Livros do Escritor

Livros do Escritor

terça-feira, 27 de maio de 2025

O respirar da noite


 

Saía com o cão, todas as noites, à mesma hora, no passeio, logo à entrada do prédio, um casal de namorados, ela sua vizinha, abraçados, em juras de amor eterno, olhou-os com indulgência, sabia que, à maioria, um casal de namorados apenas suscita azedume e inveja, pelo sentir jamais reencontrado, ao contrário, ele em compaixão pela magia que iriam inevitavelmente perder, tarde ou cedo a vida encarregar-se-ia de lhes subtrair aquelas juras de amor eterno, a insaciável vontade de permanecerem abraçados, o perder-se no olhar do outro, como se uma inevitabilidade o esboroar daquele encantamento, de imediato, ambos cumprimentaram-no, retribuiu, a vizinha não resistia a umas festas no cão, o rapaz mais contido, em verdade, nunca olhamos para um casal de namorados, mas sim para a nossa história de então, a indulgência dele era fruto da saudade daquele sentir, apenas isso, como a tentou reencontrar, tudo em vão, demorou tanto a compreender este facto, e como sofreu, ainda a tempo resolveu olhar, de frente, para esse vazio na alma, e sorrir-lhe desdenhosamente, era o que lhe restava, encolheu os ombros e pôs-se ao caminho, assim que a rapariga parou com as festas, ele e o cão prosseguiram o seu lento percurso nocturno, não que os diurnos obedecessem a outros ritmos, ele a completar setenta sob o céu e sobre a terra, o cão já somava doze, em idade canídea também um idoso, daí realizarem passos pensados, uma queda anteciparia o fim, olhou, de onde estava, a iluminada janela de sua casa no segundo-andar, sorriu, ela lá estaria, de robe, encaixada no sofá, a assistir à segunda-parte do episódio vespertino da telenovela, aquando da saída, do segundo filho de casa, ela começou a queixar-se do excessivo silêncio, que não aguentava, esta questão de esporádica passou a recorrente, a preocupação começou a avolumar-se nele, numa conversa de escada, o vizinho de cima esclareceu-o sobre os benefícios de um cachorro para quem se queixa dos excessivos silêncios do lar, “Veja se percebe: é como ter uma criança novamente! E sem crises de adolescência, encargos fiscais, escolares, exigências de marcas, enfim, e os desgostos… Pois, olhe, eu que o diga! Os filhos só me deram desgostos! Ao menos, com os meus patinhas só tenho alegrias… Logo de manhã, a cauda não pára, os dois à nossa volta, como se não nos vissem há um mês… Olham-nos com uma ternura singular, como se fôssemos divinos… Jamais encontrei tal olhar num humano… Nem os meus pais alguma vez assim me olharam… Apenas têm três exigências: comida na tigela, a ida à rua e, volta e meia, uma festa nossa, há coisa melhor?,” cada um tem, pelo menos, uma temática que lhe aligeira o verbo e, ao mesmo tempo, ilumina o olhar, percebeu, de imediato, que o vizinho de cima era da tribo dos patinhas, manifestamente hoje há tribos de e para tudo, foi buscá-lo com meses, nunca revelou onde, se comprou ou adoptara, teria entre dois ou três mesitos, ela não resistiu, assim que o marido o depositou no seu então desolado colo, alegria em regresso ao seu rosto, despediu-se de dez ou quinze anos, tal as energia e vivacidade reencontradas, quando, dias depois, o apresentou ao vizinho de cima, à porta do prédio, quase foi sujeito a um rito iniciático, cumpria-se as boas-vindas à tribo dos patinhas, a conversa foi bem para lá de uma hora, segue os passos, direccionados pelo farejar, do cão, ora para um lado, ora para outro, à porta do prédio ao lado, um sujeito fuma um nervoso cigarro, estava em qualquer lado menos ali, no entanto, cumpriu com a sua educação e “Boa-noite!”, percebeu-lhe surpresa, as coisas caem em desuso e encaramo-lo com uma naturalidade exasperante, ele jamais declinou os seus valores em prol dos inquietantes ventos do hoje, o sujeito interrompe o nervoso cigarro e “Boa-noite… Boa-noite…,” que problemas o cercavam para, àquela hora, descer até ao passeio na companhia de um cigarro nervoso? Agora o encontro é ao nível do passeio, dois focinhos que avidamente se cheiram, o outro cão, bem mais robusto, conduz uma velhota, também morava no prédio do lado, cujo principal chamariz reside na excêntrica boina, a meio-caminho entre o Popeye e o Robin dos bosques, era de verbo fácil, conversas de superfície, oscilavam entre os feitos do canídeo e do neto, lá percebeu que o dono do cão, afinal, era o filho, por falta de paciência para o passear, optou pela solução própria de um irresponsável: deixá-lo em casa dos pais; era confrangedor assistir ao arrastar da velhota impelida pelo corpulento animal, ela nunca se queixou, sublinhava compassadamente o amor ao bicho, talvez para escudar a irresponsabilidade do filho, ele limitou-se a anuir, enquanto percepcionava a assimetria de tamanhos entre o seu e o da velhota, é possível que o seu chegasse a um terço, entretanto, junta-se-lhes a nora, vinha buscar o filho, “Sim, já jantou! Não te preocupes… Deve estar a jogar… Sabes como é… Hoje um dia, estes miúdos nem uma estrada sabem atravessar… Só querem ecrãs… Sobe, ainda tenho de dar a volta ao quarteirão…,” ele, nem por uma vez, viu o olhar da nora descair para o cão que era do marido, como se tratasse de uma inexistência, quanto mais ajuda à frágil sogra para o passear, acenou uma despedida e foi buscar o filho, “Se quiseres, leva o que restou do jantar…”, tanto amparo só pode, de facto, gerar irresponsabilidade, nem olhou para trás, para a velhota que se contorcia a cada puxão do corpulento bicho, quem sabe se, nesse preciso momento, o filho não estivesse estendido no sofá, a assistir ao futebol, e à espera das sobras do jantar dos pais, despediu-se da excêntrica boina e seguiu passeio fora, por fim, chegou ao fundo da rua, por momentos, fechou os olhos para sentir o respirar da noite, a ilusão de os sonhos serem tangíveis, sentiu um puxão na trela em direcção ao lar, o animal parecia sorrir-lhe gratidão, a completar setenta sob o céu e sobre a terra, poucas coisas o faziam sorrir, mas não resistia àquele olhar onde a malícia não tinha porta de entrada.


domingo, 18 de maio de 2025

Consolação II

 


À angústia do último quadrado de chocolate somava-se o iminente confronto de olhares com a mãe, sentada, diante da televisão, no sofá, parecia aguardá-la, como se para lhe relembrar a derrota por, há cerca de quinze anos, afirmar “Só aqui regresso, para vos visitar…”, entretanto o pai tornou-se uma memória, partira, de madrugada, há uns anos, os médicos, quando desconhecem a causa, “Complicações de vária ordem…,” em verdade, muitos partem por cansaço, simplesmente já não lhes apetece vislumbrar a manhã seguinte, fadiga por esperar que tudo uma outra coisa, quando a realidade sempre num estatismo repetitivo e exasperante, em alguns aspectos apenas para pior, ela evitava olhar as diversas fotografias do pai expostas lá por casa, sobre camilhas ou destacadas em prateleiras, curioso o facto de a mãe omnipresente a seu lado em todas – reflectiu neste tema em criança: o pai não teria uma existência própria? Lá compreendeu, com o tempo, que a vida de um casal obedece a um respirar onde nem a imaginação entra… -, não havia um porquê, simplesmente, num canto de si, perturbava-a, como se, afinal, ainda por ali estivesse a tomar conta dela, não adiou mais o confronto, saiu da cozinha a olhar directamente a mãe, sentada, diante da televisão, no sofá, com os habituais riso e olhar desdenhosos, sibilou “Já vi que chegaste e te foste logo esconder atrás de um chocolate…,” nada lhe escapava, sentiu vontade de a insultar, após um dia de trabalho, a derrota de imperativamente ali regressar, precisamente onde, há cerca de quinze anos, afirmou “Só aqui regresso, para vos visitar…”, como lhe doía, não há dor como a da alma, o regresso ao lugar de onde jurou partir, pareceu-lhe, de repente, que essa década e meia, longe dali, pudesse ser fruto da imaginação, um sonho durante o dia, um desejo de evasão, o cheiro da casa inundava-a, via somente os azulejos do chão da cozinha, não tinha, nesse momento, forças para mais, sentiu-se uma prisioneira recapturada, condenada à fatalidade daquela circunstância, alguém que desejou o mundo e, no fim, continua a olhá-lo da sua janela, foi de tal ordem que o verbo lhe soçobrou, “Olha que estás a ficar gorda…,” velou-se atrás de um sorriso e foi para o quarto, embora, por ali, nada sentisse como seu, ela dolorosamente compreendeu, ainda na adolescência, no decorrer de um dia de praia, tudo, foram os três, ela e os pais, ter com um casal amigo, também com uma filha, que alugara uma casa, para passar as férias de Verão, numa vila costeira perto da capital, recorda-se nitidamente de ficar encantada com a beleza da povoação, encimada por um castelo, descia branca, pela colina, até à praia, o mar de um azul oceânico, relembrava simultaneamente o seu carácter antagónico – quietude e tormenta –, saíram cedo, para sua surpresa, a viagem foi curta, habituada que estava a longas odisseias de estrada, pois, a vila costeira ficava perto da capital, até os pais revelaram surpresa pela proximidade e tamanha beleza do lugar, desconhecido até então, foram recebidos com cortesia, mostraram-lhes os encantos do casario branco que descia, pela colina, até ao mar, como se fosse necessário somar, rendidos como estavam, foi de tarde, na praia, ela questionou algo à mãe, a resposta seca e irónica, sublimadamente a apelidá-la de burra, no entanto, foi o desprezo no olhar que sobre si derramou, nem com um estranho conseguiria reunir tanta repulsa, uma voz, em si, murmurou-lhe “Ela inveja-te a beleza e a juventude…,” não, não podia ser, era sua mãe, a voz de novo “Ela inveja-te a beleza e a juventude…,” impossível, é mãe! Como podia invejar a própria filha?! Quase em desespero, a voz reergueu-se com clamor “Ela inveja-te a beleza e a juventude…,” era um facto, como conseguira reunir, num simples olhar, tamanha repulsa? Para continuarmos a respirar, vezes a mais, calamos as evidências que se iluminam nos recantos da alma, assim foi com ela, apesar da frieza, desde esse dia, estabelecida entre mãe e filha, quem sabe se a mãe, ao perceber o desabrochar da filha, perspectivasse o seu iminente ocaso, mas não é a da ordem natural do existir os pais deixarem o palco do acontecer aos filhos? Era comum criticar as mesuras do marido com a filha, intuía-lhe ciúme, queria, de todas as formas, ser o centro, uma inesgotável carência de atenção, não havia semana em que, lá por casa, ela não lamentasse com um grito “Deus: por que não me deste um filho?,” foi após esse dia de praia, onde uma voz, em si, lhe murmurou “Ela inveja-te a beleza e a juventude…,” fechou a porta do quarto e rodou a chave, o facto de, naquele espaço, estar trancada, permitia-lhe a sensação de uma fronteira, ali, pelo menos, a mãe teria de bater à porta, pareceu-lhe, em algumas ocasiões, quando ela gritava, lá por casa, “Deus: por que não me deste um filho?,” o pai responder-lhe “Para quê? Mais um berço a quem voltarias as costas…,” talvez fosse uma impressão sua, no entanto, a voz do pai também lhe chegava, nunca levantou esta questão, os diálogos foram-se subtraindo à medida que as sombras se avolumavam, por ali vestígios da outra que foi há tanto, era o seu quarto de menina, objectos de uma outra existência, quase não os reconhecia, tão anteriores a uma voz, em si, lhe murmurar “Ela inveja-te a beleza e a juventude…,” pegou numa das suas bonecas preferidas, sentada na prateleira de um móvel, reparou no cabelo eriçado, de imediato procurou uma escova, quase em pânico, não admitia que a sua boneca preferida tivesse o cabelo em tão deplorável estado, abriu gaveta atrás de gaveta, não desistiria até encontrar a diminuta escova que restituísse o brilho e a dignidade ao cabelo da boneca, a outra de há tanto, afinal, ainda por ali habitava.

terça-feira, 13 de maio de 2025

Uma janela onde nunca anoitece

 


É inegável que ele mudou desde que… Sempre achei que as evidências existem por alguma coisa, daí que não valha a pena virar costas ao óbvio, nunca apreciei particularmente aqueles rostos invernosos que se procuram esconder com artifícios primaveris, como se fosse possível sublimar cada traço de uma existência, mas, como dizia, é inegável que ele mudou desde que, pois, de facto, quando agora saio de manhã, ainda fica a dormir, agarro, em cada gesto, o possível de silêncio para que perdure aquele sono, foi há pouco mais de um ano, chegava sempre perto da hora de jantar, as miúdas já na mesa, assim que ouviam a chave, os bancos a ressoar pela casa, as duas numa corrida ao seu encontro, um rito diário que cessou naquele fim de tarde, esperou que terminássemos o jantar, as miúdas na cama, contudo, pela demorada nervoseira ao abrir hoje a porta, percebi-lhe a dificuldade de um fardo imprevisto, após dois cigarros inquietos na varanda, veio para dentro, olhou-me, eu sentada, à espera daqueles momentos que me fazem esquecer de mim, se há coisa que me irrita, é aquela gente que fala mal das novelas, regra geral são uns pseudo-intelectuais que não percebem nada disto, que mal há nuns momentos que me fazem esquecer de mim, com toda a certeza, na vida desses pseudo-intelectuais também haverá momentos em que precisam de se esquecer de si mesmos… Acho que toda a gente precisa, mas, como dizia, após dois cigarros inquietos na varanda, veio para dentro, olhou-me, eu sentada, lancei a questão como um convite para se apear do fardo (Não achas melhor contar, de uma vez, o que se passa?), não se mostrou surpreendido, confesso que já noutras ocasiões revelara os meus dotes mediúnicos, percebi, pela longa expiração antes do verbo se iniciar, a dimensão do fardo, sentou-se e olhou a carpete, antes, tirou um cigarro, que não chegou a acender, e manteve-o nervosamente, entre indicador e médio, tal como criança que carece de um objecto familiar quando pisa terrenos distantes do olhar maternal, nessa noite, antes daqueles momentos que me fazem esquecer de mim, se há coisa que me irrita, é aquela gente que fala mal das novelas, regra geral são uns pseudo-intelectuais que não percebem nada disto, fiquei a saber que a firma, onde ele trabalhava há dezoito anos, se ia mudar para um qualquer país, nem me lembro do nome, li, com uma avidez receosa, na folha, que, num indisfarçável gesto de tristeza, ele me estendeu, por mais que uma vez, a palavra deslocalização, deslocalização de meios, deslocalização de recursos, deslocalização com o objectivo de exponenciar resultados, curioso, para mim, bastava terem escrito que se iam mudar, para quê um vocábulo tão arreigado? E, se não tivessem, algures pelo caminho, olvidado o conceito de honestidade, aproveitavam para informar que iam reduzir significativamente os custos com a mão-de-obra, levantei-me e fui sentar-me a seu lado, aproveitei para lhe serenar aquele cigarro oscilante entre indicador e médio, procurei direccionar-lhe o olhar para o amanhã, dei por mim a debitar frases cansadas onde esperança e vida se repetem numa cadência obstinada, a certa altura, ele levanta-se, não sei porquê, mas pareceu-me magro e amarelecido, como se, naquele entretanto, tivessem decorrido anos, entristeceu-me vê-lo assim, um flagrante contraste com a imagem que em mim perdura, dirigiu-se para o quarto e deitou-se, tempos depois, quando obteve a declaração da empresa, dirigiu-se àquele suplício, com a irónica designação de centro de emprego, para reclamar o subsídio a que tinha direito, sempre me questionei quantas pessoas efectivamente terão, por ali, conseguido um real emprego, não digo ocupação, mas sim, emprego, estas e outras questões inquietavam-me nessa manhã, de repente ele Nunca pensei ter de passar por isto… Acabar assim… Já viste? Dediquei grande parte da minha vida àquela casa, e agora… Nem um mísero telefonema, para saber se preciso de alguma coisa. Antes de sair, liguei para o Fernandes, sabias? Atendeu-me a mulher e disse que ele ainda estava a dormir… Vê lá tu, o Fernandes… Um tipo que era sempre o primeiro a chegar ao posto de trabalho! Sinceramente, isto dá vontade de dar um tiro na testa. Essa é que é a realidade… Se não fossem as miúdas, não sei… Neste ponto, olhei-o para que se calasse, achei que o solilóquio caminhava para a pieguice de gosto duvidoso, apesar de ali termos entrado com a irrepetível frescura de uma manhã, quando saímos, entorpecidos, é certo, já a tarde ia em saudações de despedida, senti-me tão bem quando, sob os meus pés, senti a calçada, e uma brisa entardecida se demorou pelo meu rosto, discretamente, olhei para trás, o edifício lá continuava, imperturbável, agora a umas dezenas de metros, como se padecesse de uma forma de autismo, tal a dor que albergava, mulheres de todas as idades, algumas com os filhos, sonolentos de fome, nos braços, quando mais novas, a aspiração a algo que sempre se distancia mais um passo, se de meia-idade, como ele, o terror súbito de se deparar com um abismo, a meio de um percurso de nome vida, como uma ferramenta que se afigura gasta para certas actividades, mas que, ao mesmo tempo, não devia ser irremediavelmente votada a uma gaveta esconsa, por fim, as mais velhas, ainda uns tempos de sentença, ainda uma soma de humilhações, até à certeza do rendimento porque labutaram todos aqueles anos, em ocupações estrangeiras das que exerciam, por terem abandonado o percurso tão perto do fim, não obstante ser um abandono involuntário, como se deu com ele, não sei porquê, mas, naquele edifício, imperturbável, agora a umas dezenas de metros, que padecia de uma forma de autismo, o desespero masculino afigurava-se mais alto, não pelos filhos, sonolentos de fome, nos braços, não pela aspiração a algo que sempre se distancia mais um passo, não pelo terror súbito de se deparar com um abismo, mas pelo simples facto de se ver retirado de um papel ancestral, como se lhe fosse negada uma dimensão de ser, desde há pouco mais de um ano, que ele sente essa exclusão, para sobreviver tem somado lamelas e lamelas, e tardes de balcão a uns passos de casa, também já houve algumas humilhações em ocupações estrangeiras das que exercia, cansei-me de lhe direccionar o olhar para o amanhã, se dali apenas vem mais uma tarde de balcão a uns passos de casa, também deixei de debitar frases cansadas onde esperança e vida se repetem numa cadência obstinada, resta-me insistir para que se sente a meu lado, quando aguardo aqueles momentos que me fazem esquecer de mim, se há coisa que me irrita, é aquela gente que fala mal das novelas, regra geral são uns pseudo-intelectuais que não percebem nada disto, que mal há nuns momentos que me fazem esquecer de mim, pode ser que ele também se esqueça do hoje e se lembre do que é ser feliz…

sábado, 10 de maio de 2025

A linguagem do olhar


 

“Sabes, ando para aqui com uma ideia de… Sei lá… De virar costas a tudo…,” “Recomeças com as tuas crises! Nada de novo…,” “Não, desta vez é diferente! Sinto-me enfadado de tudo… Olho para as coisas, à minha volta, e só um enorme bocejo…,” “Quantas vezes te ouvi isso… É uma fase, como muitas que atravessaste, verás…,” “Enganas-te! Há uns dias, dei por mim a dar uma volta pelo porto, vê bem onde me levaram os pensamentos: ao porto! Andei por lá, a sentir o apelo da partida, olha que é irresistível, quando vi a oportunidade, não hesitei, subi a um navio-mercante atracado, por acaso ninguém me viu, só para olhar o meu quotidiano de um espaço que, de um momento para o outro, ruma para um lugar que nem a nossa imaginação alcança…,” “Sonhas em partir para um lugar que nem a imaginação alcança, eu sonho em chegar ao final do mês sem me endividar…,” “Sempre foste realista, apreciava essa tua faceta, de certa forma, enternecia-me, talvez por não a possuir, mas também não a desejar,” “Não é uma faceta, apenas o clamor do imperativo-de-sobrevivência! E estes miúdos, a devorar, parecem marabuntas! Cada vez que vamos às compras, a conta não fica aquém dos três algarismos! Por muitas voltas que se dê, não há alternativa, um número permanentemente, composto por três algarismos, é-me subtraído da conta! E não levo coisas caras, ando munida de cupões de desconto, cartão de cada super-mercado, enfim, pareço uma tolinha especializada em poupanças… Se, algum dia, sonhei chegar aqui… Sabias que, há sessenta anos, o poder de compra, neste rectângulo, era dez vezes superior? Pois, é daquelas coisas que não interessa divulgar!.” “Ficam pelos dois filhos?,” “Sim, claro! Se tantas contas faço para os alimentar, vestir, educar, achas que íamos mandar vir outro?,” “Nunca te vi como mãe! Era um dos aspectos que me encantava em ti… Como eu nunca quis ser pai…,” “E não se pode dizer que tenhas falhado…,” “Longe disso! Não sei como suportas essa vida comezinha: trabalho, compras, tarefas domésticas, trabalho, compras, mais tarefas domésticas, fins-de-semana que nem permitem contemplar um horizonte, tal a vertiginosa velocidade a que passam, Domingo à noite, a angústia instala-se pelo recomeçar: trabalho, compras, tarefas domésticas, trabalho, compras, mais tarefas domésticas… E entre vocês, tudo bem?,” “Não se trata de suportar, mas de cumprir com as obrigações… Há facetas, como é natural, que ignoras quando se é pai ou mãe, pensas o futuro de uma outra forma, espera, deixa ver se me compreendes: quando se é pai ou mãe, o futuro deixa de ser singular, passa imediatamente a ser plural,” “Profundo, muito profundo… Sempre tiveste uma boa elasticidade mental. O que me leva, no meio de tudo isto, a colocar-te uma questão: Onde estão os sonhos que confidenciávamos madrugadas adentro?,” “Por outras palavras, estás a perguntar se sou feliz? Pois bem, podia facilmente retribuir-te a questão, agora, quando um homem pergunta a uma mulher pela sua felicidade, de forma sublimada dá a entender que a faria mais feliz…,” “É uma interpretação,” “Eu sei, e é a minha!,” “Continuas sem responder…,” “Não julgues que fujo à questão! Mas terei de te responder com uma pergunta que, volta e meia, me coloco: Seria feliz noutro contexto?,” Encontraste resposta?,” “Não eras tu a afirmar repetidamente que perguntas e respostas nascem irmanadas?,” “Continuas a fugir da questão…,” “Pelo contrário, compreendi, muito a custo, que ou sonhamos, ou vivemos… Optei pela segunda possibilidade,” “Denoto, na tua voz, pesar, uma fatalidade derrotista…,” “É uma leitura possível. Decidi, no devido tempo, arrumar o ontem. Tu, pelos vistos, continuas a trazê-lo contigo, e, a cada paragem, ficas a contemplá-lo, como se daí retirasses algo para o hoje,” “Não me considero saudosista! Bem pelo contrário, apenas reflicto se tudo podia ser uma outra coisa… Onde errei? Onde errámos?,” “Isso só te traz angústia, porque nada podes alterar,” “Não te preocupes, não vivo angustiado, e sei há muito que apenas posso alterar a forma de olhar o que se passou… Quando há pouco disseste compreendi, muito a custo, leva-me a concluir que, afinal, não sou o único a reflectir se tudo podia ser uma outra coisa…,” “Qual a dúvida?! Só os que vivem à superfície das coisas não têm este arrojo! E como nós mergulhámos no caudal do sentir…,” “Responde com sinceridade: Ama-lo?,” “Nunca foste de meias-palavras, como nunca conseguiste guardar o verbo por muito tempo, tens imperativamente de o lançar no mundo… Uma das grandes lições do tempo é a compreensão do nevoeiro da vida, por outras palavras: a paciência de esperar a luz que consigo traga o entendimento das coisas. Percebeste?,” “Ama-lo?,” “És teimoso! Eu não tenho tempo para deambular pelo porto, inspirar partidas, olhar e subir a navios, para vislumbrar a minha circunstância de outra perspectiva… Quando há pouco te falei da compreensão do nevoeiro da vida, era para ver se percebias que nem tudo é: sim ou não, verdade ou mentira, preto ou branco, facto ou ficção, sonho ou realidade; há demasiadas zonas intermédias que aguardam por uma luz para vermos onde, afinal, se posicionam… Que pena seres tão extremado! Bem sei que te ajuda a nortear os passos, mas tinhas tanto a ganhar se aligeirasses essa tua faceta,” “Ama-lo?,” “Ainda não compreendeste? Depois de tudo…,” “Pois, é isso, sou extremado e infantil por deambular pelo porto, inspirar partidas, olhar e subir a navios, para vislumbrar a minha circunstância de outra perspectiva, sabes, ainda guardo os teus sonhos, se quiseres, posso relembrar-te alguns com aroma a partidas, brisas salgadas e a olhar, da distância, a infelicidade deixada para trás.”

domingo, 4 de maio de 2025

Uma expressão a resvalar para o beicinho



Teve de estacionar longe, compreensível pela hora tardia, com os anos as prioridades também mudam (quem diria que um lugar-vago, para arrumar o carro, assumiria contornos quiméricos?), desceu a rua, de mãos nos bolsos, olhar na calçada, em verdade, arrastou-se passeio abaixo, as solas dos sapatos não se chegavam a descolar do chão, por fim chegou ao destino, olhou pela montra para verificar se ainda por lá clientes, pareceu-lhe não haver muitos, resolveu entrar, o amigo apercebeu-se da sua presença e saudou-o, sem retirar as mãos dos bolsos retribuiu o cumprimento com uma anuência do rosto, embora a sua expressão apenas traduzisse um irreprimível desejo de partilha de uma dor demasiada, sentou-se, mais concretamente deixou-se cair, numa, das duas cadeiras, da entrada, a mão, em incessantes passagens pelo rosto, revelava a sua angústia, na mesita, bem à sua frente, duas ou três revistas com o prazo de validade expirado há anos, o amigo olhou-o com apreensão, a perspectiva de um  jantar a horas esfumara-se com a sua entrada, de mãos nos bolsos, com uma expressão que transparecia um irreprimível desejo de partilha de uma dor demasiada, a conversa seria longa, apesar de saber há muito que seria um longo e entediante monólogo, como sempre sucedia quando ostentava aquela peculiar expressão de rafeiro acossado e incompreendido, os clientes abandonavam o espaço numa evidente contrariedade de regresso a casa, por aquele ser, de facto, o seu lar, parecia que só ali eram ouvidos, assim que o último transpôs a porta, prontamente foi sentar-se ao lado do infortunado, que ainda olhava as duas ou três revistas com o prazo de validade expirado há anos, perguntou-lhe, como é evidente, a razão do seu desamparado ar, nada a que não estivesse habituado, de repente, não obstante a expressão de rafeiro acossado e incompreendido, levanta-se, a indignação que consigo transportava impediu-o de permanecer sentado por mais tempo, de pé, virou-se para o amigo, com uma expressão a resvalar para o beicinho, de bebé a quem acabaram abruptamente de retirar a chucha, “Sabes o que ela me acabou de dizer? Sabes o que ela me acabou de dizer? Consegues imaginar?!,” o amigo, sentado, via o jantar como uma miragem, teve de suster o rosto na mão, acometido que estava pelo desespero, não havia outra possibilidade, entre si e a salvífica porta aquela peculiar expressão de rafeiro acossado e incompreendido, respondeu com o tradicional encolher de ombros, Que eu já não lhe digo nada! Que eu já não lhe digo nada! Imagina: eu já não lhe digo nada! Depois de tudo que fiz por ela…,” os passos nervosos avolumaram-se à volta da mesita, o amigo permanecia sentado, respondia com lugares-comuns “Pois… Não se faz… Realmente… Não merecias… Logo tu, que tanto investiste na relação… Ela vai arrepender-se e pedir-te desculpas…”, “Sabes quantas vezes lá dormi? Uma! Imagina: só uma!,” nesta altura, definitivamente já se despedira do jantar, o serão estava só a começar, após casamento, dois filhos, não resistiu ao encanto de uma aventura, a adrenalina, muitas vezes, torna-se o sentido, foi, no entanto, descoberto, nunca primou pela sageza, o que precipitou o divórcio, as suas malas acabaram por tocar à campainha da aventura, divorciada e também com dois filhos, o irónico enlear da existência, ambos com percursos similares que se acabaram por cruzar, quando se preparava para uma noite de arfares e corações descompassados, eis que os dois filhos, pequenitos, já ocupavam a cama, ela, à laia de explicação, “Sabes, após a partida do pai, ficaram com medo de dormir sozinhos… Compreendes, não é? Coitadinhos, ainda são muito pequeninos…,” de um lado, via um quase com nove anos, que o olhava com uma expressão de autêntico homicida, o outro teria menos dois anos, uma face enrugada que trazia à memória, sabe lá porquê, um demónio que, em tempos, vira num filme, não vivesse a doçura da paixão, e teria dali fugido tão rápido quanto lhe fosse possível, acabou no sofá, desconfortável, as suas costas ainda o testemunham, na noite seguinte, o mesmo suplício, até se tornar um hábito, como última imagem de cada dia, ela, deitada, de um lado, via um quase com nove anos, que o olhava com uma expressão de autêntico homicida, o outro teria menos dois anos, uma face enrugada que trazia à memória, sabe lá porquê, um demónio que, em tempos, vira num filme, não é propriamente o melhor incentivo ao sono, se ainda somarmos o notório desconforto do sofá, enfim, dormir tornou-se um horizonte de inquietude, só houve arfares e corações descompassados, de noite, quando as criancinhas foram num passeio escolar, foi tão marcante para ele que registou de forma indelével - “Sabes quantas vezes lá dormi? Uma! Imagina: só uma!” –, assim que soube da ausência nocturna dos filhos, no seu pensar apenas os lençóis dela livres para si, do beicinho acabaram por nascer lágrimas, o amigo afundava-se na cadeira, subitamente, do seu bolso um som insistente, ajudou-o a despertar, era a sua mulher a perguntar se tudo estava bem, há mais de três horas que o jantar o esperava, o outro nem se apercebeu do telefonema, nem que o amigo, entretanto, abrira a porta para saírem, continuava na sua incessante e nervosa passada à volta da mesa, com os olhos em água, a repetir “Que eu já não lhe digo nada! Que eu já não lhe digo nada! Imagina: eu já não lhe digo nada! Depois de tudo que fiz por ela…”


sábado, 3 de maio de 2025

As coisas nunca ficam onde as deixámos…

 



Há um momento, na vida de todos, onde se dá a compreensão se partilhamos os mesmos sonhos que os pais, de uma outra forma, se aquilo que queremos ou chegamos a ser equivale aos seus anseios, este momento aportou cedo na sua vida, ainda na meninice, lá por casa Tens de ser doutor… Tens de ser doutor… Tens de ser doutor…”,  mas que raio é isso de doutor, ele queria é ser um super-herói, agora doutor, para salvar a humanidade, viver uma existência aventureira, de constante perigo, ser ovacionado por todo o mundo, comparar este seu anseio com uma vida comezinha, incógnita, aborrecidíssima, que obriga ao consumo e consumo de livros, exames, mais exames, e exames ainda, anos de faculdade, havia sequer comparação possível? Começou, nesta fase, a olhar os pais com desconfiança, será que era assim tão amado como muito gostavam de propalar? Não era uma questão de somenos, aqui abriu-se-lhe a primeira crise existencial, e uma hipótese começou a tornar-se nítida – ter sido resgatado de um orfanato –, como muitos dos super-heróis que lhe norteavam os sonhos, de facto, tudo se encaixava, daí um abismo de incompreensão, entre eles, face ao amanhã, da sua parte, o amanhecer, no cimo de um arranha-céus, após uma inclemente madrugada no combate ao crime, da parte dos pais, sentado a uma secretária curvado para os livros, pois, coisas bastante distintas, apesar de menino, havia consciência dos limites lá por casa, optou por calar os sonhos e anuir às pretensões paternas, não fosse perder o mapa dos seus sonhos – os relatos desenhados das façanhas dos seus ídolos –, claro que tinha os da sua predilecção e aqueles onde menos se revia, com esses nem tempo perdia, nem um mínimo reflexo de si por ali havia, a ânsia de espelho era muita, lá por casa, ao refrão Tens de ser doutor… Tens de ser doutor… Tens de ser doutor…”, juntava-se o Estuda! Estuda! Estuda para seres doutor…,” por ali o amanhã era de uma manifesta estreiteza, começou a ensurdecer para tais ditames, a sobrevivência impunha-se, bem como a sanidade mental, talvez fosse um dos primeiros super-poderes a adquirir sem se aperceber, dentro dos entediantes e volumosos livros-escolares colocou um dos relatos desenhados das façanhas dos seus ídolos, assim passou a quase não ouvir o “Estuda! Estuda! Estuda para seres doutor…,” quando lhe abriam a porta do quarto, para ver se cumpria com os deveres escolares, viam-no concentradíssimo, debruçado para o manual, a materialização dos seus desejos, nada verbalizavam, recuavam e encostavam a porta, numa respeitosa lentidão, como se interrompessem um momento sacro, a sua geografia estava em Nova-Iorque, a química na substância das teias do super-herói que, naquele instante, lhe ocupava simultaneamente pensamento e sonhar, a matemática andava à volta do número de criminosos a derrotar, a física no permanente desafio das alturas a cada salto executado ou no balançar de teia em teia, a moral era demasiado evidente: o bem prevalecer face ao mal; aqui chegados, levanta-se uma questão: já encontraram manual-escolar mais completo? Resposta óbvia: claro que NÃO! No entanto, os pais sempre aquém desta verdade, a direccioná-lo para livros massudos, povoados de imagens desbotadas, onde somente procuravam, e mal, ensinar uma matéria, quanto tinha, ao seu alcance, uma janela com um horizonte onde simultaneamente aprendia todas as temáticas, e a principal – que os manuais desbotados jamais lhe responderiam, muito cedo esta certeza se lhe levantou –, acompanhava-o ao percorrer cada página: Quem sou eu? A questão maior que cada um deve colocar a si mesmo! Quantos já se puseram esta interrogação? Antes de se colocar a pergunta, como sempre, foi-lhe apresentada a resposta, aceitou-a sem reservas, era um facto, no âmago de si não havia quaisquer reticências, teria de construir um papel-social que se encaixasse na apatetada sociedade para lhe permitir ocultar o seu verdadeiro “Eu,” o que está para além da limitada compreensão dos simples humanos, aquele que brilha em demasia, o que desafia a lógica e convenção das coisas, o que amanhece, no cimo de um arranha-céus, após uma inclemente madrugada no combate ao crime, o que desafia as alturas a cada salto executado ou no balançar de teia em teia, certa tarde, num assomo de esperança, abriu o guarda-fatos do pai para ver se, por ali, nalgum canto, estivesse pousada alguma máscara, um fato-colorido, não se surpreendeu com o carácter efémero da busca, fatos havia, mas com a inclemente gravata, até as sombras do armário eram rígidas, quase lhes ouvia gritar “Este não é o teu lugar! Vai-te embora! Tens de ser doutor… Tens de ser doutor… Tens de ser doutor… Estuda! Estuda! Estuda para seres doutor…,” fechou a porta com alívio, voltou para o seu quarto, foi até à janela, pensou no que encontraria um filho seu, dali a muitos anos, se, uma bela tarde, lhe abrisse o armário da roupa, jurou que gravatas jamais, um indizível prenúncio de derrota, onde há espaço durante o amanhecer, no cimo de um arranha-céus, após uma inclemente madrugada no combate ao crime, para uma gravata?