Livros do Escritor

Livros do Escritor

terça-feira, 25 de março de 2025

Lugar d`Além


 

“É ali que vamos ser felizes!”, a frase saiu-lhe simultânea ao pensar, “É ali que vamos ser felizes!”, o rosto em esperança, ouviu-a com indulgência, felicidade não rima com existir, “Anda, segue a seta,” perplexo olhou a placa que indicava “Lugar d´Além,” de início afigurou-se-lhe algo inquietante, porém, a resoluta expressão dela fê-lo colocar o pisca e seguir nessa direcção, tudo, neste caminhar, tem um antes, o facto de ali se encontrarem começou há uns bons anos, poucos meses depois de firmarem votos de amor e fidelidade sobre terreno sagrado e sob a cruz-divina, símbolos de compromisso nos anelares-esquerdos, foram morar num pequenito apartamento nos arrabaldes, sala que era quarto, quarto que servia de sala, uma acanhada casita-de-banho e, o que se denomina de cozinha, um corredor com uns eletrodomésticos, ao fundo, uma janelita, com um estendal, que dava para o prédio em frente, desconheciam a causa, ou talvez não, mas a cada dia parecia mais próximo, tal o crescendo de sombras que pareciam engoli-los, provinham de humildes famílias do interior, ela conseguira trabalho ao balcão de um entreposto de alegrias ou tristezas veladas por um envelope, ele, de momento, zelava para que roubassem o menos possível de um super-mercado, por estes dias é o que se requer – zelar para que se roube o menos possível –, quando certos factos se tornam quotidianos, é porque nos perdemos de vez, a ânsia de cidade e litoral fê-los abraçar o que se lhes afigurou de oportunidades, com a escolaridade obrigatória cumprida, foi o possível, o horizonte de ambos salários possibilitou apenas um pequenito apartamento nos arrabaldes – de início, afigurou-se-lhes um palácio, o calor do êxtase acelera a pulsação embora turve o discernimento –, o restante era meticulosamente calculado para que a mesa não ficasse vazia nas imperativas horas das refeições, a realidade acaba sempre por encontrar uma porta ou janela por onde irromper para fatalmente golpear a paixão, demora, no máximo, quatro meses, a fatal hemorragia, após a sua extinção, ou se levanta o amor ou surge a indiferença, para eles, felizmente, deu-se o primeiro caso, no entanto, com a morte da paixão, o contexto circundante tornou-se-lhes nítido, demasiado longínquo de palácios ou castelos, apenas um pequenito apartamento nos arrabaldes, sala que era quarto, quarto que servia de sala, uma acanhada casita-de-banho e, o que se denomina de cozinha, um corredor com uns eletrodomésticos, ao fundo, uma janelita, com um estendal, que dava para o prédio em frente, desconheciam a causa, ou talvez não, mas a cada dia parecia mais próximo, todas as noites o telefone de um deles tocava, do interior ansiavam por notícias suas, a principal se a união, sobre terreno sagrado e sob a cruz-divina, já dera frutos, as desculpas nunca acompanham a passada do tempo, são quase sempre de curta-validade, olhavam à sua volta e, por ali, não havia espaço para um berço e demais utensílios, a circunstância dela, no entreposto de alegrias ou tristezas veladas por um envelope, não lhe permitia, por enquanto, deixar o balcão, durante uns meses, para apresentar o mundo a um filho, ele ainda menos, qualquer abandono do posto-de-trabalho só potencia o acto de roubar, houve vezes em que o telefone se limitou a tocar, tocar, e tocar, ninguém calou aquele entoar impessoal e tão vulgar, indiciador da marca do aparelho e não do seu detentor, como as coisas têm mudado sob o céu,  a insistência por um fruto da sua união começava a inquietá-los, não queriam partilhar a agrura do prédio em frente, a cada dia, parecer mais próximo, se o fizessem, sabiam de antemão a ladainha que se levantava do outro lado “Tanto vos avisámos para não saírem daqui! Porquê essa fixação com a capital? Porquê? Vivem em prateleiras e nem o vizinho da frente conhecem! Aqui, ao menos, todos nos conhecemos, trabalho não falta… E com muita dignidade! O ambiente para as crianças, meu Deus, nada que ver com a cidade… Podem brincar à-vontade sem quaisquer riscos. Não há o caos do trânsito – filas e filas que desesperadamente se arrastam a caminho do trabalho, no regresso o mesmo suplício, apenas muda o sentido –, a poluição que apenas subtrai tempo de vida, a barulheira infernal de carros, buzinadelas, enfim… E o apoio que aqui teriam de nós?! Há coisa mais fundamental do que ter a família por perto??? Sinceramente…”, há quem nasça estranho para a sua circunstância, cada um deles cumpriu com este desígnio, eles não partiram da ruralidade, em verdade, eles fugiram, a monotonia daquele viver, compassada por um silêncio que retalhava a alma, quase os levou à soleira da loucura, chegaram a sentir-lhe o odor, pois, há quem nasça estranho para a sua circunstância, cada um deles cumpriu com este desígnio, foi num passeio de fim-de-semana, numa povoação próxima, que ela se deteve numa placa a indicar “Lugar d´Além,” de mão no ventre murmurou-lhe “É ali que vamos ser felizes!”

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.