Livros do Escritor

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domingo, 30 de março de 2025

É isto…


 

“Não te esqueças: o adjectivo que mais temos de repetir é: Espectacular!”, “Mas para quê? Tu nem gostaste daquilo…,” “Não interessa! Têm de ficar com a ideia de que tivemos umas férias de sonho… Isso é o mais importante! Lembra-te de que, quando cheira a desgraça, todos acorrem como hienas atrás do sangue!,” “Já sabes que não sou bom a inventar… E tu gostaste ainda menos do que eu!”, “E o que interessa? Nada! Se souberem disso, até rejubilam, acredita… Ainda estou para descobrir o porquê daquele maldito tempo! Para mim foi, sem dúvida, inveja! E de alguma daquelas nojentas das minhas colegas… Só pode! Nunca vi! Dois dias com um sol radioso, os outros cinco piores que Dezembro….,” “Começaste logo, mal chegaste, a publicar fotos e fotos…,” “Vens com essa conversa, porquê? Tu nem acreditas nessas coisas de… És sempre o primeiro a rebater essas teorias.,” “Verdade, no entanto, foi tudo muito estranho, mau demais… Lembras-te quando chegámos? O mar num verde-esmeralda, quente, a praia quase deserta, o mundo parecia ceder aos nossos desejos…,” “Claro que me lembro! A foto que tiraste do avião… Acredita, se não fossem as fotos, duvidaria de ter visto por ali o sol! Em verdade, duvidaria de tudo! Já tive pesadelos com aquilo, acreditas? A chuva copiosa e nós enfiados no quarto! Já nem falo da fortuna que gastámos para, no fim de contas, ali experienciar o Inferno!,” “E nem íamos com expectativas assim tão altas.,” “Mesmo, foi o contexto da altura a ditar aquele destino. No primeiro dia, chegámos, largámos as malas e corremos logo para a praia…,” “Eu todo orgulhoso pela minha escolha – apesar de, a montante, estar o contexto da altura… Depois veio o suplício!,” um casal, em lua-de-mel, durante cinco dias não sair do quarto é salutar, bem diferente é um casal, com mais de duas décadas de casamento, ser quase confinado a esse espaço, por chover copiosamente num destino somente de praia, nada mais havia para ver, a hora das refeições acabou por ser o único momento lúdico, o audível jocoso rir da vida, um ano a suspirar por sol, mar e costas voltadas para o relógio, e, chegada essa circunstância, a hora das refeições acabou por ser o único momento lúdico, o audível jocoso rir da vida, no resto do tempo deambularam pelo hotel, certa tarde foram até à piscina-interna, embora, mal entraram no espaço, fossem invadidos pelo cheiro a cloro, a humidade tão típica desse cenário relembrou-lhes Inverno, era nessa altura que ansiavam por piscinas-internas,  jamais em pleno Verão, numa ilha onde nada mais havia para ver, um destino somente de praia, instalou-se-lhes um dilacerante paradoxo, como se a vida reunisse toda a ironia possível e lhes despejasse em cima, ali estavam eles, num rectângulo cheio de água, sob uma luz-artificial, a olhar, pelas rasgadas janelas, o areal chovido, onde, aqui e ali, caminhavam gaivotas chorosas por lhes terem interditado os céus, não conseguiram ali estar mais de trinta minutos, pois, não era Inverno, e se a vida agora lhes despejava em cima toda a ironia possível, antes já lhes despejara demasiado fel, entre um casal não é costume haver muitos gestos simultâneos, o virar costas às rasgadas janelas voltadas para o areal chovido, onde, aqui e ali, caminhavam gaivotas chorosas por lhes terem interditado os céus, sair das águas artificialmente tépidas, os passos até às espreguiçadeiras, pegar nos roupões para se cobrirem e sair, constituiu uma dessas singularidades, nada disseram, mas uma certeza nascia-lhes, se sobrevivessem àquela provação, nada os poderia apartar, de certa forma as grandes tragédias do existir solidificam as relações, são exactamente as pequenas adversidades a esboroar a outrora mais bela união, e, no horizonte da existência, dois dias de sol e cinco de chuva, numas férias, são, sem dúvida, uma singela contrariedade, se lhes perguntassem, hoje, como suportaram aqueles cinco dias, não teriam uma resposta, divagariam, como é habitual quando não se quer revisitar o ontem, a verdade é que foi a esperança – de sol na manhã seguinte – a mantê-los unidos e expectantes, se todos os casais, após uma singela contrariedade, aprendessem este facto, não haveria tantos filhos a olhar estranhos na hora das refeições, de forma imperceptível, ele intuiu o seu desejo de materializar sol na manhã seguinte ao proclamar “Não te esqueças: o adjectivo que mais temos de repetir é: Espectacular!”, sim, ela estava certa, aprendera há muito que as feridas do corpo revelam a geografia do existir, as feridas da alma espelham a geografia do sentir, poucos conseguem observar a ânsia de sol, na manhã seguinte, de cada alma, “Tens toda a razão: como há pouco disseste: Têm de ficar com a ideia de que tivemos umas férias de sonho (…) quando cheira a desgraça, todos acorrem como hienas atrás do sangue!

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