Livros do Escritor

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sexta-feira, 21 de março de 2025

Felizes e ocupados

 


Hoje percebo que o nosso melhor juiz é sempre o nosso eu passado, porque só ele pode julgar se nos desviámos, ou não, muito do caminho, àquela hora, de café e bolachinhas de manteiga, entro na pastelaria do costume, felizmente, a mesa de sempre livre, encostada à janela grande, vidro de alto a baixo, nunca gostei de me sentir fechada, a minha amiga ainda não chegara, sento-me, logo a empregada (Vai ser o costume?), anuí com um sorriso, não sei porquê, mas acho-a um pouco mais arrogante, talvez seja impressão minha, pode apenas sentir-se mais segura de si, desde que namora com o pasteleiro que, por seu turno, adquiriu parte da sociedade, não muito significativa, em verdade, porém, já não é só o pasteleiro, tornou-se, de um dia para o outro, um pasteleiro percentual, pousa, com a deselegância habitual, talvez fruto daquelas mãos de palmas arredondadas e dedos curtos, o café secundado pelo pires com as três bolachinhas de manteiga diárias, neste momento, quase todas as mesas ocupadas, a maioria com idosas que põem novelas em dia, da televisão e do bairro, felizmente aqui e ali um oásis daquele cinzentismo que pontifica na maioria das cabeças, sinal de um amanhã, estudantes regressados da escola, numa mesa, próxima da entrada, duas raparigas e um rapaz curvam-se para o rectângulo do hoje num mutismo abnegado, nem se olham, o único sinal de vida advém dos polegares que, volta e meia, se mobilizam, de resto, persistem naquela deselegante forma de se sentar, como se indiciasse uma contrariedade nascida antes de serem, talvez se tratasse de um inominável arquétipo oriundo de uma paisagem só por eles olhada, nisto, sem me aperceber, a minha amiga diante de mim, percebo-lhe, no rosto, aquele traço que deseja verbalizar uma dor, mas que simultaneamente, por pudor talvez, aguarde um gesto de incentivo, não esperou muito, num qualquer canto de mim também ansiava que se povoassem silêncios, de certa forma, queria partir para longe daquela janela grande, vidro de alto a baixo, nunca gostei de me sentir fechada, daquele cinzentismo que pontifica na maioria das cabeças, do curvar para o rectângulo do hoje num mutismo abnegado, nem se olham, o único sinal de vida advém dos polegares que, volta e meia, se mobilizam, senta-se com o estrépito habitual, logo os silêncios a povoarem-se Nem imaginas o que me aconteceu! Não é que… Lembras-te daquela carteira que namorei semanas a fio? Sim, essa mesma, agora, com os saldos, desceu quarenta por cento, enfim, um preço suportável, bem sei que ainda fica sessenta e cinco euros, mas que fazer? Apaixonei-me e pronto! Fui à loja, saco do visa, e nada! Não é que o bandalho do meu ex mandou cancelar-me o cartão?! Liguei-lhe de imediato a pedir justificações, e, claro, acabei a insultá-lo de tudo… Já viste uma coisa destas?! Vê lá tu, teve a audácia de me chamar inútil! E, ainda, me mandou trabalhar… Sem comentários! Olha aqui, ao menos tirei esta foto com a carteira, pu-la logo aqui no “face”, estás a ver? Está gira, não achas? Olha logo o comentário (“Quem pode, pode…) daquela invejosa, sim, essa mesma, mal ela sabe… Mas nem tem de saber, pelo menos, ficou com a ideia… Limitei-me a anuir a tudo, não sei em que momento compreendi o fastio daquelas tardes de pastelaria, das descrições tão pormenorizadas dos contemplados artigos de moda, tudo elevado a um absurdo incomportável, assim que o chá lhe é colocado na mesa, com a deselegância habitual, talvez fruto daquelas mãos de palmas arredondadas e dedos curtos, secundado pela tradicional torrada, logo ela Toma! Tira-me uma foto! Ao menos, ficam a saber que há costumes que se mantêm, resignada, pego no aparelho, sempre com a ponta dos dedos, talvez pela repulsa do que simboliza, faço o enquadramento, não deixo de entreabrir os lábios em espanto face ao quadro agora contemplado, uma mulher, na serenidade de uma tarde repousante, segura a sua chávena de chá, na elegância de indicador e polegar, olha, numa expressão enigmática, o mundo através de uma janela grande, vidro de alto a baixo, nem vestígios de visas cancelados, saldos de quarenta por cento, telefonemas a insultar o ex, cheguei a pensar, confesso, que o monólogo, de há pouco, fora uma alucinação minha, devolvo-lhe o aparelho, sempre com a ponta dos dedos, talvez pela repulsa do que simboliza, logo ela Vais ver! Não tarda nada, começam a pôr gosto e a comentar… São umas invejosas! E é sinal de que estão sempre agarradas a isto! Coitadas, não fazem mais nada… São mesmo umas tristes! Com a mania de “tias”, mas não têm onde cair mortas! Pois, tu nem falas, mas a vida é isto mesmo, metes uma foto destas, e roem-se todas! Coitadinhas… Sempre agarradas a isto! Sabes, vivem fantasias… E tu? Conta coisas… Vá, diz qualquer coisa… Não ias, pois… Lá… Espera! Olha, acho que já tenho um comentário…

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