casa… Nem visitas temos!, nesta ocasião, foi
lesta a responder Isto, algum dia, é lugar para receber alguém? Uma barraca
com rodas!, não podia assim ficar Se arranjas melhor, força!, não
era comum discussões entre eles, a paixão arrefecera, mas ainda respirava, os
pais dele ainda não conheciam os netos, a sua intransigência somava-se, em
verdade, ao desinteresse deles, oito anos sem os ver, não lhes sente a falta, a
mãe dela, quando se esquece de encher um ou múltiplos copos, acaba por lá
passar, leva-lhes compras e brinquedos para os miúdos, tem o dom de compreender
o horizonte sonhador de uma criança, como isso é raro, quanto ao pai, pois, Tenho
aqui livros suficientes para ler até à minha morte, o rosto, quase sempre,
velado pelas capa e contracapa de um livro, ela equacionou visitá-lo com as
crianças, contudo, ele insurgiu-se com toda a veemência, Desculpa? Mas não é
ele teu pai? Não és tu que trabalhas dia e noite para pôr o pão na mesa? Que
consideração esse indivíduo merece? Nem a um telefonema se dignou! Nem sequer
para perguntar os nomes dos miúdos! Perante estes argumentos, viu-se
obrigada a capitular, o seu motivo era mais subterrâneo, simplesmente tinha
saudades do pai e daquele mundo de livros, aquela era, sem dúvida, a casa com
mais janelas que já conhecera, se a paixão batesse à sua porta um pouco mais
tarde, tem consciência de que muitas janelas abriria na casa paterna, todas as
semanas vai à biblioteca levantar um livro, em pequenita o pai fez-lhe uma
lista dos autores a que não poderia virar costas, ainda hoje a preserva numa
gaveta muito sua, nunca lhe partilhou isto, quando a vê, com um livro,
limita-se ao silêncio, apaixonaram-se demasiado novos, olha-a como se uma
estranha, afinal, há dimensões nossas que sempre serão estrangeiras para os
outros, se a ouvisses falar, verias a riqueza do seu léxico, muito para além de
uma mera repositora de super-mercado ou empregada de uma firma de limpezas, se
a vida outra, estaria a terminar o seu curso-superior, com a maior das
facilidades, é um espírito-inquieto, interroga-se, procura, nas narrativas, os
espaços de evasão que tão precocemente a vida lhe encerrou, pelo contrário, ele
nunca procurou ir além da sua circunstância, trabalhos de trolha, pouco mais,
concluí que, quando conhecemos alguém, a pergunta essencial é: O que fazes
nos tempos-livres? E não: Como ganhas a vida? Ele, por exemplo,
bilhar no café das proximidades ou consumir jogos de futebol, regados a litros
de cerveja, no improvisado sofá da rulote, apesar de tudo, era um pai
extremoso, nesse aspecto, a dedicação aos filhos equivalia-se da parte de
ambos, como se, por aí, o ontem em reconciliação com o hoje – talvez a paixão
os enlevasse na devida altura, nem antes, nem depois, pois, talvez… –, estou
para aqui a falar e nem te contei como se conheceram, foi durante um concerto
de uma banda em voga há uns anos, a minha irmã presenciou, a certa altura os
céus resolvem visitar a terra, ninguém queria perder o lugar, ele tira o casaco
e coloca-lhe sobre os ombros, nunca haviam trocado uma palavra, os olhos dela
oscilavam entre gratidão e espanto, desde esse instante souberam-se um, como
vês, foi de uma forma muito romântica, a minha irmã
presenciou, quando se pensa que o maior dos problemas reside no
facto de viverem numa caravana, de ela ter de se valer de dois trabalhos para
liquidar as contas, de ele apenas somar biscates, tão aquém de uma sonhada
estabilidade, o destino relembra a sua existência e tudo baralha, ela, desde há
uns meses, a queixar-se de um braço, custava-lhe, cada vez mais, mobilizá-lo,
mesmo assim, as prateleiras do super-mercado eram povoadas e os escritórios
limpos, os filhos podiam morar numa rulote, mas nos seus pratos jamais faltaria
comida, roupas para se vestirem, sapatos nos pés e muitos livros para, no
amanhã, não trabalhar sob o sol e sob as estrelas, uma promessa que fez a si
mesma, médico, exames, a dor persistia, outro médico, mais exames, até que,
após uma longa espera, a conclusão: o médico pegou na sua cadeira, do outro
lado da secretária, e ladeou-a, murmurou-lhe haver diagnósticos que não conseguia
verbalizar de frente, ela sorriu e Quanto tempo
tenho?

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