Livros do Escritor

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sábado, 27 de setembro de 2025

A Nininha

 


Hoje a Nininha completou sessenta Invernos, nem todos se podem vangloriar de somar Primaveras, é o seu caso, rasteira, maldizente, sabuja, até de estatura não se distancia muito do chão, o focinho está a meio-caminho entre uma mulher-a-dias e uma freira arrependida, a indumentária também oferece o seu contributo para este quadro, mobiliza-se por sombras e esquinas, rasteira, maldizente, sabuja, volta e meia surge de bandolete, o que lhe confere um ar ainda mais rural, como se a massa grisalha, que lhe preenche o cocuruto, necessitasse de tal ornamento, encostou-se a um desses trabalhos estatais onde o único requisito exigido é: um perfeito analfabeto-funcional; embora, como é evidente, a Nininha some outras distintas aptidões: rasteira, maldizente e sabuja; apesar da sua estatura não se distanciar muito do chão, a Nininha julga-se mais esperta que os demais, coloca uma expressão de seriedade, quando em diálogo, no entanto, a um olhar mais atento, tudo se desmorona ao reparar naquele ridículo ornamento, pois, a bandolete, que lhe confere um ar ainda mais rural, quem pode levar a sério uma criatura assim? Se quiserem encontrar a Nininha, no seu local de trabalho, procurem pelas sombras e esquinas, rasteira, maldizente, sabuja, apesar de tudo, enterneceu-me o nome com que pretende ser reconhecida: Ni-ni-nha... Como uma habitante das trevas, cuja estatura não se distancia muito do chão, as acções nem se tentam a erguer, pretende ser chamada por tal diminutivo: Ni-ni-nha?! Certas figuras femininas, ao perceber-lhes a maternidade, o primeiro pensamento que me assalta é Como alguém foi capaz de a engravidar? Esta tétrica figura entra destacadíssima nesta minha categoria, de facto, Como alguém foi capaz de a engravidar? Bem diz o povo: Para cada panela, há sempre uma tampa; apesar de tudo, custa-me a acreditar que, no caso da Nininha, fosse assim tão peremptório, a menos que também somasse Invernos, não se distanciasse muito do chão, rasteiro, maldizente, sabujo, ou talvez uma noite de copos ou qualquer outro incidente, a não ser que se tivesse encantado por uma bandolete e uma apetência pela ruralidade, hoje a Nininha completou sessenta Invernos, que mais se pode narrar desta tétrica figura? É difícil, mobiliza-se por sombras e esquinas, rasteira, maldizente, sabuja, cumpre ordens, é o que se espera de uma analfabeta-funcional, se detecta uma possível ameaça, rasteira, maldizente e sabuja, nas costas, verte todo o fel ao seu alcance, sem dúvida, a única arte onde se destaca: a maledicência; pela frente, o sorriso apatetado de uma figura por demais ridícula, talvez o tempo já se tenha encarregado de colocar alguém, no caminho da Nininha, para ensiná-la que também a sua esperteza não se distancia do chão, caro leitor, asseguro-vos deste facto, embora me continue a enternecer o Ni-ni-nha... Como não? E aquela ridícula bandolete, digníssima de um qualquer documentário sobre a ruralidade, o focinho a meio-caminho entre uma mulher-a-dias e uma freira arrependida, os passos ligeiros e nervosos sob a luz, é compreensível para uma criatura que se mobiliza por sombras e esquinas...


sexta-feira, 19 de setembro de 2025


 Um homem e uma mulher desconhecem tempos e lugares.

in A noite aproxima-se e o dia está quase findo

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

A noite aproxima-se e o dia está quase findo

 


Não quero dar esse passo sem o teu consentimento… Mas está-me a cansar a tua indiferença. Quantas vezes terei de te repetir que isto é importante para mim? Quantas? Diz-me! Sinceramente, às vezes, parece-me que tens dúvidas sobre nós… Não sei… Nem ousava replicar, ouvia-a com uma expressão algures entre o interesse e a apreensão, e desejava que o tempo se levantasse e prosseguisse a sua marcha, assim, logo a sua atenção num acaso qualquer e o meu sossego restituído, de facto, só aquele assunto para me desassossegar por inteiro… Nem por um qualquer recanto de mim essa possibilidade se colocava, não sei porquê, ela, volta e meia, de novo a falar de berços, enxovais, chupetas, e demais utensílios inerentes à paternidade, nem ouso expressar o meu sofrimento quando, pelos passeios, nos cruzávamos com um casal embevecido a passear o recém-chegado no seu carrinho, de quando em vez, paravam, levantavam a cobertura do carrinho, depois de se certificarem de que por ali ainda se respirava, lá prosseguiam a sua lenta marcha, meia centena de metros depois, nova paragem, nem alternavam, iam os dois ao mesmo tempo, depois de levantarem a cobertura do carrinho, de se certificarem que por ali ainda se respirava, lá prosseguiam a sua lenta marcha, ambos com uma expressão imbecil, como se detentores de uma epifania infelizmente ignorada por todos, como dizia, nem ouso expressar o meu sofrimento quando, pelos passeios, nos cruzávamos com um casal embevecido, pois... Logo ela, num tom crescente, Estás a ver? Viste bem a felicidade deles? Não te interessa, não é? Pois, eu sei… Ao menos confessa, não sejas cobarde! Olha para mim! Diz-me, olhos nos olhos, não queres um filho, não é verdade? Diz-me! Por favor, não disfarces… Olha-os, não desconverses, olha-os, que felicidade… Porquê adiar mais? Porquê? Repara: ouve-me bem: eu não quero e não posso adiar mais um filho! Não sei quantas vezes ouvi esta frase, em média, nos últimos tempos, talvez uma vez por mês, era recorrente concluir assim a sua reivindicação (Repara: ouve-me bem: eu não quero e não posso adiar mais um filho!), nesses momentos, eu quedava-me perante o abismo de uma evidência: éramos dois estranhos. Como sempre acontece debaixo do céu do mundo, num certo momento, os nossos olhares demoraram-se um pouco mais, de seguida, o verbo, a musicalidade da voz, tudo em consonância, quando consegui, de novo, alcançar-me, já juras de amor pelo ar, uma opressão no peito quando ela não por perto, e a certeza pétrea de que me fora apresentado o conceito de amor… Nada como antes? Sem dúvida! Lembras-te quando o conheci? Não sei, como o descrever? Não o achei desinteressante, não, pelo contrário, mas também não foi aquele fogo, percebes, não é? As coisas foram acontecendo, vinha do namoro com o… Sim, pois, descobri que andava há meses com aquela, pois, essa mesma, só de falar, enfim… Foi aí que o conheci, na festa de anos de um amigo comum, não, não sabes quem é, sei que foi ele que me quis conhecer… Ao olhar para trás, não sei, parece-me que não somos nada livres… Como se tudo estivesse escrito, se assim é, gostaria de conhecer tal escritor! E, no que me concerne, gostaria igualmente de fazer algumas correcções. Não, não estou a falar dele… Tivemos bons momentos, que os guardo, claro, porém, hoje sinto-me perdida, náufraga do próprio tempo… Repara: estou a chegar aos trinta, vivo com ele há seis anos, a minha família já nos aceita, apesar de nos termos desviado da igreja, embora, de vez em quando, o meu pai insista, sabes, até lhe compreendo o desgosto, a minha mãe, vá-se lá saber porquê, sempre teve as ideias mais arejadas, agora, de um neto, não abdicam. Quem abdica de ter um neto? Só uma deformidade da natureza podia abdicar de tal! E eu quero ter um filho! Não, não posso esperar mais! Está-me a enlouquecer aquela sua apatia… Não fazemos nada há meses. Às vezes, até penso que ele anda com outra. Não, não me procura… Eu, atendendo às circunstâncias, ainda menos. O que prefiro? Olha, não sei… Desta forma, não podemos continuar. Ele quer um constante presente, eu quero um futuro, é esse o problema… Nunca gostei de ser coagido a uma acção, vendo bem, isso é curioso, lembro-me dos almoços em casa dos meus pais, quando não conhecia os convidados, a obrigação inequívoca da simpatia, de ser cortês, aligeirada quando até simpatizava, dolorosa quando os achava inenarráveis, o que, em verdade, só sucedeu por duas ou três vezes, mas a pressão anterior ao acontecer deixa-me em ebulição, algo que ainda hoje trago comigo, creio que há coisas que já não tiramos da mala, por muito pesada que fique, agora, nem nas manhãs dos dias de descanso nos procuramos, se ela acorda antes, sai da cama de um salto, nem sequer um sumido Bom-dia, nada, quando sou eu a despedir-me do sono mais cedo, assumo a mesma postura, assim andamos há uns meses, não concebo procurá-la com um fito de procriação, e não é só isso, não quero, de todo, neste momento da minha vida, um filho, será assim tão difícil compreender isto? Não percebo esta súbita ideia, que, no fundo, é mais uma fixação, tem-me vindo a espartilhar e espartilhar… De facto, para onde me vire, só vejo crianças, carrinhos, e expressões imbecis, sinto-me completamente a asfixiar. Neste momento, quero uma outra coisa, nos antípodas dessa realidade, sinto que me falta ainda viver um pouco mais, para, então sim, assentar. Até em termos de emprego, somos ambos contratados, mas que fazer? Ela está irredutível! Consegue esboroar qualquer argumento que se lhe apresente em apenas dezenas de segundos. Lá por casa, a nossa situação tornou-se incomportável: um silêncio opressivo que, às vezes, parecia tornar os objectos mais pequenos… Se não fossem as horas de almoço, a compreensão da… Tem sido tão compreensiva, eu falo e falo desta minha situação, até lhe contei da minha falta de ar, que, para onde me vire, só vejo crianças, carrinhos, e expressões imbecis, ela calma, sorridente, a segurar-me a mão, já me disse, tantas e tantas vezes, que eu tenho toda a razão, como é bom ouvirmos isto, principalmente quando o mundo se divorcia de nós, há uns dias confessou-me desassombradamente que não queria filhos, respirei fundo, e que bem me soube… O que é que eu posso fazer? Por favor, mãe, não venhas outra vez com essa que eu estou a ficar obcecada com esta ideia! Afinal, tiveste-me com que idade? Ainda mais nova! Lá está! Desculpa, mas esse argumento que eu quero um pai em vez de um marido não cola… Afinal, há quanto tempo vivemos juntos? Estás a mudar de assunto. Porquê essa pergunta? Já a repetiste quantas vezes? Que disparate é esse? O que eu sinto, neste momento, por ele? Se já parei para reflectir nisto? Mas porquê? Repito: esse argumento que eu quero um pai em vez de um marido não cola… Não vou dizer que as coisas são como dantes, que dormimos abraçados, que repouso o rosto no ombro dele a ouvir uma música, que nos despedimos com beijos abraçados… Mas há coisas que sobreviveram ao passar dos dias. Desculpa, mãe, eu sei que ainda sou nova, mas já vivo com ele há algum tempo. E, não, não me posso comparar contigo e com o pai, mas os tempos são outros… O quê? Engraçado, nunca te tinha ouvido dizer isso (Um homem e uma mulher desconhecem tempos e lugares), não deixa de ter a sua razão… Sabes, hoje sinto-me perdida, náufraga do próprio tempo… Se o amo? Queres que responda assim? Não sei… A compreensão da… Tem sido tão compreensiva, eu falo e falo desta minha situação, ontem, olhou-me com uma intensidade tal, gostei, confesso; há muito que não me olham assim, e perguntou-me se ainda a amo. Assim, de forma directa, sem rodeios, eu hesitei, claro, disse-lhe a falta que sentia de dormirmos abraçados, de sentir o seu rosto pousado no meu ombro a ouvir uma música, por fim, balbuciei: Se a amo? Queres que responda assim? Não sei…

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Quando partir, gostava de ali ficar


 

Em Agosto rumamos a Sul, desde que me lembro, como se tratasse de uma passagem de testemunho, primeiro como filhos, depois como pais, onze meses a correr de casa para o trabalho e a arrastarmo-nos do trabalho para casa, um rito diário que nos faz desaprender o tempo, cinco dias cumpridos numa ânsia crescente que desagua em dois, tão efémeros que nem a mala se consegue pousar, pomposamente apelidados de fim-de-semana, para logo tudo se reiniciar sem jamais despir a sua aura absurda, que surge apenas aos olhares mais atentos, quando férias, aí vamos em excursão para Sul, de certa forma, sempre achei que quem não fizesse parte daquela rumaria se auto-excluía de algo insigne, não sei porquê, há coisas que nos passam pelo pensar, no entanto, desconhecemos o emissário, no meu caso, o Sul sempre foi o mesmo, é curioso, assim que ouço a palavra férias, a imagem daquela povoação de casas brancas, o rio a encontrar a verdade salgada do mar, e um silêncio sobre as coisas que nos relembra a olhar horizontes, diante de mim, há coisas que nos passam pelo pensar, no entanto, desconhecemos o emissário, foi há algum tempo, num Agosto de Sul, que me surgiu esta ideia, pois, o emissário sempre desconhecido, olhei para aquele planalto, sobre o rio que encontra a verdade salgada do mar, onde repousam sonhos de outrora, e pensei que ali também queria repousar os meus, não há melhor lugar quando chegar o momento de compreender a minha verdade salgada, ainda demorei uns dias a confidenciar-lhe este singular desejo, sabia de antemão as respostas (Que disparate! Lá estás tu com essas coisas! Nem de férias sossegas, homem! Mas que coisa tão mórbida… Se vens outra vez com essas coisas, garanto-te que é o último ano que aqui passo férias! Onde já se viu? Em vez de descansar e brincar com os filhos, põe-se com esses disparates… Sinceramente! Só eu para te aturar essas maluqueiras… Olha, só peço que Deus te perdoe…), creio, sinceramente, que se Deus me ouvisse, iria aprovar o meu desejo, ao menos regressaria ao compasso de uma corrente doce que tacteia um infinito de sal, foi mais ou menos aquando do segundo filho, há uns cinco ou seis anos, numa madrugada, do primeiro daqueles dois dias tão efémeros que nem a mala se consegue pousar, ela dormia, reparei, pelos indícios possíveis, que o dia estava ainda longe, levantei-me, caminhei pelas sombras da casa, percebi, num instante, que o sono partira sem aviso de regresso, a respiração ansiosa dos miúdos, no quarto ao lado, chegava ao corredor, com o tempo, o respirar acaba por conhecer a lentidão, fui até à janela da sala, olhei a noite, o silêncio, aquele inquietante momento em que ouvimos sonhos e temores, um carro na distância, sempre um carro na distância, a relembrar-nos a impossibilidade de uma ilusão, no prédio em frente, uma luz que se acende, pois, a impossibilidade de uma ilusão, bebi o que não recordo, apenas para conferir um sentido ao ali estar, como se tudo nos remetesse para a obrigatoriedade de um sentido, encostei a testa ao vidro, soube-me bem aquele frio entorpecer um pensar desabrido, naquele instante, percebi que regressava, lá fora, na noite, no silêncio, a imagem de um planalto, sobre o rio que encontra a verdade salgada do mar, tudo sob a luz estival de Agosto, emoldurado pela noite, por um silêncio sobre as coisas que nos relembra a olhar horizontes, de facto, não há melhor lugar quando o momento de compreender a minha verdade salgada chegar, continuei a caminhar pelas sombras da casa durante mais algum tempo, regressei, uma última vez, nessa noite, à frieza pacificadora do vidro da janela, percebi que o dia já estava na soleira da porta, a noite começava a arrumar a sua mala, decidi deitar-me, ela continuava a dormir, olhei-a, que pena não ter uma janela onde apoiar a testa, talvez assim o frio entorpecesse um pensar desabrido, o meu olhar continuou em lentos passos pelo seu rosto, nem vislumbres daquele sentir que me ensinara o respeito da loucura, nada, apenas uma sã amizade, já não é mau, muitos nem aos arredores disso chegam, mas há muito, um silêncio sobre as coisas ensinou-me a olhar horizontes, ela continuava a dormir, longe dos meus passos sobre as sombras da casa, foi há algum tempo, num Agosto de Sul, que me surgiu esta ideia, pois, o emissário sempre desconhecido, olhei para aquele planalto, sobre o rio que encontra a verdade salgada do mar, onde repousam sonhos de outrora, e pensei que ali também queria repousar os meus, não há melhor lugar quando o momento de compreender a minha verdade salgada chegar, talvez ela também por ali queira repousar os seus, é uma questão de encostar a testa à frieza pacificadora do vidro de uma janela, e esperar pelo vislumbre daquele sentir que nos ensina o respeito da loucura.

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Nada



 A tua questão traz-me à memória uma amiga da minha irmã, estava quase a chegar aos trinta, vivia maritalmente, mãe de dois filhos, viviam numa rulote, no parque-de-campismo, foi o que conseguiram, apesar de o sonho dela em adquirir uma casa, no entanto, o pecúlio mensal de ambos mal cobria as despesas obrigatórias, ele de biscate em biscate, ela, durante o dia, repositora num super-mercado, de noite, trabalhava numa empresa de limpezas, apaixonaram-se demasiado novos e pensaram que fosse para a vida, o descuido habitual da paixão originou o primeiro filho, eram só namorados, com surpresa foram os pais dele a reagir pior, os dela, apesar da avançada idade, separados, a mãe suportava o existir alienada pelo álcool, o pai, quase sempre, com o rosto velado pelas capa e contracapa de um livro, a certa altura, segundo ouvi dizer, já nem de casa saía, gabava-se de Tenho aqui livros suficientes para ler até à minha morte, por conseguinte, não podiam contar com a ajuda de nenhum dos lados, a rulote foi uma prenda do avô-materno dele, tão novos e com um filho nos braços afigurou-se-lhes o ninho perfeito, além, como é evidente, da aura de aventura, nem todos se podem vangloriar de amanhecer no meio de pinheiros, uma rulote não prima por espaços avantajados, assim sendo, embalados por aquela aura de aventura, o segundo filho não tardou muito, desta vez, uma menina, passaram oito anos e continuam na rulote, ela com vinte e quatro anos, menos dois que ele, o amanhecer no meio de pinheiros perdeu toda a magia, tornou-se uma fatalidade, adquirir uma casa, para ela, um sonho de uma outra vida, ele acomodado com a circunstância, volta e meia Nunca compreendi essa coisa de quereres uma casa… Nem visitas temos!, nesta ocasião, foi lesta a responder Isto, algum dia, é lugar para receber alguém? Uma barraca com rodas!, não podia assim ficar Se arranjas melhor, força!, não era comum discussões entre eles, a paixão arrefecera, mas ainda respirava, os pais dele ainda não conheciam os netos, a sua intransigência somava-se, em verdade, ao desinteresse deles, oito anos sem os ver, não lhes sente a falta, a mãe dela, quando se esquece de encher um ou múltiplos copos, acaba por lá passar, leva-lhes compras e brinquedos para os miúdos, tem o dom de compreender o horizonte sonhador de uma criança, como isso é raro, quanto ao pai, pois, Tenho aqui livros suficientes para ler até à minha morte, o rosto, quase sempre, velado pelas capa e contracapa de um livro, ela equacionou visitá-lo com as crianças, contudo, ele insurgiu-se com toda a veemência, Desculpa? Mas não é ele teu pai? Não és tu que trabalhas dia e noite para pôr o pão na mesa? Que consideração esse indivíduo merece? Nem a um telefonema se dignou! Nem sequer para perguntar os nomes dos miúdos! Perante estes argumentos, viu-se obrigada a capitular, o seu motivo era mais subterrâneo, simplesmente tinha saudades do pai e daquele mundo de livros, aquela era, sem dúvida, a casa com mais janelas que já conhecera, se a paixão batesse à sua porta um pouco mais tarde, tem consciência de que muitas janelas abriria na casa paterna, todas as semanas vai à biblioteca levantar um livro, em pequenita o pai fez-lhe uma lista dos autores a que não poderia virar costas, ainda hoje a preserva numa gaveta muito sua, nunca lhe partilhou isto, quando a vê, com um livro, limita-se ao silêncio, apaixonaram-se demasiado novos, olha-a como se uma estranha, afinal, há dimensões nossas que sempre serão estrangeiras para os outros, se a ouvisses falar, verias a riqueza do seu léxico, muito para além de uma mera repositora de super-mercado ou empregada de uma firma de limpezas, se a vida outra, estaria a terminar o seu curso-superior, com a maior das facilidades, é um espírito-inquieto, interroga-se, procura, nas narrativas, os espaços de evasão que tão precocemente a vida lhe encerrou, pelo contrário, ele nunca procurou ir além da sua circunstância, trabalhos de trolha, pouco mais, concluí que, quando conhecemos alguém, a pergunta essencial é: O que fazes nos tempos-livres? E não: Como ganhas a vida? Ele, por exemplo, bilhar no café das proximidades ou consumir jogos de futebol, regados a litros de cerveja, no improvisado sofá da rulote, apesar de tudo, era um pai extremoso, nesse aspecto, a dedicação aos filhos equivalia-se da parte de ambos, como se, por aí, o ontem em reconciliação com o hoje – talvez a paixão os enlevasse na devida altura, nem antes, nem depois, pois, talvez… –, estou para aqui a falar e nem te contei como se conheceram, foi durante um concerto de uma banda em voga há uns anos, a minha irmã presenciou, a certa altura os céus resolvem visitar a terra, ninguém queria perder o lugar, ele tira o casaco e coloca-lhe sobre os ombros, nunca haviam trocado uma palavra, os olhos dela oscilavam entre gratidão e espanto, desde esse instante souberam-se um, como vês, foi de uma forma muito romântica, a minha irmã presenciou, quando se pensa que o maior dos problemas reside no facto de viverem numa caravana, de ela ter de se valer de dois trabalhos para liquidar as contas, de ele apenas somar biscates, tão aquém de uma sonhada estabilidade, o destino relembra a sua existência e tudo baralha, ela, desde há uns meses, a queixar-se de um braço, custava-lhe, cada vez mais, mobilizá-lo, mesmo assim, as prateleiras do super-mercado eram povoadas e os escritórios limpos, os filhos podiam morar numa rulote, mas nos seus pratos jamais faltaria comida, roupas para se vestirem, sapatos nos pés e muitos livros para, no amanhã, não trabalhar sob o sol e sob as estrelas, uma promessa que fez a si mesma, médico, exames, a dor persistia, outro médico, mais exames, até que, após uma longa espera, a conclusão: o médico pegou na sua cadeira, do outro lado da secretária, e ladeou-a, murmurou-lhe haver diagnósticos que não conseguia verbalizar de frente, ela sorriu e Quanto tempo tenho?

terça-feira, 2 de setembro de 2025


 Certas frases não nos largam, por muito que as tentemos lançar para longe, elas sentam-se num qualquer canto de nós, e ali ficam a olhar-nos, um conjunto de palavras que formam um sentido do que fomos, somos, ou quisemos ser...

in A história do homem que se abrisse uma chapelaria, todos passavam a nascer sem cabeça

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

A história do homem que se abrisse uma chapelaria, todos passavam a nascer sem cabeça

 


Estavam dentro do carro há largos minutos, talvez fosse de tarde, ele só entusiasmo, ela apenas lhe acompanhava gestos e frases, com anuências apreensivas, de repente, ele abre a porta, sai, ela segue-o, vão ter com um sujeito que os aguarda, de pasta na mão, expressão e gestos plásticos, tudo num excesso de artificialidade, ainda uns metros a separá-los, o sujeito da pasta já com um enorme sorriso e a mão erguida em rotundas saudações, após os cumprimentos, Vão ver que este é o espaço ideal! Tem duas excelentes montras. No piso de cima, estamos a falar de uma área útil à volta dos oitenta metros quadrados, na cave, desde já ressalvo que dá um excelente armazém, estamos a falar de cerca de cento e cinquenta metros quadrados! Imagine! Se quiser, até pode subalugar parte do espaço, repare, é só uma ideia… Ela, neste ponto, pensou em manifestar o seu desagrado ao sujeito da pasta, por, subitamente, o seu discurso se alterar para o singular, mas continuou impassível, como espectadora chegou, assim quer partir, ao contrário dele, que, neste momento, estava para além do entusiasmo, num estado muito próximo do êxtase com a possibilidade, quase tangível, de alugar o espaço, a pasta compreendeu-lhe o enlevo, Então, o que lhe parece? É mesmo aquilo que procura, não é? Isto, bem negociado com o proprietário, ainda se consegue descer um pouco a renda… Mas teríamos que fechar o negócio hoje! Quer avançar? Por acaso, tenho aqui, já pronta, uma minuta do contrato… Quer dar uma vista de olhos? Ela resolve arrefecer um pouco as coisas, Desculpe, mas antes de mais, diga-me uma coisa… Quantos cafés há neste bairro? É que, antes de fecharmos seja o que for, gostaríamos de conhecer a zona… A pasta emudeceu, procurou refúgio no êxtase vislumbrado há pouco, ele nem sentiu aquele súbito arrefecimento, continua a povoar o espaço despido à sua volta das ilusões que o habitam, quase mecanicamente lá soletrou Sim, é isto mesmo que procuramos. Da minha parte, podemos avançar, ela não se conteve, colocou-se diante dele, abriu-lhe bem os olhos, Não aprendeste mesmo nada, pois não? O que sabes deste bairro? Ao menos, antes, dá duas, não, pelo menos, oito voltas ao quarteirão, antes de assinares seja o que for… Ou queres, daqui a mês e meio, fechar outra vez as portas? Eu não aguento mais isto! Por que é que não te empregas como toda a gente? Porquê esta mania dos negócios e de ser patrão? Não compreendo, desculpa, mas não consigo entender, estou cansada… Aqui chegados, sublinhe-se que a pasta, assim que percebeu o toque demasiado pessoal da conversa, puxou de um cigarro e foi até ao passeio, o gesto foi apreciado, ela também saiu, não por um cigarro púdico, mas para aquietar uma alma dorida, ele quis sossegá-la, ainda pensou em ir atrás, mas por ali ficou, a povoar o espaço despido à sua volta das ilusões que o habitam, duas questões de há pouco não se calavam dentro de si Por que é que não te empregas como toda a gente? Porquê esta mania dos negócios e de ser patrão? Como explicar-lhe que a vida o desviara, em demasia, das mesas da escola? De certa forma, uma opção sua, mas só se compreende o caminho quando se olha para trás, e agora, com a idade que tem, com tão escassa bagagem em termos de livros, que empregos pode ambicionar? E, depois, há aquilo, de que tão pouco se fala, mas que está lá sempre, como uma sombra do que não somos, pois, pois é, o orgulho, e a irmã dela, com uma vida tão boa, dois filhos, o cunhado, advogado, já com escritório numa das principais ruas da cidade, vão-se mudar para uma vivenda, vejam bem, os sogros embevecidos, o nome do cunhado em cada frase, numa ocasião até os ouviu dizer, Pelo menos, a mais velha já tem o futuro garantido… A mais nova é que é um problema… E o problema, claro, tem as sílabas do seu nome, a sogra, certa vez, não se apercebeu de que ele saíra da sala, de que estava estático, e em revolta, num determinado ponto da casa, a ouvir o seu telefonema, ela continuava, O que é que podemos fazer? Só se mete em alhadas! Quer ter, à força, um negócio! Ora veja-se bem… Em vez de ir trabalhar como toda a gente… Pois, tem toda a razão. E o pior, é que não há um que dê certo! Já teve dois cafés, um mini-mercado e uma papelaria! Todos faliram! Sabe, às vezes, acho que se abrisse uma chapelaria, as pessoas passavam a nascer sem cabeça… Só tenho pena da minha filha, coitada, mas há-de crescer… Certas frases não nos largam, por muito que as tentemos lançar para longe, elas sentam-se num qualquer canto de nós, e ali ficam a olhar-nos, um conjunto de palavras que formam um sentido do que fomos, somos, ou quisemos ser, apenas e só, escusado será dizer que, nesse dia, ele saiu de rompante, nem se despediu, quando se apercebeu, ela seguiu-o, não era o primeiro registo de tal facto, a colecção destas ocorrências era farta, tal como o desgaste, mas aquela frase, em verdade, não se sentou a um canto, sentou-se bem diante dele, Sabe, às vezes, acho que se abrisse uma chapelaria, as pessoas passavam a nascer sem cabeça… Isto acontece quando um conjunto de palavras formam um sentido do que quisemos ser, a vida começava a ultrapassá-lo, pelo espelho, só encontrava grisalhos, pelas ruas, já era o senhor, neste momento, ela saiu, não por um cigarro púdico, mas para aquietar uma alma dorida, ele ainda por ali, a povoar o espaço despido à sua volta das ilusões que o habitam, a pasta, entretanto, terminara o seu púdico cigarro, hesita em puxar por um segundo, Sabe, às vezes, acho que se abrisse uma chapelaria, as pessoas passavam a nascer sem cabeça…, há coisas que doem até às raízes, talvez por abrirem chagas de onde nos saem sonhos em vez de sangue, ou talvez seja uma outra coisa essa dor demasiada, o destino a apontar uma outra direcção, pois, talvez, olha-a do outro lado da rua, está de costas, percebe que cruzara os braços, não espera muito mais, vai ao seu encontro, atravessa a estrada, diz-lhe qualquer coisa ao ouvido, ela volta-se com um sorriso.