Um dia
destes, nas notícias, relatavam um acidente, com vítimas mortais, durante um
evento, para contextualizar, a jornalista lá resolveu entrevistar alguns dos
participantes, retive os lugares-comuns e a boçalidade final de um: “Pois,
é lamentável, muito triste, mesmo muito triste, não devia ter acontecido, mas é preciso andar para a frente,” o
meu pensar sentou-se aquando e depois de ouvir (“… mas é preciso andar para
a frente”), o que mais feriu os ouvidos, para não falar do sentir, foi,
talvez, a naturalidade da entoação, onde se denotava algum entusiasmo, como se
remetesse o sucedido para um lugar bem pretérito, onde nem a memória já
conseguisse alcançar, sei há muito que, quando daqui partirmos, continuamos a
respirar na memória daqueles que nos amam, no entanto, ao saber da partida de
três seres-humanos, o boçal ardilosamente colocou o ênfase no futuro,
desvalorizando por completo o presente que, no fundo, é um constante passado,
enfim, a verdade é que, a cada dia, me revejo menos na
realidade circundante, longe vão os tempos em que, quando se falava de
partidas, olhos no chão e pesar pelas faces, por outras palavras, havia
respeito, pois, hoje diz-se adeus com demasiada facilidade, ou muito me
engano, ou chegará o dia em que muito poucos, raríssimos, conseguirão dialogar
olhos-nos-olhos, a verdade é que, a
cada dia, me revejo menos na realidade circundante, Platão sempre esteve certo,
desconhecia apenas que a caverna seria um rectângulo sofregamente sustido entre
os dedos, uma palavra silenciada, uma frase reprimida, “Hoje não vale a
pena, mais vale guardar para amanhã… Para que é que me vou aborrecer?”, o
telefonema que não apetece atender, e depois é tarde… Um
pouco como aquele familiar que sempre vamos adiando a visita, por este ou aquele
motivo, tempo, sobretudo paciência, até que um dia só o vazio do espaço que
ocupava, e essa ausência que nos ameaça engolir, afinal, a sua dimensão era bem
maior que se julgava, equivalente à saudade que nos habita, ainda por aqui
a imagem de um casal, viviam nos subúrbios, empregos atrás de secretárias,
filhos na escola, primeiro ela, depois ele, uma inversão ao olhar paterno, tudo
bem, a saúde é que importa, ao olhar materno, aquando férias regressavam às
origens, por outras palavras, à aldeia que a viu nascer, ela
é que norteava os passos familiares, ele limitava-se a segui-la, da melhor
forma possível, na véspera de Natal, era vê-la sair do prédio, em primeiro, muito direita, com o seu vison contrafeito, a armação do
cabelo, construída à custa de muitos litros de laca, imperturbável face a
qualquer intempérie, os saltos-altos de um quase segundo-andar, a maquilhagem
num excesso de palhaço-pobre, em segundo, lá vinha ele, curvado, numa luta
titânica para arrastar duas malas de volumetria assinalável, um fato-coçado em
vários pontos, uma gravata anacrónica, seguia-se-lhe
a filha, fones nos ouvidos, rectângulo na mão, qualquer som dali emergia, tal a
sua alienada expressão, pastilha na boca, o mascar conferia-lhe um desagradável e
deselegante ar bovino, por fim, o filho, também se curvava por uma
mala, o bom-senso de, dentro do possível, mitigar o esforço paterno, lá
seguiam para a aldeia materna, ali chegados tudo se repetia, apenas o sentido se
invertia, ela a primeira a sair do carro, muito direita, com o seu vison
contrafeito, a armação do cabelo, construída à custa de muitos litros de laca,
imperturbável face a qualquer intempérie, os saltos-altos de um quase
segundo-andar, a maquilhagem num excesso de palhaço-pobre, em segundo, lá vinha
ele, curvado, numa luta titânica para retirar duas malas, de volumetria
assinalável, da bagageira, um fato-coçado em vários pontos, uma gravata
anacrónica, seguia-se-lhe a filha, fones nos ouvidos, rectângulo na mão, qualquer
som dali emergia, tal a sua alienada expressão, pastilha na boca, o mascar
conferia-lhe um desagradável e deselegante ar bovino, por fim, o filho, que
também se curvava, sobre a bagageira, por uma mala, o bom-senso de, dentro do
possível, mitigar o esforço paterno, à porta os pais dela aguardavam-nos, a
mãe sempre com uma expressão velada para a filha, só perante o genro e os netos
se tornava solar e os gestos se janela, o
carro, repetia incessantemente que a filha não poderia ter realizado melhor
casamento, ela é que norteava os passos familiares, repetia, com indisfarçável
orgulho, aos mais próximos, quantos homens, após décadas de matrimónio, secundariam
a mulher enquanto se digladiavam com duas robustas malas? Na Páscoa, tudo se
repetia, no Verão igualmente, e os anos a sucederem-se, um dia, o filho vira-se
para o pai e “Nunca vamos visitar a nossa avó-materna! Porquê?” Espanto
pela face perante uma evidência tão crua, desde o casamento, de facto, como se
costas para as suas origens e um irreversível amplexo pela família da mulher,
quando, por acaso, lembrava ao tempo que não visitava sua mãe, o pai partira há
muito, logo esta: “Para quê? A tua irmã está sempre lá metida! Ainda nos fazia
sentir uns estranhos… E sabes bem como aquilo é longe! No Inverno é gelo, no
Verão nem se consegue respirar… Um horror! Para quê lá ir? Falas com a tua
mãezinha quase todos os meses. Não te esqueças de que ela sublinha bem a predilecção
pelas filhinhas da tua irmã! Isso faz muito mal à cabeça dos miúdos…”, quando
lhe relatou a questão do filho, ela limitou-se a: “Para quê? A tua irmã
está sempre lá metida! Ainda nos fazia sentir uns estranhos… E sabes bem como
aquilo é longe! No Inverno é gelo, no Verão nem se consegue respirar… Um
horror! Para quê lá ir? Falas com a tua mãezinha quase todos os meses. Não te
esqueças de que ela sublinha bem a predilecção pelas filhinhas da tua irmã!
Isso faz muito mal à cabeça dos miúdos…”, que ninguém se esqueça do carácter
irónico do tempo, um dos erros maiores na vida, foi numa manhã de Sábado, o
telefone, foi a filha que atendeu, talvez de pastilha na boca, o mascar
conferia-lhe um desagradável e deselegante ar bovino, a expressão, no entanto,
ficou cinzenta, aproximou-se do pai “É a tia! Diz que precisa de falar
urgentemente…”, um assomo de energia fê-lo levantar-se do sofá, a filha nem
concluiu a frase, ele limitou-se a ouvir o que chegava do outro lado, não
emitiu qualquer palavra, a sua expressão transparecia o sentir de alguém que
sempre vai adiando a visita a um tão próximo familiar, por este ou aquele
motivo, tempo, sobretudo paciência, influência do cônjuge, até que um dia só o
vazio do espaço que ocupava, e essa ausência que o ameaça engolir, afinal, a
sua dimensão era bem maior que se julgava, ela ladeou-o, talvez estivesse ao
espelho, percebeu logo o sucedido, assim que ele desligou o telefone : “Pois,
é lamentável, muito triste, mesmo muito triste, não devia ter acontecido, mas é
preciso andar para a frente…”
Livros do Escritor
quinta-feira, 25 de julho de 2024
É preciso andar para a frente…
terça-feira, 23 de julho de 2024
domingo, 21 de julho de 2024
"Marketering"
Há
uns tempos escrevi: “Aqui
chegado, creio que só os simples são felizes”; a personagem que hoje vou abordar enquadra-se, de
forma paradigmática, neste contexto, ficara muito aquém da escolaridade mínima
– se bem que a escola jamais meça inteligências, apenas trabalho –, por
conseguinte, vivia sob a asa dos pais, que eram donos de uma oficina, cedo
aprendeu aquele sublime léxico (bielas, pistom, escape,
correia-de-transmissão, pastilhas-de-travão…) digno de qualquer profuso
pensador, em verdade quem lhe
estendia mais a asa era a mãe que, como para os livros prematuramente revelou
total inépcia, logo o colocou na oficina, havia que providenciar a sucessão, e
como o léxico era vasto
(bielas, pistom, escape, correia-de-transmissão, pastilhas-de-travão…) tinha de
apreendê-lo o mais cedo possível, o pai era mais exigente e afastado, todo o
cabelo lhe fugira para o lábio-superior, e como se orgulhava daquela vasta
bigodaça, certa tarde, não me recordo o motivo, tive de lhes bater à porta,
estavam os três à mesa, pai, mãe e filho, mais
comovente é impossível, da bigodaça paterna pingava azeite, chafurdava um prato
de bacalhau, assim que me viu: “Então patrão, o que o traz por
cá? É servido?” Na presença do pai, o filho
esvaziava-se, impossível este pormenor passar despercebido a quem soubesse
olhar, não por acaso, talvez para se arrogar de que conseguia ir além da esfera
paterna, veio com a notícia de ir simultaneamente trabalhar numa outra área,
quando se lhe perguntou qual, respondeu com uma pérola que até hoje guardo
ciosamente: “Uma cena qualquer ligada ao marketering..”; risos ou lágrimas? Pois, a
realidade em suspenso: risos ou lágrimas? E afirmou-o com a naturalidade de
quem sabe do que fala, os seus horizontes cingiam-se à moto, ginásio,
bebedeiras, namorada, e, por imperativo de sobrevivência, claro, a oficina, não
lhe saíam três frases seguidas sem afirmar a sua masculinidade, regra geral, no
uso dos punhos ou ameaça de os utilizar, longas
epopeias, como sempre acontece quando a garganta é
inversamente proporcional aos factos, até que, repentinamente, a namorada
troca-o por outro, um acontecimento assim não é filho do instante, há muito
tudo se jogava nos bastidores, e o “trocado”, pois, é sempre o último a saber, neste
ponto, confesso que fiquei apreensivo com a saúde do sujeito que era agora
titular do coração da sua ex, todavia, ele limitou-se
às lamúrias,
lágrimas e nada mais, dias
transformaram-se em semanas, semanas em meses, meses em trimestres, e somente,
da sua parte, lamúrias, lágrimas e nada mais, neste ponto
da caminhada seguimos por vias distintas, registei apenas o facto de que,
numa situação-limite, afinal, no lugar de punhos ou ameaça de os utilizar, limitou-se
às lamúrias, lágrimas e nada mais, por norma a garganta é inversamente
proporcional aos factos, ainda me recordo, como sempre acontece na tribo das
motos, ou em qualquer outra, o rito assume sempre um papel-central, quando
alguém chegava com uma nova, todos se imobilizavam em
redor a observar, como devotos diante de um altar, em silêncio, devoção,
deleite, espanto, passado algum tempo, começavam a andar
em redor, como se romaria, as cabeças em gestos verticais de anuência, como
nunca professei esta religião, por respeito, recuava uns passos e observava
este rito de uma segura distância, meia-dúzia ou mais sujeitos a olhar
boquiabertos e atónitos para um veículo, algo me escapava, felizmente continua
a escapar, foi mais ou menos nesta altura que comecei a intuir o facto de a
estupidez ter sido tão generosamente distribuída entre os homens, e o silêncio caído
enquanto se imobilizavam em redor a observar, como devotos diante de um altar, pois,
graças a Deus há horizontes que me foram sempre vedados, ele cumpria este rito
com total abnegação, andar em redor, como se em romaria, a cabeça em gestos
verticais de anuência, não nos podemos esquecer de que já estaria muito à
frente para o seu tempo, não fosse um especialista em “marketering”, a última vez que o vi foi no
meu local de trabalho, deslocara-se lá para resolver uma questão com o filho,
como não o deixavam entrar berrava e gesticulava, quando me viu lá se acalmou,
perguntei-lhe qual era o problema, aos berros respondeu-me, a apontar para a
funcionária, “Aquela grande P… não me deixa entrar!”, lá o encaminhei e cessou o
brado, naqueles breves instantes, senti proximidade e uma enormíssima distância
com esta personagem, houve um ponto da caminhada em que seguimos por vias
distintas, este facto é irreversível e dita muito de quem somos e sobretudo de
quem fomos, por acaso esqueci-me de lhe perguntar se ainda está ligado ao “marketering”, se me revestir de paciência
talvez, numa destas tardes, lhe bata à porta, e encontre os três à mesa, pai,
mãe e filho, mais comovente é impossível, da bigodaça paterna pingue azeite, possivelmente
chafurde um prato de bacalhau, e assim que me vir: “Então patrão, o que o traz por
cá? É servido?”
quinta-feira, 18 de julho de 2024
quarta-feira, 17 de julho de 2024
Esparsos
Viver é subtrair o futuro e adicionar
passado, por muitas teorias contrárias, deste facto ninguém me demove, e é no
passado que respiram alguns vultos que hoje vão ocupar estas linhas, em
verdade, há muito o mereciam, é sabido que o tempo é o melhor juiz: dissipa
todas as dúvidas de quem nos guiou para a luz ou procurou anoitecer-nos o viver;
há quem faça a apologia de não haver acasos nesta coisa do viver, já caminhei
mais distante desta máxima, se todos, com quem nos cruzamos, desempenham um
papel na nossa caminhada, naturalmente o oposto também sucede, eu sempre fui
detentor de um lado melancólico de olhar o ido, talvez por aí resida a génese deste
hábito de juntar palavras, de lhes dar musicalidade, construir enredos, contar
histórias, as personagens que, de seguida, vou iluminar, ainda hoje me fazem
sorrir, não é tudo, porém nos antípodas de ser o pouco, demasiados ficam tão
aquém deste desígnio, frequentávamos o mesmo espaço desportivo com a intenção de sermos os futuros Schwarzenegger, um dos donos era como se pai de todos, ouvia, aconselhava,
corrigia, enfim, todas as incumbências da paternidade, certa tarde, ouço
alguém, em jeito de proclamação, dizer-lhe: “Ontem virei-me para os meus pais e
disse-lhes: pai e mãe: vou deixar de estudar porque tenho de treinar mais… Ando
a crescer pouco!”; tudo
por ali ficou em suspenso à espera da reacção do nosso guia-espiritual (um dos
donos era como se pai de todos, ouvia, aconselhava, corrigia, enfim, todas as
incumbências da paternidade), a mão pelo cabelo e o
olhar no chão indiciaram-me desespero, ergueu o rosto e questionou: “E
o que disseram os teus pais?”, claro que a mão pelo cabelo e
o olhar no chão passaram
despercebidos ao sujeito, continuou a sua narrativa: “O que disseram?
Ameaçaram-me: se deixas de estudar, podes ir trabalhar! E fui mesmo: deixei a
escola e fui trabalhar para uma obra!”, fez-se, de novo, silêncio, talvez o
mesmo raciocínio pairasse pelos espíritos ali presentes: então, se queria
crescer, o mais avisado não seria trabalhar nas obras… O silêncio permaneceu, tal como uma mão pelo
cabelo e um olhar no chão, para o miúdo que era, e felizmente sou, aquilo
afigurou-se-me uma epifania: “Ontem virei-me para os meus pais e
disse-lhes: pai e mãe: vou deixar de estudar porque tenho de treinar mais… Ando
a crescer pouco!” Nem a minha imaginação conseguia visualizar tal,
não me lembro de, nessa tarde, o nosso
guia-espiritual articular uma frase, somente a mão pelo cabelo e o olhar no
chão, este sujeito, na altura, também me apresentou o revendedor de marcas de
suplementos norte-americanas de prestígio, lá íamos, que nem peregrinos, ao seu
armazém adquiri-las, aqui dá-se-lhe a segunda epifania: como podem constatar,
ainda a preservo ciosamente: vira-se para o revendedor e: “Ouve lá, Rui, um dia destes tens de me deixar dormir
aqui… Só
de inspirar este ar, sinto-me a crescer!” Conciso, sintético,
profundo, reparei no ar abismado do revendedor, ainda permaneceu uns instantes
boquiaberto, também não me recordo de, nessa tarde, articular mais frases, e
como era pródigo de verbo, eu, pelo contrário, compreendi estar perante um
visionário: “Ouve lá, Rui, um dia destes tens de me deixar dormir aqui… Só
de inspirar este ar, sinto-me a crescer!” Tempos depois, cruzei-me com esta
personagem, ia de fato, com um aspecto gasto, sublinhe-se, uma malinha na mão,
apanhar o comboio, trabalhava numa sucursal-bancária, trocámos frases breves e
apressadas, confesso o meu desgosto pela sua capitulação, nada lhe disse,
diante de mim era um outro, longe, tão longe, daquele que, certa tarde,
proclamou: “Ontem virei-me para os meus pais e disse-lhes: pai e mãe: vou
deixar de estudar porque tenho de treinar mais… Ando a crescer pouco!” Num
canto de mim, alimentou-se a esperança de que, talvez no seu regresso, da
sucursal-bancária, o Rui lhe abrisse o portão, de um certo armazém, para o
deixar dormir, “Só
de inspirar este ar, sinto-me a crescer!” É possível, ou talvez a
ferocidade da vida lhe tenha destruído os sonhos do ontem, creio que o meu
desgosto, em verdade, se deva ao funeral de mais um sonho: o mundo ganhou um
céptico e perdeu um sonhador – mau prenúncio para o amanhã! Hoje também vou revelar
como a Filosofia entrou na minha vida: foi exactamente nesse espaço desportivo
que frequentávamos, com a intenção de sermos os futuros Schwarzenegger, entre
pegar e largar barras ou halteres, recuperar o fôlego, olho um rosto bastante
familiar por ali, estava noutro aparelho, sorri e diz-me: “Um gajo tem é de
lhe dar!” Assim, do nada, de repente, outra epifania diante de mim, “Um
gajo tem é de lhe dar!” – como podia fugir do mundo da Filosofia?! Eu já lá
morava sem saber, este sujeito tinha a alcunha de Nubret, pela
semelhança com o conhecido culturista francês, também havia quem o chamasse de O
Africano, introvertido, calmo, concentrado no treino, reunia as
características inatas de um herói, agora adicionava as de um pensador: “Um gajo tem é de lhe dar!” Alguém que pratica
desporto já ouviu melhor conselho? Pois, então silêncio perante esta erudição,
e, em verdade, isto não se cinge só ao desporto, é extensível à própria vida (“Um
gajo tem é de lhe dar!”), sublime, como veem, ainda perdura em mim, em
nenhum outro espaço me voltei a cruzar com personagens assim e muito menos com
máximas ou conselhos tão profundos, se alguma noite me virem a bater num
portão, não se preocupem, estou à espera que o Rui abra para ali pernoitar, não
sei porquê, mas “Só de inspirar este ar, sinto-me a crescer!”
domingo, 14 de julho de 2024
Capitulação
Os serões pouco divergiam, ele, no sofá, de
rosto oculto, pelo jornal, para que ela não percebesse a chegada do sono, por
seu turno, ela num ávido e galopante tricotar, uma
ferocidade crescente, o
olhar absorvido pela trama da telenovela com aquele peculiar sotaque de
terras além-mar, volta
e meia, resmungava-lhe “Não me digas que já estás a dormir!
Acorda, homem! Vê bem ao ponto que chegaste…”, com
tanto barulho, lá se vê forçado a regressar à sua circunstância, ao metálico
embater das agulhas e ao rectângulo onde se desenrola uma trama com aquele
peculiar sotaque de terras além-mar, olha-a da distância do seu sono, imensa
por sinal, as mãos frenéticas, num ávido e galopante tricotar, uma ferocidade
crescente, o olhar absorvido pela trama da telenovela com aquele peculiar
sotaque de terras além-mar, por momentos, breves mesmo, pensou regressar ao seu
sono, mas receou aquele brado de novo “Não
me digas que já estás a dormir! Acorda, homem! Vê bem ao ponto que chegaste…”, assim
sendo, fingiu interesse pelo que se desenrolava no rectangular écran, enquanto
ela lhe debitava as mais recentes ocorrências, pelo menos duas vezes por semana
desaguava naquela sala uma conhecida – sempre considerei a palavra “amiga” rara
e preciosa –, o marido, nesses dois serões, juntava-se a um coro-litúrgico,
enfim, há quem fuja de si por uma vida inteira, e,
no caso desse sujeito, não se visualizava a mínima aptidão para o canto, pois,
há quem fuja de si por uma vida inteira, e como são demasiado plurais os
exemplos, para não passar esses dois serões sozinhas, esta conhecida optava por
ali desaguar, e era só atravessar a rua, ao menos, enquanto as duas conversavam,
aquele brado não regressava (“Não me digas que já estás a dormir! Acorda,
homem! Vê bem ao ponto que chegaste…”), há quanto os serões, por ali, não
divergiam? A um olhar exterior, pareciam náufragos, a
partilhar um destroço, ao sabor da corrente, sem qualquer assomo de volição
face ao acontecer, ternura e repulsa entrecruzavam-se perante tal cenário,
será este o destino, com o tempo, de qualquer casal? Ela absorvida
pela trama de uma telenovela com aquele peculiar sotaque de terras além-mar, num
ávido e galopante tricotar, uma ferocidade crescente, chega-se a um ponto
da existência em que já nada se espera, sabe-se que o
amanhã apenas mais um ontem, é dos momentos mais dolorosos desta caminhada
(sabe-se que o amanhã apenas mais um ontem), cada
um enfrenta este facto como pode: uns fogem-lhe, pela alienação, mediante a sua circunstância (jogo, bebida,
viagens, muitos, por incrível que pareça, pelo trabalho, mais frustrante não
pode haver… E são tantos!), outros, pela Arte, procuram redescobrir o Sentido,
ainda há os que buscam, de forma desesperada, trazer o ontem ao hoje, um
equívoco, sem dúvida, as coisas nunca ficam onde as deixámos, mas é sempre uma
tentativa de o amanhã diferir do hoje, por fim, há os
que se colocam na plateia para assistir a algo que os relembre quem foram,
ela caminhava entre estes últimos, absorvida pela trama de uma telenovela com
aquele peculiar sotaque de terras além-mar, num ávido e galopante tricotar, uma
ferocidade crescente, por ali, entre amores e desamores, visualizava a centelha
de algo, no fundo, de um ontem, longínquo, tão longínquo, de dois náufragos, a
partilhar um destroço, ao sabor da corrente, sem qualquer assomo de volição
face ao acontecer, nem a chegada da conhecida, duas vezes por semana, a fazia
refrear o embate metálico das agulhas, e, muito menos, esbater a avidez do
olhar pela trama no écran rectangular, a conhecida tinha facilidade em se
ajustar aos contextos, era ela que batia à porta, procurava transparecer
interesse, pela trama da telenovela com aquele peculiar sotaque de terras
além-mar, através de observações, em verdade, eram mais perguntas para se
situar na acção, as agulhas respondiam energicamente, não fosse aquele um dos
seus espelhos de eleição (há os que se colocam na plateia para assistir a algo
que os relembre quem foram), pouco mais de duas horas depois, duas vezes por
semana, de a conhecida bater à porta, era o marido, vindo do coro-litúrgico, a
soar a campainha, entre outros complexos, o sujeito padecia de gaguez, e havia
nele uma irreprimível ânsia de transparecer mais cultura do que efectivamente
cabia na sua divisória craniana, além, claro, de uma total ausência de vocação
para o canto, embora tal facto não o coibisse de frequentar o coro-litúrgico, os
dois náufragos saudaram-no da sua circunstância, as agulhas mantiveram a sua
cadência, o olhar nem se desviou do desenrolar da trama, quanto ao jornal lá
continuou sobre a barriga refém das subidas e descidas do diafragma, palavras
de ocasião, a conhecida feliz pela iminente partida, embora um olhito já
capturado pela trama da telenovela com aquele peculiar sotaque de terras
além-mar, assim que a porta se fechou, as agulhas mantiveram o seu frenético
ritmo, ele, porém, capitulara à consciência de que o amanhã apenas mais um
ontem.
sábado, 13 de julho de 2024
quinta-feira, 11 de julho de 2024
segunda-feira, 8 de julho de 2024
“Não plecisa de ajuda”
Ainda
por aqui a imagem da primeira vez que o vi, ninguém lhe podia ficar
indiferente, realizava, num contexto propício a tal, um exercício cujo
movimento ficava a meio, e a seguir outro, mais outro, todos os movimentos pela
metade, ou talvez fosse uma outra coisa, pois, a verdade é esta, percebi, assim
que o vi, estar na presença de um verdadeiro Ninja, claro que executava os
movimentos correctamente, a nossa visão é que estava sempre aquém da
sua velocidade, a realidade
era esta, sim, sem dúvida, chama-se Yang, o nosso Ninja, quando algum
incauto o procurava corrigir, o nosso herói, de poucas falas como todos os
grandes ícones do mundo da acção, limitava-se a responder, de forma quase sumida, “Não plecisa
de
ajuda”, elementar, conciso, pragmático, como um Ninja
conseguiria explicar, a um simples mortal, que o olhar comum está aquém da sua velocidade
de movimentos? Levantou-se-me logo, vinda da memória, a canção do genérico de
uma série de infância, nem por acaso sobre heróis de Shaolin, agora, à minha
frente, ali estava um, afinal eram reais, as más-línguas diziam que trabalhava
num desses armazéns que alimentam as lojas das suas gentes, duvido muito, a
maledicência não tem limites, e que vivia com a mãe, imagine-se: um verdadeiro
Ninja a trabalhar num armazém que alimenta lojas orientais e a viver com a
mãe?! Onde já se viu tal??? Obviamente tudo falsidades, é recrutado para
missões-secretas de alto-risco e quando regressa tem, à sua espera, o leito de múltiplas
pretendentes, a nossa visão é que estava sempre aquém
da sua velocidade, a realidade era esta, o destino, esse incógnito que,
volta-e-meia, gosta de nos relembrar a sua existência, forçou-o a ir treinar
para outro espaço, ali chegado pagou uma anuidade, como era seu hábito, e em notas,
às habituais e inconvenientes questões (“Quer factura? Precisa de recibo?
Tem a certeza de que não quer?) limitava-se a repetir, de forma quase
sumida, “Não plecisa…”, lesto a virar-costas e seguir o seu caminho, lá foi
para a sala-de-exercícios espalhar a sua magia, claro que, por ali, também não
estavam preparados para assistir aos treinos de um Ninja, a nossa visão estava sempre aquém da sua
velocidade, não tardou muito para que os incautos profissionais se aproximassem
em tentativas de o corrigir, já um pouco desgastado, o nosso Ninja, num tom sem
réplica, “Não plecisa de ajuda… “Não plecisa de ajuda…”, e
assim continuava a sua saga, de exercícios pela metade, apenas uma ilusão de
óptica para o nosso desarmado olhar, perante este tom sem réplica, ninguém
ousava contra-argumentar, todos se afastavam para dar largas à maledicência,
coitados, ignoravam o essencial: que a nossa visão estava sempre aquém da sua
velocidade; houve quem o visse, de noite, à janela de sua casa, a vigiar o
armazém, do outro lado da rua… Mentira! Estaria à espera da sua próxima missão,
talvez fosse num longínquo ponto do mundo, nem dariam pela sua entrada quanto
mais da sua saída, como era possível, de um Ninja, afirmar que, aos
fins-de-semana, se limitava a uns passeios, pelo bairro, com a mãe?! Não, não
pode ser, não acredito, é o cúmulo da maledicência, Yang, o Ninja, seja em dia
for, ou está a salvar o mundo de um qualquer inimigo da humanidade ou a preparar-se
para tal, e não se preocupem, se alguém lhe perguntar se precisa de ajuda, já
sabe a resposta! Como todo o herói tem o seu disfarce, usa uns óculos quase
colados ao rosto, para esbater as feições duras de guerreiro, em verdade, não
me passou despercebida a sua constante atenção à envolvência, como se em alerta
face a um possível ataque, tinha razão: estava em presença de um verdadeiro
Ninja, se, por acaso, Sábado ou Domingo, virem um filho a passear a mãe, pelo
bairro, escusam de perguntar se precisa de ajuda, porque não é Yang, o Ninja,
esse estará num lugar longínquo a lutar para termos um amanhã, e, sim, é
verdade, jamais “Plecisa” de ajuda…
domingo, 7 de julho de 2024
Lembras-te de quando…
Lembras-te de quando, já se percebia que o frio, lá fora,
pousara as malas, tu a chegares-te para juntinho de mim, a sugerires ternamente
Não me queres aquecer os pés, meados
de um Outubro ido, talvez Novembro, num Sábado de manhã, porventura Domingo,
ficávamos, não sei se te lembras, sempre até mais tarde deitados, a repor
sonos, depois de uma semana de loucos, custava-me tanto acordar cedo, menos do
que a ti, bem sei, mas custava-me à mesma, levantar apenas uma ponta do lençol
e logo a punhalada daquele frio da madrugada, que apenas acentuava um sonho
interrompido, enquanto, ainda sentado na cama, a procurar os chinelos, de olhos
fechados, com os pés no soalho escurecido, debruço-me sobre questões que sempre
viajaram comigo, o Sentido de tudo isto, o porquê de abraçar a contragosto o
frio da madrugada, virar costas a um sonho interrompido que me olha, numa
súplica de abandonado, da almofada que ainda ostenta a minha efígie, uma dezena
de minutos depois, mais ou menos, aparecias-me na cozinha, vestígios também de
almofada por uma das tuas faces, as palavras sucumbiam, à nascença, a gestos
mecânicos apressados, leite, torradas, café, acordavas depois as miúdas, pouco
antes de saíres, achava um disparate, mas sempre foste pródiga em argumentos Deixa-as dormir mais um pouco. Têm tanta
vida pela frente, para perceberem o frio do mundo. E, afinal, não sou eu que as
deixo, todos os dias, na escola? E lá as deixava, a salvo do frio, por mais
uns minutos, saía apressado, não sem antes me despedir, com a devida dignidade,
de ti, lá fora, como sempre sucede nesta altura do ano, ainda estrelas de um
lado, do outro, uns indícios alaranjados antecipam o irromper de algo, como se,
por aqueles lados do mundo, qualquer nova caminhasse ao nosso encontro, como se
por ali viesse o repouso para aquelas questões que sempre viajaram comigo, é
possível, até hoje, aqueles indícios alaranjados são apenas o prenúncio de uma
monótona sucessão do ontem, até que, certa tarde, não sei se te lembras, lá
fora as coisas já se teriam invertido, onde bem cedo indícios alaranjados agora
pontificavam umas quantas estrelas, onde ainda estrelas, neste momento,
despedidas alaranjadas, vens ao meu encontro, abraças-me, percebo, depois, uma
folha pela mão, pergunto-te, claro, o porquê da alegria, sem a ânsia natural se
te compreendesse tristeza pelo rosto, dizes-me, com um certo despudor, ao
relembrar-me ainda, em certos cantos de mim, a indignação, Entrei para a faculdade, confesso que tive de me sentar, as
questões sucediam-me e não lhes encontrava palavras para as materializar (Faculdade? O quê? Porquê? Quando te
inscreveste? De novo, porquê? Em que curso? Não disseste nada? Uma vez mais,
porquê?), demorou o seu tempo, como tudo nesta vida, mas lá me contaste, no
teu jeito tão lento, mas tão lento, que só propícia o meu exasperar, a
sugestão, no trabalho, de uma colega, a hipótese de ascenderes a um outro
cargo, consequente aumento salarial, não disseste nada porque, porque, era uma surpresa, disseste isto, não sei
se te lembras, abraçada a mim, eu olhei um canto distante de alcatifa, fechei
os olhos, e vi-te a mentira tão cobarde, era
uma surpresa, parabenizei-te, procurei, claro, maquilhar, naquele momento,
a convicção de uma mentira tão cobarde que encontrei, de olhos fechados, num
canto distante da alcatifa, no fundo, as coisas são tão simples, uma questão
elementar assaltou-me de imediato, se o resultado outro, na folha pela mão,
ter-me-ias contado? Essa variável, que tanto sopesaste, o orgulho, não é?
Sempre o orgulho, o receio de falhar, de deslustrar a já de si pálida imagem
que trazemos ao mundo em cada dia que por aqui andamos, como dizia, essa
variável foi o início do nosso desencontro, claro que assumo as minhas culpas,
senti-me traído, e que viravas costas àquele mundo que até ali construíramos,
foi, mais ou menos nessa altura, que aquela colega me pediu boleia, uma tarde
chuvosa de Abril, não sei se te lembras, telefonei-te a dizer que ia jantar ao
Armando para ver a bola com o resto do pessoal, ela bem mais nova que tu, a
confidenciar-me os receios dos primeiros passos no mundo laboral, não achas
curioso? Conhecia-me há tão pouco, e confidenciava-me receios, tu que vivias
comigo há tanto, ocultavas-me factos, sabes, em verdade, sempre soube do teu
jeito com as letras, antes deste hoje, de modernices, se ter instalado na nossa
vida, como se nunca tivesse havido um antes, lembro-me das longas cartas que
escrevias aos teus pais, apesar do telefonema semanal, regra geral, Sábado à
noite, fazias questão da carta, deixava-la na mesa da sala, antes do envelope,
e como eu gostava de ler aquelas palavras derramadas de ti, como se fosses uma
outra, dizias as coisas de um jeito que eu, cá à minha maneira, até conseguia
pensá-las, mas, lá está, não encontrava palavras para as materializar, no dia
em que te acenasse por uma qualquer janela, sabia que não lhe irias virar
costas, nem podias, afinal, com esse teu jeito para as letras terias muitas
cartas para escrever, e não só, como era regra geral, num Sábado à noite,
afastámo-nos, não fujo às minhas culpas, hoje até compreendo o porquê daquela
variável, talvez me quisesses dizer que, apesar do insistente acenar do teu
jeito para as letras, sempre que o frio, lá fora, pousasse as malas, tu
chegar-te-ias para juntinho de mim, a sugerires ternamente Não me queres aquecer os pés?