Livros do Escritor

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quarta-feira, 17 de setembro de 2025

A noite aproxima-se e o dia está quase findo

 


Não quero dar esse passo sem o teu consentimento… Mas está-me a cansar a tua indiferença. Quantas vezes terei de te repetir que isto é importante para mim? Quantas? Diz-me! Sinceramente, às vezes, parece-me que tens dúvidas sobre nós… Não sei… Nem ousava replicar, ouvia-a com uma expressão algures entre o interesse e a apreensão, e desejava que o tempo se levantasse e prosseguisse a sua marcha, assim, logo a sua atenção num acaso qualquer e o meu sossego restituído, de facto, só aquele assunto para me desassossegar por inteiro… Nem por um qualquer recanto de mim essa possibilidade se colocava, não sei porquê, ela, volta e meia, de novo a falar de berços, enxovais, chupetas, e demais utensílios inerentes à paternidade, nem ouso expressar o meu sofrimento quando, pelos passeios, nos cruzávamos com um casal embevecido a passear o recém-chegado no seu carrinho, de quando em vez, paravam, levantavam a cobertura do carrinho, depois de se certificarem de que por ali ainda se respirava, lá prosseguiam a sua lenta marcha, meia centena de metros depois, nova paragem, nem alternavam, iam os dois ao mesmo tempo, depois de levantarem a cobertura do carrinho, de se certificarem que por ali ainda se respirava, lá prosseguiam a sua lenta marcha, ambos com uma expressão imbecil, como se detentores de uma epifania infelizmente ignorada por todos, como dizia, nem ouso expressar o meu sofrimento quando, pelos passeios, nos cruzávamos com um casal embevecido, pois... Logo ela, num tom crescente, Estás a ver? Viste bem a felicidade deles? Não te interessa, não é? Pois, eu sei… Ao menos confessa, não sejas cobarde! Olha para mim! Diz-me, olhos nos olhos, não queres um filho, não é verdade? Diz-me! Por favor, não disfarces… Olha-os, não desconverses, olha-os, que felicidade… Porquê adiar mais? Porquê? Repara: ouve-me bem: eu não quero e não posso adiar mais um filho! Não sei quantas vezes ouvi esta frase, em média, nos últimos tempos, talvez uma vez por mês, era recorrente concluir assim a sua reivindicação (Repara: ouve-me bem: eu não quero e não posso adiar mais um filho!), nesses momentos, eu quedava-me perante o abismo de uma evidência: éramos dois estranhos. Como sempre acontece debaixo do céu do mundo, num certo momento, os nossos olhares demoraram-se um pouco mais, de seguida, o verbo, a musicalidade da voz, tudo em consonância, quando consegui, de novo, alcançar-me, já juras de amor pelo ar, uma opressão no peito quando ela não por perto, e a certeza pétrea de que me fora apresentado o conceito de amor… Nada como antes? Sem dúvida! Lembras-te quando o conheci? Não sei, como o descrever? Não o achei desinteressante, não, pelo contrário, mas também não foi aquele fogo, percebes, não é? As coisas foram acontecendo, vinha do namoro com o… Sim, pois, descobri que andava há meses com aquela, pois, essa mesma, só de falar, enfim… Foi aí que o conheci, na festa de anos de um amigo comum, não, não sabes quem é, sei que foi ele que me quis conhecer… Ao olhar para trás, não sei, parece-me que não somos nada livres… Como se tudo estivesse escrito, se assim é, gostaria de conhecer tal escritor! E, no que me concerne, gostaria igualmente de fazer algumas correcções. Não, não estou a falar dele… Tivemos bons momentos, que os guardo, claro, porém, hoje sinto-me perdida, náufraga do próprio tempo… Repara: estou a chegar aos trinta, vivo com ele há seis anos, a minha família já nos aceita, apesar de nos termos desviado da igreja, embora, de vez em quando, o meu pai insista, sabes, até lhe compreendo o desgosto, a minha mãe, vá-se lá saber porquê, sempre teve as ideias mais arejadas, agora, de um neto, não abdicam. Quem abdica de ter um neto? Só uma deformidade da natureza podia abdicar de tal! E eu quero ter um filho! Não, não posso esperar mais! Está-me a enlouquecer aquela sua apatia… Não fazemos nada há meses. Às vezes, até penso que ele anda com outra. Não, não me procura… Eu, atendendo às circunstâncias, ainda menos. O que prefiro? Olha, não sei… Desta forma, não podemos continuar. Ele quer um constante presente, eu quero um futuro, é esse o problema… Nunca gostei de ser coagido a uma acção, vendo bem, isso é curioso, lembro-me dos almoços em casa dos meus pais, quando não conhecia os convidados, a obrigação inequívoca da simpatia, de ser cortês, aligeirada quando até simpatizava, dolorosa quando os achava inenarráveis, o que, em verdade, só sucedeu por duas ou três vezes, mas a pressão anterior ao acontecer deixa-me em ebulição, algo que ainda hoje trago comigo, creio que há coisas que já não tiramos da mala, por muito pesada que fique, agora, nem nas manhãs dos dias de descanso nos procuramos, se ela acorda antes, sai da cama de um salto, nem sequer um sumido Bom-dia, nada, quando sou eu a despedir-me do sono mais cedo, assumo a mesma postura, assim andamos há uns meses, não concebo procurá-la com um fito de procriação, e não é só isso, não quero, de todo, neste momento da minha vida, um filho, será assim tão difícil compreender isto? Não percebo esta súbita ideia, que, no fundo, é mais uma fixação, tem-me vindo a espartilhar e espartilhar… De facto, para onde me vire, só vejo crianças, carrinhos, e expressões imbecis, sinto-me completamente a asfixiar. Neste momento, quero uma outra coisa, nos antípodas dessa realidade, sinto que me falta ainda viver um pouco mais, para, então sim, assentar. Até em termos de emprego, somos ambos contratados, mas que fazer? Ela está irredutível! Consegue esboroar qualquer argumento que se lhe apresente em apenas dezenas de segundos. Lá por casa, a nossa situação tornou-se incomportável: um silêncio opressivo que, às vezes, parecia tornar os objectos mais pequenos… Se não fossem as horas de almoço, a compreensão da… Tem sido tão compreensiva, eu falo e falo desta minha situação, até lhe contei da minha falta de ar, que, para onde me vire, só vejo crianças, carrinhos, e expressões imbecis, ela calma, sorridente, a segurar-me a mão, já me disse, tantas e tantas vezes, que eu tenho toda a razão, como é bom ouvirmos isto, principalmente quando o mundo se divorcia de nós, há uns dias confessou-me desassombradamente que não queria filhos, respirei fundo, e que bem me soube… O que é que eu posso fazer? Por favor, mãe, não venhas outra vez com essa que eu estou a ficar obcecada com esta ideia! Afinal, tiveste-me com que idade? Ainda mais nova! Lá está! Desculpa, mas esse argumento que eu quero um pai em vez de um marido não cola… Afinal, há quanto tempo vivemos juntos? Estás a mudar de assunto. Porquê essa pergunta? Já a repetiste quantas vezes? Que disparate é esse? O que eu sinto, neste momento, por ele? Se já parei para reflectir nisto? Mas porquê? Repito: esse argumento que eu quero um pai em vez de um marido não cola… Não vou dizer que as coisas são como dantes, que dormimos abraçados, que repouso o rosto no ombro dele a ouvir uma música, que nos despedimos com beijos abraçados… Mas há coisas que sobreviveram ao passar dos dias. Desculpa, mãe, eu sei que ainda sou nova, mas já vivo com ele há algum tempo. E, não, não me posso comparar contigo e com o pai, mas os tempos são outros… O quê? Engraçado, nunca te tinha ouvido dizer isso (Um homem e uma mulher desconhecem tempos e lugares), não deixa de ter a sua razão… Sabes, hoje sinto-me perdida, náufraga do próprio tempo… Se o amo? Queres que responda assim? Não sei… A compreensão da… Tem sido tão compreensiva, eu falo e falo desta minha situação, ontem, olhou-me com uma intensidade tal, gostei, confesso; há muito que não me olham assim, e perguntou-me se ainda a amo. Assim, de forma directa, sem rodeios, eu hesitei, claro, disse-lhe a falta que sentia de dormirmos abraçados, de sentir o seu rosto pousado no meu ombro a ouvir uma música, por fim, balbuciei: Se a amo? Queres que responda assim? Não sei…

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