Livros do Escritor

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domingo, 16 de março de 2025

Dolorosamente real II

 


Saíam, neste momento, daquela estrada que tão bem se faz pagar, como se lhe houvesse alternativas, e mergulhavam em paisagens que ela olhava com uma estranheza e familiaridade simultâneas (quantos eus cabem numa vida?), ele percebera-lhe a delonga do olhar, enquanto o automóvel sob a sombra de frondosas ramagens ou a atravessar verdes planícies com a inevitável ponte sobre um anónimo rio, para emergir o diálogo, ele desacelera um pouco, estavam quase a chegar, “Como te estás a sentir ao rever tudo isto?”, “Como se já tivesse sido outra… Há qualquer coisa de irreal ao revermos lugares onde há muito caminhámos… Procuro-me por ali, mas não me encontro! Não sei se me faço compreender…,” ao fundo da estrada, revelam-se as primeiras sombras de betão, “Vamos directos para a capela, certo?,” “Claro! Jamais volto a entrar na casa de um deles! A comoção, muitas vezes, tolda-nos o bom-senso, não será este o caso.”, “Tens a certeza? És sempre tão emotiva nestas ocasiões…,” “Com o tempo, somamos funerais, só nos resta orar para que nunca sejam os indevidos,” “É um facto!”, “Concluo que a vida é um lento e doloroso anoitecer. A visão fresca e matinal de uma criança sobre as coisas do mundo, com o tempo, vai-se desvanecendo, desvanecendo, desvanecendo, por fim, resta o céptico e amargurado olhar de um velho… Já não encontro candura nas coisas à minha volta, quando aqui chegava, em criança, imaginava mundos, uma pureza nas coisas tão distante da urbe, espelhada até nos modos mais espontâneos das gentes, olhava os que hoje chamo de estranhos como se fossem, em verdade, família, sabes, era tão mais feliz, é duro acordar para os factos da vida, muito duro…,” “É triste deixar de ser criança…”, “Não é por aí! A maioria dos adultos não despertou para a realidade… Continua piamente a acreditar na versão que lhes é apresentada… E se alguém ousa desmenti-la, a coisa complicar-se-á… Concluí, há uns bons tempos, que a diferença entre um adulto e uma criança reside no facto do primeiro realizar contas para sobreviver, quanto ao resto, nada de significativo, apenas a troca de umas brincadeiras por outras…,” “Falaste há pouco de aqui chegares, em criança, imaginares mundos e de sentires uma pureza nas coisas muito distante da cidade, certo? Ainda vislumbras resquícios desse idílio à tua volta?”, “Apenas desencanto por ter sido tão pueril!,” “Olha, chegámos, ali está a capela!,” “Estranho, não vejo ninguém! Como se nada passasse… É esta a capela, certo?,” “Qual a dúvida?,” neste ponto, ela cometia um erro fatal, dirigia-se para o funeral de uma idosa, os funerais dos velhos são de um discreto silêncio, como um entardecer invernoso, os poucos ali presentes com semblantes respeitosos, mas sem vestígios de tristeza, tudo encarado com naturalidade, como se um acto de misericórdia a extinção do fardo da existência a quem somara tantas décadas, a partir de certa idade não se pergunta de que se morre, apenas se aguarda que a morte bata à porta, conseguiram estacionar próximo da capela, saíram do carro e para lá se encaminharam, para sua admiração, ele chegara primeiro aos três ou quatro largos degraus, de pedra enegrecida, que precedem a entrada, ela refreara a marcha para observar se por ali algum vulto do passado, não havia por ali ninguém, apenas o incessante e tão monótono vai e vem de carros da cidade, ostentava uma expressão desconfiada desde que ali chegara, parecia caminhar por território hostil, após os largos degraus, de pedra enegrecida, acabou por ladeá-lo, antes de entrar, conseguiram observar todo o interior da capela, era acanhada, o caixão ocupava praticamente o centro, a luz provinha das velas, a ambiência repercutia-se no sentir, um adeus impronunciado, o tremeluzir alongado das chamas como gestos conformados de despedida, o dever cumprido ou talvez não ao olhar de quem assiste e só resta acenar adeus, chegara o momento da partida, três ou quatro vultos no interior, já curvados para a terra, familiarizavam-se, como todos nesta caminhada, antes de, por fim, a abraçar, reconheceram dois, ele murmura-lhe “Não os vais cumprimentar?”, “Não foi por eles que vim!”, avançou, ele seguiu-a, o caixão fechado, na cabeceira uma fotografia, sorridente, de quem se despediam, como era pungente recordar aquela vivacidade eternizada, numa determinada circunstância, de quem começa a ser memória, curvou-se e colocou a sua mão, ele limitou-se a observar, poucos segundos depois, ela reergue-se, olha a fotografia, a emoção denota-se no brilho do olhar, baixa o rosto e abandona a capela, ele curva-se respeitosamente e segue-a, só pararam junto ao carro, “Não os devias, pelo menos, ter cumprimentado?”, “Até a morte tem de ser hipócrita? O acto mais radical da existência é morrer, para quê nodoá-lo com hipocrisia? Creio sinceramente que ali estavam para ver a minha reacção. Se lhes concederia algum protagonismo? Não, jamais! Como te disse, há muito se tornaram estranhos, por aí ficam…,” “Como te sentes após…?,” “Uma porta que, por fim, de vez se fechou.” “Imaginas o que mais me custou? O caixão fechado e apenas uma fotografia, de um momento feliz…,” “Ouvi esse desejo em duas ou três ocasiões. Nem sei como se lembraram de tal! Quando chegar a minha vez, também quero desta forma. A última imagem deve ser em vida e não um corpo inerte de onde a alma já partiu.”, “Concordo inteiramente. Então quando se metem a beijar a testa de um cadáver… Sempre achei tétrico!,” “Sem dúvida! Sabes o mais curioso? Recordo-me perfeitamente do dia em que aquela foto foi tirada! Eu era criancinha… Foi num passeio… Afinal, ao olhar para trás, até encontro risos… Era Primavera, acho que ainda não ouvira a palavra morte.

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