Livros do Escritor

Livros do Escritor

domingo, 30 de março de 2025

É isto…


 

“Não te esqueças: o adjectivo que mais temos de repetir é: Espectacular!”, “Mas para quê? Tu nem gostaste daquilo…,” “Não interessa! Têm de ficar com a ideia de que tivemos umas férias de sonho… Isso é o mais importante! Lembra-te de que, quando cheira a desgraça, todos acorrem como hienas atrás do sangue!,” “Já sabes que não sou bom a inventar… E tu gostaste ainda menos do que eu!”, “E o que interessa? Nada! Se souberem disso, até rejubilam, acredita… Ainda estou para descobrir o porquê daquele maldito tempo! Para mim foi, sem dúvida, inveja! E de alguma daquelas nojentas das minhas colegas… Só pode! Nunca vi! Dois dias com um sol radioso, os outros cinco piores que Dezembro….,” “Começaste logo, mal chegaste, a publicar fotos e fotos…,” “Vens com essa conversa, porquê? Tu nem acreditas nessas coisas de… És sempre o primeiro a rebater essas teorias.,” “Verdade, no entanto, foi tudo muito estranho, mau demais… Lembras-te quando chegámos? O mar num verde-esmeralda, quente, a praia quase deserta, o mundo parecia ceder aos nossos desejos…,” “Claro que me lembro! A foto que tiraste do avião… Acredita, se não fossem as fotos, duvidaria de ter visto por ali o sol! Em verdade, duvidaria de tudo! Já tive pesadelos com aquilo, acreditas? A chuva copiosa e nós enfiados no quarto! Já nem falo da fortuna que gastámos para, no fim de contas, ali experienciar o Inferno!,” “E nem íamos com expectativas assim tão altas.,” “Mesmo, foi o contexto da altura a ditar aquele destino. No primeiro dia, chegámos, largámos as malas e corremos logo para a praia…,” “Eu todo orgulhoso pela minha escolha – apesar de, a montante, estar o contexto da altura… Depois veio o suplício!,” um casal, em lua-de-mel, durante cinco dias não sair do quarto é salutar, bem diferente é um casal, com mais de duas décadas de casamento, ser quase confinado a esse espaço, por chover copiosamente num destino somente de praia, nada mais havia para ver, a hora das refeições acabou por ser o único momento lúdico, o audível jocoso rir da vida, um ano a suspirar por sol, mar e costas voltadas para o relógio, e, chegada essa circunstância, a hora das refeições acabou por ser o único momento lúdico, o audível jocoso rir da vida, no resto do tempo deambularam pelo hotel, certa tarde foram até à piscina-interna, embora, mal entraram no espaço, fossem invadidos pelo cheiro a cloro, a humidade tão típica desse cenário relembrou-lhes Inverno, era nessa altura que ansiavam por piscinas-internas,  jamais em pleno Verão, numa ilha onde nada mais havia para ver, um destino somente de praia, instalou-se-lhes um dilacerante paradoxo, como se a vida reunisse toda a ironia possível e lhes despejasse em cima, ali estavam eles, num rectângulo cheio de água, sob uma luz-artificial, a olhar, pelas rasgadas janelas, o areal chovido, onde, aqui e ali, caminhavam gaivotas chorosas por lhes terem interditado os céus, não conseguiram ali estar mais de trinta minutos, pois, não era Inverno, e se a vida agora lhes despejava em cima toda a ironia possível, antes já lhes despejara demasiado fel, entre um casal não é costume haver muitos gestos simultâneos, o virar costas às rasgadas janelas voltadas para o areal chovido, onde, aqui e ali, caminhavam gaivotas chorosas por lhes terem interditado os céus, sair das águas artificialmente tépidas, os passos até às espreguiçadeiras, pegar nos roupões para se cobrirem e sair, constituiu uma dessas singularidades, nada disseram, mas uma certeza nascia-lhes, se sobrevivessem àquela provação, nada os poderia apartar, de certa forma as grandes tragédias do existir solidificam as relações, são exactamente as pequenas adversidades a esboroar a outrora mais bela união, e, no horizonte da existência, dois dias de sol e cinco de chuva, numas férias, são, sem dúvida, uma singela contrariedade, se lhes perguntassem, hoje, como suportaram aqueles cinco dias, não teriam uma resposta, divagariam, como é habitual quando não se quer revisitar o ontem, a verdade é que foi a esperança – de sol na manhã seguinte – a mantê-los unidos e expectantes, se todos os casais, após uma singela contrariedade, aprendessem este facto, não haveria tantos filhos a olhar estranhos na hora das refeições, de forma imperceptível, ele intuiu o seu desejo de materializar sol na manhã seguinte ao proclamar “Não te esqueças: o adjectivo que mais temos de repetir é: Espectacular!”, sim, ela estava certa, aprendera há muito que as feridas do corpo revelam a geografia do existir, as feridas da alma espelham a geografia do sentir, poucos conseguem observar a ânsia de sol, na manhã seguinte, de cada alma, “Tens toda a razão: como há pouco disseste: Têm de ficar com a ideia de que tivemos umas férias de sonho (…) quando cheira a desgraça, todos acorrem como hienas atrás do sangue!

sexta-feira, 28 de março de 2025

Já não há matinés

 


Ainda há muita coisa desarrumada em mim, apesar de, à superfície, as coisas parecerem normais, agora que ela voltou, após uma vida, foi o que me pareceu, duas décadas, mas, para mim, soube-me a uma vida, pela compreensão da dor, se é que tal é possível compreender, porém, onde, de facto, tudo começou? Vivíamos praticamente juntos, por outras palavras, partilhávamos leitos em casa dos pais de ambos, já trabalhávamos há algum tempo, não havia fim-de-semana em que o tema do casamento não fosse abordado, um pouco como aqueles objectos que repousam numa prateleira, em preces de discrição, mas logo uma mão demasiado inconveniente lhes pega numa ânsia desassossegada, assim se me afigurava a temática do casamento, de certa forma, parecia que queríamos prolongar a doçura irresponsável do namoro, apesar do apelo da idade ser de leito partilhado num só lar, de preferência pago do nosso bolso, pensamentos em berços e comunhões, no entanto, persistíamos naquela doçura irresponsável, olhava-a, por vezes, numa sempre necessária distância, só assim se deve olhar para compreender, e tantas questões se sucediam por mim, mas uma era omnipresente (O que é amar?), respondia-me de imediato, e logo corria para longe de tais dúvidas angustiantes, ninguém, antes de mim, amou de tal forma, e essa certeza pétrea era-me suficiente, contudo, a vida ensina-nos que só compreendemos a corrente da margem, e, nessa altura, eu deixava-me arrastar na doçura irresponsável do namoro, não vi os primeiros sinais de enfado que ela exteriorizava, nas tardes de Sábado, quando me perguntava Não queres mesmo ir a lado nenhum? Ainda insistia Está um dia tão bonito… Eu a querer ficar em casa, deitado, não me apetecia ver ninguém, ela, ainda, num último esforço Anda! Vamos dar uma volta. Não me apetece nada enfiar-me num quarto da casa dos teus pais. Não temos a mínima privacidade. E já não somos nenhuns miúdos! Dissera tudo, se eu soubesse ouvir, mas não, quis ficar, nesse Sábado, de tarde, tal como em muitos passados, fechado em casa, deitado, com ela a meu lado, muitas vezes só víamos televisão, afinal, vivíamos praticamente juntos, e eu achava que tudo tão certo, seguro, já nada fora do seu lugar, Domingo viria, ela, de novo, Anda! Vamos dar uma volta. Não me apetece nada enfiar-me num quarto da casa dos teus pais. Não temos a mínima privacidade. E já não somos nenhuns miúdos! Mas não me apetecia sair, cansava-me ver sempre as mesmas coisas, se uma semana a correr para o emprego, depois a correr na sofreguidão do regresso a casa, para quê, naqueles dois dias, de sabor a tão pouco, sair? Contentava-me com ela ali, a meu lado, muitas vezes só víamos televisão, afinal, vivíamos praticamente juntos, e eu achava que tudo tão certo, seguro, já nada fora do seu lugar, por norma, partia dela a iniciativa de, desde o início, a timidez sempre esteve ao leme do que eu sou, em certa medida, compreendo o porquê daquele desaguar, no meu leito, há uns anos, afinal, só procura uma baía quem se cansou de mares encapelados, houve vozes ansiosas por dar corpo a histórias, enfim, o habitual do circo humano, não liguei, até me falaram de gravidezes que capitularam com a meta à vista, talvez pela dúvida da fonte, pois, mas nunca me interessei por biografias, só me interessava ela ali, a meu lado, muitas vezes só víamos televisão, as semanas tornavam-se meses, que, por sua vez, originavam trimestres, o tempo lá ia no seu passo, ora de idoso, ora de menino, consoante o nosso olhar, até que, numa sexta-feira, o telefone, ela Amanhã não posso ir aí ter. Vem cá uma prima minha que não conheces… Não, não vale a pena… Deixa… Tenho de lhe mostrar Lisboa. Ias-te aborrecer de morte. Não, não vale a pena… Fica sossegado, afinal, amanhã é Sábado, e tu gostas de ficar com a tua televisão… Por isso, deixa-te estar e não te preocupes… Quando chegar a casa, ligo-te, não lhe conhecia primos, muito menos fora de Lisboa, percebia-se-lhe uma pressa na entoação, como o viajante que receia perder o embarque, algures uma voz sussurrava-me que ela se preparava para zarpar rumo a mar-alto, procurei logo silenciá-la, mas insistia, não a consegui calar, apesar da televisão, da tarde de Sábado, eu deitado, mas ela não a meu lado, nessa noite, não sei se chegou a casa, apenas percebi que o meu telefone permaneceu no silêncio crescente da minha angústia, Domingo, assim que a hora me pareceu apropriada, quando as casas dos vizinhos já exalavam torradas e café, eu com o auscultador encostado à orelha, enquanto um som arrastado me dizia que um telefone por mim desejado se fazia anunciar, até que o som arrastado se precipitou na intermitência por ninguém ter acorrido, insisti, insisti, nem pensar em desistir, insisti de novo, tudo se precipitava numa exasperante intermitência, resolvi ir bater-lhe à porta, assim foi, na rua percebi o carro dos pais, apesar da campainha, vezes repetidas, a porta do prédio numa fria indiferença metálica, regressei a casa, essa tarde de Domingo, apesar do sol, pareceu-me uma imensa noite, fechei-me no quarto, assim fiquei, mas a televisão desligada, agarrei-me, para os dias seguintes, a uma ruína de orgulho, se assim se pode dizer, dias depois, tão longos para o sentir que me habitava, pouco antes do jantar, o telefone, não consegui disfarçar a sofreguidão, corri de imediato ao seu encontro, meus pais entreolharam-se no silêncio da compreensão, era ela, desta feita, numa entoação demasiado pausada, falava-me de dúvidas, de incertezas, do cansaço pelos Sábados, de tarde, fechados em casa, cortei a conversa, ainda hoje me surpreendo pelo arrojo Conheceste alguém? Afinal já conhecia, e eu também, um amigo do irmão, advogado, parece que gostava de viajar, não, Sábados de tarde sempre fora, de um lado para o outro, desconhecia por inteiro a grelha televisiva, cama só de noite e parece que dormia pouco, pois, e há muito que tinha a sua casa, de novo, agarrei-me a uma ruína de orgulho Tens a certeza? A resposta dela, Sim, soube-me a mil golpes, uma forma de inocência acabara de se me morrer, num último fôlego, disse-lhe Felicidades…

Quantos rostos saem e entram nas nossas vidas? Os que partem na derradeira viagem, permanecem em nós, regra geral, consoante o legado da memória, com uma dignidade intocável, os outros, os rostos da circunstância, enfim, acabam por sucumbir ao momento, outros se sucedem neste incessante dia após dia apelidado de existência, e ainda há os que nos ferem de vazio, os tais que nos retiram, friamente, uma forma de ver o mundo, o rosto dela demorou vinte e dois anos a reentrar na minha vida…

Entrou, de bicicleta na mão, na minha loja de reparações de, isso mesmo, bicicletas, os Sábados, de tarde, fechado em casa, a ver televisão, deixaram de ter um sentido, ainda hoje não sei se foi de propósito, creio que sim, achei curioso a familiaridade com que me tratou, parecia retomar um diálogo algures interrompido, confesso que me soube bem, enquanto ela falava, parecia que uma parte de mim se reconstruía, sem me aperceber, caminhávamos passeio fora, apesar dos seus três filhos, do ainda marido advogado, que já não viaja assim tanto, parece que semeou demasiadas dívidas, às quais somou um desfalque, percebo agora o porquê da bicicleta, de uma certa resignação pela face, antes de se despedir, olhou-me e disse Amanhã é Sábado, não é? 

terça-feira, 25 de março de 2025

Lugar d`Além


 

“É ali que vamos ser felizes!”, a frase saiu-lhe simultânea ao pensar, “É ali que vamos ser felizes!”, o rosto em esperança, ouviu-a com indulgência, felicidade não rima com existir, “Anda, segue a seta,” perplexo olhou a placa que indicava “Lugar d´Além,” de início afigurou-se-lhe algo inquietante, porém, a resoluta expressão dela fê-lo colocar o pisca e seguir nessa direcção, tudo, neste caminhar, tem um antes, o facto de ali se encontrarem começou há uns bons anos, poucos meses depois de firmarem votos de amor e fidelidade sobre terreno sagrado e sob a cruz-divina, símbolos de compromisso nos anelares-esquerdos, foram morar num pequenito apartamento nos arrabaldes, sala que era quarto, quarto que servia de sala, uma acanhada casita-de-banho e, o que se denomina de cozinha, um corredor com uns eletrodomésticos, ao fundo, uma janelita, com um estendal, que dava para o prédio em frente, desconheciam a causa, ou talvez não, mas a cada dia parecia mais próximo, tal o crescendo de sombras que pareciam engoli-los, provinham de humildes famílias do interior, ela conseguira trabalho ao balcão de um entreposto de alegrias ou tristezas veladas por um envelope, ele, de momento, zelava para que roubassem o menos possível de um super-mercado, por estes dias é o que se requer – zelar para que se roube o menos possível –, quando certos factos se tornam quotidianos, é porque nos perdemos de vez, a ânsia de cidade e litoral fê-los abraçar o que se lhes afigurou de oportunidades, com a escolaridade obrigatória cumprida, foi o possível, o horizonte de ambos salários possibilitou apenas um pequenito apartamento nos arrabaldes – de início, afigurou-se-lhes um palácio, o calor do êxtase acelera a pulsação embora turve o discernimento –, o restante era meticulosamente calculado para que a mesa não ficasse vazia nas imperativas horas das refeições, a realidade acaba sempre por encontrar uma porta ou janela por onde irromper para fatalmente golpear a paixão, demora, no máximo, quatro meses, a fatal hemorragia, após a sua extinção, ou se levanta o amor ou surge a indiferença, para eles, felizmente, deu-se o primeiro caso, no entanto, com a morte da paixão, o contexto circundante tornou-se-lhes nítido, demasiado longínquo de palácios ou castelos, apenas um pequenito apartamento nos arrabaldes, sala que era quarto, quarto que servia de sala, uma acanhada casita-de-banho e, o que se denomina de cozinha, um corredor com uns eletrodomésticos, ao fundo, uma janelita, com um estendal, que dava para o prédio em frente, desconheciam a causa, ou talvez não, mas a cada dia parecia mais próximo, todas as noites o telefone de um deles tocava, do interior ansiavam por notícias suas, a principal se a união, sobre terreno sagrado e sob a cruz-divina, já dera frutos, as desculpas nunca acompanham a passada do tempo, são quase sempre de curta-validade, olhavam à sua volta e, por ali, não havia espaço para um berço e demais utensílios, a circunstância dela, no entreposto de alegrias ou tristezas veladas por um envelope, não lhe permitia, por enquanto, deixar o balcão, durante uns meses, para apresentar o mundo a um filho, ele ainda menos, qualquer abandono do posto-de-trabalho só potencia o acto de roubar, houve vezes em que o telefone se limitou a tocar, tocar, e tocar, ninguém calou aquele entoar impessoal e tão vulgar, indiciador da marca do aparelho e não do seu detentor, como as coisas têm mudado sob o céu,  a insistência por um fruto da sua união começava a inquietá-los, não queriam partilhar a agrura do prédio em frente, a cada dia, parecer mais próximo, se o fizessem, sabiam de antemão a ladainha que se levantava do outro lado “Tanto vos avisámos para não saírem daqui! Porquê essa fixação com a capital? Porquê? Vivem em prateleiras e nem o vizinho da frente conhecem! Aqui, ao menos, todos nos conhecemos, trabalho não falta… E com muita dignidade! O ambiente para as crianças, meu Deus, nada que ver com a cidade… Podem brincar à-vontade sem quaisquer riscos. Não há o caos do trânsito – filas e filas que desesperadamente se arrastam a caminho do trabalho, no regresso o mesmo suplício, apenas muda o sentido –, a poluição que apenas subtrai tempo de vida, a barulheira infernal de carros, buzinadelas, enfim… E o apoio que aqui teriam de nós?! Há coisa mais fundamental do que ter a família por perto??? Sinceramente…”, há quem nasça estranho para a sua circunstância, cada um deles cumpriu com este desígnio, eles não partiram da ruralidade, em verdade, eles fugiram, a monotonia daquele viver, compassada por um silêncio que retalhava a alma, quase os levou à soleira da loucura, chegaram a sentir-lhe o odor, pois, há quem nasça estranho para a sua circunstância, cada um deles cumpriu com este desígnio, foi num passeio de fim-de-semana, numa povoação próxima, que ela se deteve numa placa a indicar “Lugar d´Além,” de mão no ventre murmurou-lhe “É ali que vamos ser felizes!”

sexta-feira, 21 de março de 2025

Felizes e ocupados

 


Hoje percebo que o nosso melhor juiz é sempre o nosso eu passado, porque só ele pode julgar se nos desviámos, ou não, muito do caminho, àquela hora, de café e bolachinhas de manteiga, entro na pastelaria do costume, felizmente, a mesa de sempre livre, encostada à janela grande, vidro de alto a baixo, nunca gostei de me sentir fechada, a minha amiga ainda não chegara, sento-me, logo a empregada (Vai ser o costume?), anuí com um sorriso, não sei porquê, mas acho-a um pouco mais arrogante, talvez seja impressão minha, pode apenas sentir-se mais segura de si, desde que namora com o pasteleiro que, por seu turno, adquiriu parte da sociedade, não muito significativa, em verdade, porém, já não é só o pasteleiro, tornou-se, de um dia para o outro, um pasteleiro percentual, pousa, com a deselegância habitual, talvez fruto daquelas mãos de palmas arredondadas e dedos curtos, o café secundado pelo pires com as três bolachinhas de manteiga diárias, neste momento, quase todas as mesas ocupadas, a maioria com idosas que põem novelas em dia, da televisão e do bairro, felizmente aqui e ali um oásis daquele cinzentismo que pontifica na maioria das cabeças, sinal de um amanhã, estudantes regressados da escola, numa mesa, próxima da entrada, duas raparigas e um rapaz curvam-se para o rectângulo do hoje num mutismo abnegado, nem se olham, o único sinal de vida advém dos polegares que, volta e meia, se mobilizam, de resto, persistem naquela deselegante forma de se sentar, como se indiciasse uma contrariedade nascida antes de serem, talvez se tratasse de um inominável arquétipo oriundo de uma paisagem só por eles olhada, nisto, sem me aperceber, a minha amiga diante de mim, percebo-lhe, no rosto, aquele traço que deseja verbalizar uma dor, mas que simultaneamente, por pudor talvez, aguarde um gesto de incentivo, não esperou muito, num qualquer canto de mim também ansiava que se povoassem silêncios, de certa forma, queria partir para longe daquela janela grande, vidro de alto a baixo, nunca gostei de me sentir fechada, daquele cinzentismo que pontifica na maioria das cabeças, do curvar para o rectângulo do hoje num mutismo abnegado, nem se olham, o único sinal de vida advém dos polegares que, volta e meia, se mobilizam, senta-se com o estrépito habitual, logo os silêncios a povoarem-se Nem imaginas o que me aconteceu! Não é que… Lembras-te daquela carteira que namorei semanas a fio? Sim, essa mesma, agora, com os saldos, desceu quarenta por cento, enfim, um preço suportável, bem sei que ainda fica sessenta e cinco euros, mas que fazer? Apaixonei-me e pronto! Fui à loja, saco do visa, e nada! Não é que o bandalho do meu ex mandou cancelar-me o cartão?! Liguei-lhe de imediato a pedir justificações, e, claro, acabei a insultá-lo de tudo… Já viste uma coisa destas?! Vê lá tu, teve a audácia de me chamar inútil! E, ainda, me mandou trabalhar… Sem comentários! Olha aqui, ao menos tirei esta foto com a carteira, pu-la logo aqui no “face”, estás a ver? Está gira, não achas? Olha logo o comentário (“Quem pode, pode…) daquela invejosa, sim, essa mesma, mal ela sabe… Mas nem tem de saber, pelo menos, ficou com a ideia… Limitei-me a anuir a tudo, não sei em que momento compreendi o fastio daquelas tardes de pastelaria, das descrições tão pormenorizadas dos contemplados artigos de moda, tudo elevado a um absurdo incomportável, assim que o chá lhe é colocado na mesa, com a deselegância habitual, talvez fruto daquelas mãos de palmas arredondadas e dedos curtos, secundado pela tradicional torrada, logo ela Toma! Tira-me uma foto! Ao menos, ficam a saber que há costumes que se mantêm, resignada, pego no aparelho, sempre com a ponta dos dedos, talvez pela repulsa do que simboliza, faço o enquadramento, não deixo de entreabrir os lábios em espanto face ao quadro agora contemplado, uma mulher, na serenidade de uma tarde repousante, segura a sua chávena de chá, na elegância de indicador e polegar, olha, numa expressão enigmática, o mundo através de uma janela grande, vidro de alto a baixo, nem vestígios de visas cancelados, saldos de quarenta por cento, telefonemas a insultar o ex, cheguei a pensar, confesso, que o monólogo, de há pouco, fora uma alucinação minha, devolvo-lhe o aparelho, sempre com a ponta dos dedos, talvez pela repulsa do que simboliza, logo ela Vais ver! Não tarda nada, começam a pôr gosto e a comentar… São umas invejosas! E é sinal de que estão sempre agarradas a isto! Coitadas, não fazem mais nada… São mesmo umas tristes! Com a mania de “tias”, mas não têm onde cair mortas! Pois, tu nem falas, mas a vida é isto mesmo, metes uma foto destas, e roem-se todas! Coitadinhas… Sempre agarradas a isto! Sabes, vivem fantasias… E tu? Conta coisas… Vá, diz qualquer coisa… Não ias, pois… Lá… Espera! Olha, acho que já tenho um comentário…

domingo, 16 de março de 2025

Dolorosamente real II

 


Saíam, neste momento, daquela estrada que tão bem se faz pagar, como se lhe houvesse alternativas, e mergulhavam em paisagens que ela olhava com uma estranheza e familiaridade simultâneas (quantos eus cabem numa vida?), ele percebera-lhe a delonga do olhar, enquanto o automóvel sob a sombra de frondosas ramagens ou a atravessar verdes planícies com a inevitável ponte sobre um anónimo rio, para emergir o diálogo, ele desacelera um pouco, estavam quase a chegar, “Como te estás a sentir ao rever tudo isto?”, “Como se já tivesse sido outra… Há qualquer coisa de irreal ao revermos lugares onde há muito caminhámos… Procuro-me por ali, mas não me encontro! Não sei se me faço compreender…,” ao fundo da estrada, revelam-se as primeiras sombras de betão, “Vamos directos para a capela, certo?,” “Claro! Jamais volto a entrar na casa de um deles! A comoção, muitas vezes, tolda-nos o bom-senso, não será este o caso.”, “Tens a certeza? És sempre tão emotiva nestas ocasiões…,” “Com o tempo, somamos funerais, só nos resta orar para que nunca sejam os indevidos,” “É um facto!”, “Concluo que a vida é um lento e doloroso anoitecer. A visão fresca e matinal de uma criança sobre as coisas do mundo, com o tempo, vai-se desvanecendo, desvanecendo, desvanecendo, por fim, resta o céptico e amargurado olhar de um velho… Já não encontro candura nas coisas à minha volta, quando aqui chegava, em criança, imaginava mundos, uma pureza nas coisas tão distante da urbe, espelhada até nos modos mais espontâneos das gentes, olhava os que hoje chamo de estranhos como se fossem, em verdade, família, sabes, era tão mais feliz, é duro acordar para os factos da vida, muito duro…,” “É triste deixar de ser criança…”, “Não é por aí! A maioria dos adultos não despertou para a realidade… Continua piamente a acreditar na versão que lhes é apresentada… E se alguém ousa desmenti-la, a coisa complicar-se-á… Concluí, há uns bons tempos, que a diferença entre um adulto e uma criança reside no facto do primeiro realizar contas para sobreviver, quanto ao resto, nada de significativo, apenas a troca de umas brincadeiras por outras…,” “Falaste há pouco de aqui chegares, em criança, imaginares mundos e de sentires uma pureza nas coisas muito distante da cidade, certo? Ainda vislumbras resquícios desse idílio à tua volta?”, “Apenas desencanto por ter sido tão pueril!,” “Olha, chegámos, ali está a capela!,” “Estranho, não vejo ninguém! Como se nada passasse… É esta a capela, certo?,” “Qual a dúvida?,” neste ponto, ela cometia um erro fatal, dirigia-se para o funeral de uma idosa, os funerais dos velhos são de um discreto silêncio, como um entardecer invernoso, os poucos ali presentes com semblantes respeitosos, mas sem vestígios de tristeza, tudo encarado com naturalidade, como se um acto de misericórdia a extinção do fardo da existência a quem somara tantas décadas, a partir de certa idade não se pergunta de que se morre, apenas se aguarda que a morte bata à porta, conseguiram estacionar próximo da capela, saíram do carro e para lá se encaminharam, para sua admiração, ele chegara primeiro aos três ou quatro largos degraus, de pedra enegrecida, que precedem a entrada, ela refreara a marcha para observar se por ali algum vulto do passado, não havia por ali ninguém, apenas o incessante e tão monótono vai e vem de carros da cidade, ostentava uma expressão desconfiada desde que ali chegara, parecia caminhar por território hostil, após os largos degraus, de pedra enegrecida, acabou por ladeá-lo, antes de entrar, conseguiram observar todo o interior da capela, era acanhada, o caixão ocupava praticamente o centro, a luz provinha das velas, a ambiência repercutia-se no sentir, um adeus impronunciado, o tremeluzir alongado das chamas como gestos conformados de despedida, o dever cumprido ou talvez não ao olhar de quem assiste e só resta acenar adeus, chegara o momento da partida, três ou quatro vultos no interior, já curvados para a terra, familiarizavam-se, como todos nesta caminhada, antes de, por fim, a abraçar, reconheceram dois, ele murmura-lhe “Não os vais cumprimentar?”, “Não foi por eles que vim!”, avançou, ele seguiu-a, o caixão fechado, na cabeceira uma fotografia, sorridente, de quem se despediam, como era pungente recordar aquela vivacidade eternizada, numa determinada circunstância, de quem começa a ser memória, curvou-se e colocou a sua mão, ele limitou-se a observar, poucos segundos depois, ela reergue-se, olha a fotografia, a emoção denota-se no brilho do olhar, baixa o rosto e abandona a capela, ele curva-se respeitosamente e segue-a, só pararam junto ao carro, “Não os devias, pelo menos, ter cumprimentado?”, “Até a morte tem de ser hipócrita? O acto mais radical da existência é morrer, para quê nodoá-lo com hipocrisia? Creio sinceramente que ali estavam para ver a minha reacção. Se lhes concederia algum protagonismo? Não, jamais! Como te disse, há muito se tornaram estranhos, por aí ficam…,” “Como te sentes após…?,” “Uma porta que, por fim, de vez se fechou.” “Imaginas o que mais me custou? O caixão fechado e apenas uma fotografia, de um momento feliz…,” “Ouvi esse desejo em duas ou três ocasiões. Nem sei como se lembraram de tal! Quando chegar a minha vez, também quero desta forma. A última imagem deve ser em vida e não um corpo inerte de onde a alma já partiu.”, “Concordo inteiramente. Então quando se metem a beijar a testa de um cadáver… Sempre achei tétrico!,” “Sem dúvida! Sabes o mais curioso? Recordo-me perfeitamente do dia em que aquela foto foi tirada! Eu era criancinha… Foi num passeio… Afinal, ao olhar para trás, até encontro risos… Era Primavera, acho que ainda não ouvira a palavra morte.

domingo, 9 de março de 2025


 “Com o tempo, somamos funerais, só nos resta orar para que nunca sejam os indevidos..."

in Dolorosamente real II

quarta-feira, 5 de março de 2025

Dolorosamente real


 

Há um brilho distinto numa manhã de Outono, algo de inexplicável, uma nitidez e simultaneamente claridade sobre as coisas do mundo, talvez pelo último estertor da terra, antes da longa e invernosa noite, como se da própria natureza ecoasse o canto do cisne, foi sob esta luz que saíram para o mundo, ela em passos contrariados, os dele apenas resignados, entraram na viatura, “Não vamos lá dormir, não achas?”, “Penso que não há necessidade, são só duas horas e pouco de caminho…,” respondeu-lhe a olhar o retrovisor, enquanto fazia marcha-atrás, “Também acho! Nem sei porque trouxemos mala…,” “Por precaução, já te expliquei! E a família é tua, não te esqueças…”, “Eu sei disso, mas não me apetecia vê-los… Falas de família e continuo a achá-los apenas uns estranhos… Partilhámos tecto e mesa por uns tempos, contudo, para mim, são uns estranhos… E, agora, este funeral… O passado arrumado, e mal, numa qualquer gaveta, de repente, a fixar-nos, como se, afinal, nunca tivesse ficado lá bem para trás… É curioso, sabes, tudo isto só me veio desorganizar… Eu já nem lhes falava há anos! Hoje, por este imperativo-social, temos de percorrer mais de seiscentos quilómetros, se lá não dormirmos, conviver com desconhecidos, para mim, decidi há muito, serão sempre desconhecidos, conversas estéreis de ocasião, porém, lentamente o passado começará a levantar-se…”, “Estranhos, desconhecidos, não te cansas de repetir, parece-me que estás a exagerar.”, “Estranho é todo aquele que não compreendes! E, em verdade, nunca os compreendi e o inverso também sucedeu. Ou será que tenho de te prestar mais contas?”, acabavam de entrar naquela estrada que tão bem se faz pagar, como se lhe houvesse alternativas, no entanto, por estes dias, o conceito mais apregoado é “Liberdade,” se porventura lá soubessem o que isso é, ficará para outras linhas, um pouco cansado de tanto azedume, ele decide relembrar-lhe “Eu felizmente não lhes sou nada! Estou aqui somente para te acompanhar…,” “Eu sei, desculpa! Não esperava nada disto, confesso… Atendi a chamada dela sem sequer ver que número me ligava, foi instintivo, assim que lhe ouvi a voz, enfim, tudo me regressou, como se nunca de lá tivesse partido…,” “Sinal de que te foges! O passado encontra-nos sempre! É uma ilusão pensar que lhe fugimos.,” “Pois, neste caso, a razão pertence-te. Mas estava longe de fugas e esconderijos, simplesmente já nem deles me lembrava até àquela chamada…,”Ela foi cordial, certo?,” “Fria, autómata, monocórdica, um gravador teria o mesmo efeito…,” “Denotaste algum juízo sublimado no tom ou nas palavras?,” “Nada! Repito: um gravador teria o mesmo efeito…,” “Menos mal! Ao menos, já não atiram pedras… Sempre foram pródigos em juízos-de-valor! Uma existência tão desprezível, no entanto, de indicador sempre apontado para os outros. Esqueci-me de te perguntar: chegaste a dizer-lhe se comparecerias no funeral?,” “Não! Agradeci a informação e desliguei. Pelo menos, tive presença-de-espírito para limitar a comunicação a tal…,” “Fizeste muito bem! E, quando lá chegarmos, terás de manter a mesma postura. Sempre os vi como vampiros das fraquezas alheias, se detectam uma gotinha de sangue, um infortúnio, onde haja bolsos-cheios, ei-los a cercar a vítima… Quanto já não sacaram à conta desta prática?!,” “É um facto! Às vezes, penso que é impossível ser-se inteiramente feliz num seio familiar… Creio que a felicidade é inversamente proporcional aos silêncios acumulados. E como ali, com os anos, o silêncio se adensou… Pesava tanto! Dava conta disso sobretudo às refeições, éramos estranhos a partilhar uma mesa… A comunicação cingia-se a: Passa-me a salada, por favor… Onde está o comando da televisão? E pouco mais… Quando, numa refeição familiar, quem impera é a televisão, cada um fugiu para um canto de si… Dei por mim, enquanto vivi sob o mesmo tecto que eles, em tantas ocasiões, com receio de desaprender a conversar… A sério! Eu vi aberta a porta da loucura mais de uma dezena de vezes! Desculpa, estamos a viajar e eu a perder-me com estes dramas do ontem…,” “Se fossem do ontem, não os retratavas com tanta nitidez!”, “Houve momentos que nem contigo partilho! Desculpa… Receei enlouquecer! A porta da loucura escancarada e eu, da soleira, a fitá-la!,” “E o que viste?”, “A mais negra das noites! Se me engolisse, jamais regressaria… Daí o meu respeito por quem é apelidado de louco. Tiveram a coragem de dar um passo em frente e entrar, eu, pelo contrário, apenas me limitei a olhar…,” “Estás a divagar! Felizmente assim foi. Lembra-te de que não há lares perfeitos, quantas vezes, em minha casa, às refeições, a televisão a ditar as regras? Não penses que foi só contigo…,” “É diferente, acredita. Ali era um acto misericordioso, para não sucumbirmos às opressivas toneladas de silêncio.,” “Esclarece-me então: porque vais ao funeral?,” “Ainda não descobri… Como te disse, desde aquele telefonema tudo me regressou, parte de mim acredita ser a única forma de definitivamente encerrar esse capítulo! Um funeral é um adeus, compreendes?,” “Só o coração pode dizer adeus!” Há um brilho distinto numa manhã de Outono, algo de inexplicável, uma nitidez e simultaneamente claridade sobre as coisas do mundo, talvez pelo último estertor da terra, antes da longa e invernosa noite…

domingo, 2 de março de 2025


 ... desconheciam o essencial: que o amanhã é uma sombra por iluminar...

in Desumanização

sábado, 1 de março de 2025

Desumanização


 

Não sei, ao certo, que horas seriam, foi a meio da tarde, num dos passeios da capital, avolumava-se gente perto da passadeira, à espera do verde para os peões, quando, de repente, alguém se precipita sozinho na calçada, como estava um pouco para trás, só reparei na boina, verde-escura, a contrastar com a brancura da calçada, o espanto inicial, por ver um corpo caído, deu lugar a uma miríade de reacções, houve quem prontamente virasse costas e se mantivesse à espera do verde para os peões, outros logo com o telemóvel para fotografar ou filmar, ainda houve os que nem se descentraram do rectângulo, em furiosos dedilhares, quem sabe por ali o destino da humanidade, enfim, reparei num sujeito, prontamente se identificou como médico, debruçado sobre o corpo, a tentar reanimá-lo, a gritar aos demais “Liguem para o 112! Liguem para o 112! Liguem para o 112! Rápido! Rápido!,” enquanto continuava a comprimir o peito, observei que alguns se mantiveram impassíveis, olhar absorto num indefinível ponto do outro lado da rua, como se alguém, por ali, os esperasse, nem sequer olharam o corpo caído no passeio, as desesperadas manobras de reanimação do sujeito, prontamente se identificou como médico, enquanto gritava, “Liguem para o 112! Liguem para o 112! Liguem para o 112! Rápido! Rápido!,” entretanto, caiu o verde para os peões, quase todos atravessaram a estrada, como se, para trás, não deixassem um corpo caído, pela calçada, alguns, enquanto caminhavam, continuaram voltados para o rectângulo, em furiosos dedilhares, quem sabe por ali o destino da humanidade, uma senhora – a neve pelos cabelos trouxera-lhe bom-senso, tristemente tão singular – permaneceu ao lado do sujeito, prontamente se identificou como médico, debruçado sobre o corpo, a tentar reanimá-lo, cumpria com o imperativo de ligar para o 112, o meu olhar, não sei porquê, incidiu na boina, verde-escura, a contrastar com a brancura da calçada, reparei que alguém a pisara, conferia-lhe uma aura de dignidade ferida, não lhe li desamparo, apenas uma paciente espera de novamente ser restituída à sua função de cobrir o pensar de quem, por ora, jaz a seu lado, pela calçada de um passeio da capital, por fim, os ecos de sereia desamparada da ambulância, nem a sua estrepitante chegada fez alguém refrear o passo ou levantar o rosto do rectângulo, com a excepção de fotografar ou filmar, estava quase a entrar na ambulância, quando dei por mim a apanhar a boina e a correr, para lhe depositar sobre as cobertas, antes que fechassem as portas, o sujeito, prontamente se identificou como médico, antes debruçado sobre o corpo, agora a seu lado no interior da ambulância, sorriu-me, retribuí, as portas fecharam-se e partiu, com o seu lancinante gritar de sereia desamparada, olhei em volta e só constatei vultos em movimento, também debruçados sobre o rectângulo, nem vestígios da senhora – a neve pelos cabelos trouxera-lhe bom-senso, tristemente tão singular – que permaneceu ao lado do sujeito, prontamente se identificou como médico, os gestos, à minha volta, eram os mesmos, só os rostos se alteraram, segui caminho, umas ruas adiante, um indivíduo debruçado sobre o lixo, apesar do aspecto andrajoso, lia-se no seu porte vestígios de dignidade, sem dúvida já foi outro, a derrota no seu olhar contribuiu para esta minha dedução, no lado oposto, uma esplanada, metade das mesas ocupadas, afiguraram-se-me estudantes universitários, embora a idade contrastasse com os modos, risinhos estéreis, transpareciam uma notória futilidade, decidi estugar o passo quando observo, numa das mesas, uma jovem pegar no telemóvel e apontar para o indivíduo debruçado sobre o lixo, os risos em volta incendiaram-se, felizmente ele não se apercebera, nem naquele caixote-de-lixo haveria lugar para a dignidade daquelas patéticas figuras, afiguraram-se-me estudantes universitários, mas desconheciam o essencial: que o amanhã é uma sombra por iluminar; aquelas almas fediam a putrefacção, tão distantes de um porte onde se lia vestígios de dignidade, sem dúvida já foi outro, regressou-me ao pensar a boina, verde-escura, a contrastar com a brancura da calçada, não lhe li desamparo, apenas uma paciente espera de novamente ser restituída à sua função de cobrir o pensar de quem, naquele momento, jazia a seu lado, percorri o que me faltava a olhar os sapatos, como me pesava o pensar, enquanto abria o correio, duas vizinhas conversavam animadamente na escada “Parece que só come pão com manteiga! Veja bem!”, “E os filhos?”, “O mesmo, claro, parece que não tem para mais… Aquilo fechou de um dia para o outro! Não viram ordenado nos últimos dois meses! Agora, tem de esperar pelo subsídio de desemprego…”, “E até lá?,” “Perca o orgulho e bata à porta do ex-marido,” “Mas não se separaram por lhe bater?,” “E é melhor morrer à fome? E arrastar os filhos por orgulho?,” “Pois, é uma situação difícil… E nós não podíamos…,” “Deixe-se disso mulher! Enquanto teve trabalho, lembra-se de como andava? Toda emproada, até carro da firma conduzia, assim que se separou, acho que enfiou logo um aqui por umas noites… E com os filhos em casa! Isto serve para acordar! Não tenha pena que eu também não! Pãozinho com manteiga nunca fez mal a ninguém! Agora, olhe, vai de transportes-públicos para o centro de emprego! Já se lhe baixou a crista…,” “Mas as crianças…”, não ouvi mais, reflecti na imensidão de cretinices que se dizem nas costas de cada um, voltei a sair, fui até ao super-mercado mais próximo, regressei com bem mais que pães e manteiga, depositei os sacos no tapete de uma certa porta, toquei à campainha e corri escada acima até ao meu andar, ouvi, atrás de mim, a porta abrir-se e vozes, de uma mulher e crianças, antes de entrar em casa, de novo a imagem da boina, verde-escura, a contrastar com a brancura da calçada, não lhe li desamparo, apenas uma paciente espera de novamente ser restituída à sua função de cobrir o pensar de quem, naquele momento, jazia a seu lado.