Livros do Escritor

Livros do Escritor

quinta-feira, 25 de julho de 2024

É preciso andar para a frente…



Um dia destes, nas notícias, relatavam um acidente, com vítimas mortais, durante um evento, para contextualizar, a jornalista lá resolveu entrevistar alguns dos participantes, retive os lugares-comuns e a boçalidade final de um: “Pois, é lamentável, muito triste, mesmo muito triste, não devia ter acontecido, mas é preciso andar para a frente,” o meu pensar sentou-se aquando e depois de ouvir (“… mas é preciso andar para a frente”), o que mais feriu os ouvidos, para não falar do sentir, foi, talvez, a naturalidade da entoação, onde se denotava algum entusiasmo, como se remetesse o sucedido para um lugar bem pretérito, onde nem a memória já conseguisse alcançar, sei há muito que, quando daqui partirmos, continuamos a respirar na memória daqueles que nos amam, no entanto, ao saber da partida de três seres-humanos, o boçal ardilosamente colocou o ênfase no futuro, desvalorizando por completo o presente que, no fundo, é um constante passado, enfim, a verdade é que, a cada dia, me revejo menos na realidade circundante, longe vão os tempos em que, quando se falava de partidas, olhos no chão e pesar pelas faces, por outras palavras, havia respeito, pois, hoje diz-se adeus com demasiada facilidade, ou muito me engano, ou chegará o dia em que muito poucos, raríssimos, conseguirão dialogar olhos-nos-olhos,   a verdade é que, a cada dia, me revejo menos na realidade circundante, Platão sempre esteve certo, desconhecia apenas que a caverna seria um rectângulo sofregamente sustido entre os dedos, uma palavra silenciada, uma frase reprimida, “Hoje não vale a pena, mais vale guardar para amanhã… Para que é que me vou aborrecer?”, o telefonema que não apetece atender, e depois é tarde… Um pouco como aquele familiar que sempre vamos adiando a visita, por este ou aquele motivo, tempo, sobretudo paciência, até que um dia só o vazio do espaço que ocupava, e essa ausência que nos ameaça engolir, afinal, a sua dimensão era bem maior que se julgava, equivalente à saudade que nos habita, ainda por aqui a imagem de um casal, viviam nos subúrbios, empregos atrás de secretárias, filhos na escola, primeiro ela, depois ele, uma inversão ao olhar paterno, tudo bem, a saúde é que importa, ao olhar materno, aquando férias regressavam às origens, por outras palavras, à aldeia que a viu nascer, ela é que norteava os passos familiares, ele limitava-se a segui-la, da melhor forma possível, na véspera de Natal, era vê-la sair do prédio, em primeiro, muito direita, com o seu vison contrafeito, a armação do cabelo, construída à custa de muitos litros de laca, imperturbável face a qualquer intempérie, os saltos-altos de um quase segundo-andar, a maquilhagem num excesso de palhaço-pobre, em segundo, lá vinha ele, curvado, numa luta titânica para arrastar duas malas de volumetria assinalável, um fato-coçado em vários pontos, uma gravata anacrónica, seguia-se-lhe a filha, fones nos ouvidos, rectângulo na mão, qualquer som dali emergia, tal a sua alienada expressão, pastilha na boca, o mascar conferia-lhe um desagradável e deselegante ar bovino, por fim, o filho, também se curvava por uma mala, o bom-senso de, dentro do possível, mitigar o esforço paterno, lá seguiam para a aldeia materna, ali chegados tudo se repetia, apenas o sentido se invertia, ela a primeira a sair do carro, muito direita, com o seu vison contrafeito, a armação do cabelo, construída à custa de muitos litros de laca, imperturbável face a qualquer intempérie, os saltos-altos de um quase segundo-andar, a maquilhagem num excesso de palhaço-pobre, em segundo, lá vinha ele, curvado, numa luta titânica para retirar duas malas, de volumetria assinalável, da bagageira, um fato-coçado em vários pontos, uma gravata anacrónica, seguia-se-lhe a filha, fones nos ouvidos, rectângulo na mão, qualquer som dali emergia, tal a sua alienada expressão, pastilha na boca, o mascar conferia-lhe um desagradável e deselegante ar bovino, por fim, o filho, que também se curvava, sobre a bagageira, por uma mala, o bom-senso de, dentro do possível, mitigar o esforço paterno, à porta os pais dela aguardavam-nos, a mãe sempre com uma expressão velada para a filha, só perante o genro e os netos se tornava solar e os gestos se  janela, o carro, repetia incessantemente que a filha não poderia ter realizado melhor casamento, ela é que norteava os passos familiares, repetia, com indisfarçável orgulho, aos mais próximos, quantos homens, após décadas de matrimónio, secundariam a mulher enquanto se digladiavam com duas robustas malas? Na Páscoa, tudo se repetia, no Verão igualmente, e os anos a sucederem-se, um dia, o filho vira-se para o pai e “Nunca vamos visitar a nossa avó-materna! Porquê?” Espanto pela face perante uma evidência tão crua, desde o casamento, de facto, como se costas para as suas origens e um irreversível amplexo pela família da mulher, quando, por acaso, lembrava ao tempo que não visitava sua mãe, o pai partira há muito, logo esta: “Para quê? A tua irmã está sempre lá metida! Ainda nos fazia sentir uns estranhos… E sabes bem como aquilo é longe! No Inverno é gelo, no Verão nem se consegue respirar… Um horror! Para quê lá ir? Falas com a tua mãezinha quase todos os meses. Não te esqueças de que ela sublinha bem a predilecção pelas filhinhas da tua irmã! Isso faz muito mal à cabeça dos miúdos…”, quando lhe relatou a questão do filho, ela limitou-se a: “Para quê? A tua irmã está sempre lá metida! Ainda nos fazia sentir uns estranhos… E sabes bem como aquilo é longe! No Inverno é gelo, no Verão nem se consegue respirar… Um horror! Para quê lá ir? Falas com a tua mãezinha quase todos os meses. Não te esqueças de que ela sublinha bem a predilecção pelas filhinhas da tua irmã! Isso faz muito mal à cabeça dos miúdos…”, que ninguém se esqueça do carácter irónico do tempo, um dos erros maiores na vida, foi numa manhã de Sábado, o telefone, foi a filha que atendeu, talvez de pastilha na boca, o mascar conferia-lhe um desagradável e deselegante ar bovino, a expressão, no entanto, ficou cinzenta, aproximou-se do pai “É a tia! Diz que precisa de falar urgentemente…”, um assomo de energia fê-lo levantar-se do sofá, a filha nem concluiu a frase, ele limitou-se a ouvir o que chegava do outro lado, não emitiu qualquer palavra, a sua expressão transparecia o sentir de alguém que sempre vai adiando a visita a um tão próximo familiar, por este ou aquele motivo, tempo, sobretudo paciência, influência do cônjuge, até que um dia só o vazio do espaço que ocupava, e essa ausência que o ameaça engolir, afinal, a sua dimensão era bem maior que se julgava, ela ladeou-o, talvez estivesse ao espelho, percebeu logo o sucedido, assim que ele desligou o telefone : “Pois, é lamentável, muito triste, mesmo muito triste, não devia ter acontecido, mas é preciso andar para a frente…”

domingo, 21 de julho de 2024

"Marketering"


 

Há uns tempos escrevi: “Aqui chegado, creio que só os simples são felizes”; a personagem que hoje vou abordar enquadra-se, de forma paradigmática, neste contexto, ficara muito aquém da escolaridade mínima – se bem que a escola jamais meça inteligências, apenas trabalho –, por conseguinte, vivia sob a asa dos pais, que eram donos de uma oficina, cedo aprendeu aquele sublime léxico (bielas, pistom, escape, correia-de-transmissão, pastilhas-de-travão…) digno de qualquer profuso pensador, em verdade quem lhe estendia mais a asa era a mãe que, como para os livros prematuramente revelou total inépcia, logo o colocou na oficina, havia que providenciar a sucessão, e como o léxico era vasto (bielas, pistom, escape, correia-de-transmissão, pastilhas-de-travão…) tinha de apreendê-lo o mais cedo possível, o pai era mais exigente e afastado, todo o cabelo lhe fugira para o lábio-superior, e como se orgulhava daquela vasta bigodaça, certa tarde, não me recordo o motivo, tive de lhes bater à porta, estavam os três à mesa, pai, mãe e filho, mais comovente é impossível, da bigodaça paterna pingava azeite, chafurdava um prato de bacalhau, assim que me viu: “Então patrão, o que o traz por cá? É servido?” Na presença do pai, o filho esvaziava-se, impossível este pormenor passar despercebido a quem soubesse olhar, não por acaso, talvez para se arrogar de que conseguia ir além da esfera paterna, veio com a notícia de ir simultaneamente trabalhar numa outra área, quando se lhe perguntou qual, respondeu com uma pérola que até hoje guardo ciosamente: “Uma cena qualquer ligada ao marketering..”; risos ou lágrimas? Pois, a realidade em suspenso: risos ou lágrimas? E afirmou-o com a naturalidade de quem sabe do que fala, os seus horizontes cingiam-se à moto, ginásio, bebedeiras, namorada, e, por imperativo de sobrevivência, claro, a oficina, não lhe saíam três frases seguidas sem afirmar a sua masculinidade, regra geral, no uso dos punhos ou ameaça de os utilizar, longas epopeias, como sempre acontece quando a garganta é inversamente proporcional aos factos, até que, repentinamente, a namorada troca-o por outro, um acontecimento assim não é filho do instante, há muito tudo se jogava nos bastidores, e o “trocado”, pois, é sempre o último a saber, neste ponto, confesso que fiquei apreensivo com a saúde do sujeito que era agora titular do coração da sua ex, todavia, ele limitou-se às lamúrias, lágrimas e nada mais, dias transformaram-se em semanas, semanas em meses, meses em trimestres, e somente, da sua parte, lamúrias, lágrimas e nada mais, neste ponto da caminhada seguimos por vias distintas, registei apenas o facto de que, numa situação-limite, afinal, no lugar de punhos ou ameaça de os utilizar, limitou-se às lamúrias, lágrimas e nada mais, por norma a garganta é inversamente proporcional aos factos, ainda me recordo, como sempre acontece na tribo das motos, ou em qualquer outra, o rito assume sempre um papel-central, quando alguém chegava com uma nova, todos se imobilizavam em redor a observar, como devotos diante de um altar, em silêncio, devoção, deleite, espanto, passado algum tempo, começavam a andar em redor, como se romaria, as cabeças em gestos verticais de anuência, como nunca professei esta religião, por respeito, recuava uns passos e observava este rito de uma segura distância, meia-dúzia ou mais sujeitos a olhar boquiabertos e atónitos para um veículo, algo me escapava, felizmente continua a escapar, foi mais ou menos nesta altura que comecei a intuir o facto de a estupidez ter sido tão generosamente distribuída entre os homens, e o silêncio caído enquanto se imobilizavam em redor a observar, como devotos diante de um altar, pois, graças a Deus há horizontes que me foram sempre vedados, ele cumpria este rito com total abnegação, andar em redor, como se em romaria, a cabeça em gestos verticais de anuência, não nos podemos esquecer de que já estaria muito à frente para o seu tempo, não fosse um especialista em “marketering”, a última vez que o vi foi no meu local de trabalho, deslocara-se lá para resolver uma questão com o filho, como não o deixavam entrar berrava e gesticulava, quando me viu lá se acalmou, perguntei-lhe qual era o problema, aos berros respondeu-me, a apontar para a funcionária, “Aquela grande P… não me deixa entrar!”, lá o encaminhei e cessou o brado, naqueles breves instantes, senti proximidade e uma enormíssima distância com esta personagem, houve um ponto da caminhada em que seguimos por vias distintas, este facto é irreversível e dita muito de quem somos e sobretudo de quem fomos, por acaso esqueci-me de lhe perguntar se ainda está ligado ao “marketering”, se me revestir de paciência talvez, numa destas tardes, lhe bata à porta, e encontre os três à mesa, pai, mãe e filho, mais comovente é impossível, da bigodaça paterna pingue azeite, possivelmente chafurde um prato de bacalhau, e assim que me vir: “Então patrão, o que o traz por cá? É servido?”


quinta-feira, 18 de julho de 2024


 

,,, a inteligência é uma maldição, talvez por iluminar a mediocridade, o mais próspero deste mundo...

in O lento esvoaçar das cortinas pela manhã

quarta-feira, 17 de julho de 2024

Esparsos

 


Viver é subtrair o futuro e adicionar passado, por muitas teorias contrárias, deste facto ninguém me demove, e é no passado que respiram alguns vultos que hoje vão ocupar estas linhas, em verdade, há muito o mereciam, é sabido que o tempo é o melhor juiz: dissipa todas as dúvidas de quem nos guiou para a luz ou procurou anoitecer-nos o viver; há quem faça a apologia de não haver acasos nesta coisa do viver, já caminhei mais distante desta máxima, se todos, com quem nos cruzamos, desempenham um papel na nossa caminhada, naturalmente o oposto também sucede, eu sempre fui detentor de um lado melancólico de olhar o ido, talvez por aí resida a génese deste hábito de juntar palavras, de lhes dar musicalidade, construir enredos, contar histórias, as personagens que, de seguida, vou iluminar, ainda hoje me fazem sorrir, não é tudo, porém nos antípodas de ser o pouco, demasiados ficam tão aquém deste desígnio, frequentávamos o mesmo espaço desportivo com a intenção de sermos os futuros Schwarzenegger, um dos donos era como se pai de todos, ouvia, aconselhava, corrigia, enfim, todas as incumbências da paternidade, certa tarde, ouço alguém, em jeito de proclamação, dizer-lhe: “Ontem virei-me para os meus pais e disse-lhes: pai e mãe: vou deixar de estudar porque tenho de treinar mais… Ando a crescer pouco!”; tudo por ali ficou em suspenso à espera da reacção do nosso guia-espiritual (um dos donos era como se pai de todos, ouvia, aconselhava, corrigia, enfim, todas as incumbências da paternidade), a mão pelo cabelo e o olhar no chão indiciaram-me desespero, ergueu o rosto e questionou: “E o que disseram os teus pais?”, claro que a mão pelo cabelo e o olhar no chão passaram despercebidos ao sujeito, continuou a sua narrativa: “O que disseram? Ameaçaram-me: se deixas de estudar, podes ir trabalhar! E fui mesmo: deixei a escola e fui trabalhar para uma obra!”, fez-se, de novo, silêncio, talvez o mesmo raciocínio pairasse pelos espíritos ali presentes: então, se queria crescer, o mais avisado não seria trabalhar nas obras…  O silêncio permaneceu, tal como uma mão pelo cabelo e um olhar no chão, para o miúdo que era, e felizmente sou, aquilo afigurou-se-me uma epifania: “Ontem virei-me para os meus pais e disse-lhes: pai e mãe: vou deixar de estudar porque tenho de treinar mais… Ando a crescer pouco!” Nem a minha imaginação conseguia visualizar tal, não me lembro de, nessa tarde, o nosso guia-espiritual articular uma frase, somente a mão pelo cabelo e o olhar no chão, este sujeito, na altura, também me apresentou o revendedor de marcas de suplementos norte-americanas de prestígio, lá íamos, que nem peregrinos, ao seu armazém adquiri-las, aqui dá-se-lhe a segunda epifania: como podem constatar, ainda a preservo ciosamente: vira-se para o revendedor e: “Ouve lá, Rui, um dia destes tens de me deixar dormir aqui… Só de inspirar este ar, sinto-me a crescer!” Conciso, sintético, profundo, reparei no ar abismado do revendedor, ainda permaneceu uns instantes boquiaberto, também não me recordo de, nessa tarde, articular mais frases, e como era pródigo de verbo, eu, pelo contrário, compreendi estar perante um visionário: “Ouve lá, Rui, um dia destes tens de me deixar dormir aqui… Só de inspirar este ar, sinto-me a crescer!” Tempos depois, cruzei-me com esta personagem, ia de fato, com um aspecto gasto, sublinhe-se, uma malinha na mão, apanhar o comboio, trabalhava numa sucursal-bancária, trocámos frases breves e apressadas, confesso o meu desgosto pela sua capitulação, nada lhe disse, diante de mim era um outro, longe, tão longe, daquele que, certa tarde, proclamou: “Ontem virei-me para os meus pais e disse-lhes: pai e mãe: vou deixar de estudar porque tenho de treinar mais… Ando a crescer pouco!” Num canto de mim, alimentou-se a esperança de que, talvez no seu regresso, da sucursal-bancária, o Rui lhe abrisse o portão, de um certo armazém, para o deixar dormir, Só de inspirar este ar, sinto-me a crescer!” É possível, ou talvez a ferocidade da vida lhe tenha destruído os sonhos do ontem, creio que o meu desgosto, em verdade, se deva ao funeral de mais um sonho: o mundo ganhou um céptico e perdeu um sonhador – mau prenúncio para o amanhã! Hoje também vou revelar como a Filosofia entrou na minha vida: foi exactamente nesse espaço desportivo que frequentávamos, com a intenção de sermos os futuros Schwarzenegger, entre pegar e largar barras ou halteres, recuperar o fôlego, olho um rosto bastante familiar por ali, estava noutro aparelho, sorri e diz-me: “Um gajo tem é de lhe dar!” Assim, do nada, de repente, outra epifania diante de mim, “Um gajo tem é de lhe dar!” – como podia fugir do mundo da Filosofia?! Eu já lá morava sem saber, este sujeito tinha a alcunha de Nubret, pela semelhança com o conhecido culturista francês, também havia quem o chamasse de O Africano, introvertido, calmo, concentrado no treino, reunia as características inatas de um herói, agora adicionava as de um pensador: “Um gajo tem é de lhe dar!” Alguém que pratica desporto já ouviu melhor conselho? Pois, então silêncio perante esta erudição, e, em verdade, isto não se cinge só ao desporto, é extensível à própria vida (“Um gajo tem é de lhe dar!”), sublime, como veem, ainda perdura em mim, em nenhum outro espaço me voltei a cruzar com personagens assim e muito menos com máximas ou conselhos tão profundos, se alguma noite me virem a bater num portão, não se preocupem, estou à espera que o Rui abra para ali pernoitar, não sei porquê, mas “Só de inspirar este ar, sinto-me a crescer!”

domingo, 14 de julho de 2024

Capitulação


 

Os serões pouco divergiam, ele, no sofá, de rosto oculto, pelo jornal, para que ela não percebesse a chegada do sono, por seu turno, ela num ávido e galopante tricotar, uma ferocidade crescente, o olhar absorvido pela trama da telenovela com aquele peculiar sotaque de terras além-mar, volta e meia, resmungava-lhe “Não me digas que já estás a dormir! Acorda, homem! Vê bem ao ponto que chegaste…”, com tanto barulho, lá se vê forçado a regressar à sua circunstância, ao metálico embater das agulhas e ao rectângulo onde se desenrola uma trama com aquele peculiar sotaque de terras além-mar, olha-a da distância do seu sono, imensa por sinal, as mãos frenéticas, num ávido e galopante tricotar, uma ferocidade crescente, o olhar absorvido pela trama da telenovela com aquele peculiar sotaque de terras além-mar, por momentos, breves mesmo, pensou regressar ao seu sono, mas receou aquele brado de novo “Não me digas que já estás a dormir! Acorda, homem! Vê bem ao ponto que chegaste…”, assim sendo, fingiu interesse pelo que se desenrolava no rectangular écran, enquanto ela lhe debitava as mais recentes ocorrências, pelo menos duas vezes por semana desaguava naquela sala uma conhecida – sempre considerei a palavra “amiga” rara e preciosa –, o marido, nesses dois serões, juntava-se a um coro-litúrgico, enfim, há quem fuja de si por uma vida inteira, e, no caso desse sujeito, não se visualizava a mínima aptidão para o canto, pois, há quem fuja de si por uma vida inteira, e como são demasiado plurais os exemplos, para não passar esses dois serões sozinhas, esta conhecida optava por ali desaguar, e era só atravessar a rua, ao menos, enquanto as duas conversavam, aquele brado não regressava (“Não me digas que já estás a dormir! Acorda, homem! Vê bem ao ponto que chegaste…”), há quanto os serões, por ali, não divergiam? A um olhar exterior, pareciam náufragos, a partilhar um destroço, ao sabor da corrente, sem qualquer assomo de volição face ao acontecer, ternura e repulsa entrecruzavam-se perante tal cenário, será este o destino, com o tempo, de qualquer casal? Ela absorvida pela trama de uma telenovela com aquele peculiar sotaque de terras além-mar, num ávido e galopante tricotar, uma ferocidade crescente, chega-se a um ponto da existência em que já nada se espera, sabe-se que o amanhã apenas mais um ontem, é dos momentos mais dolorosos desta caminhada (sabe-se que o amanhã apenas mais um ontem), cada um enfrenta este facto como pode: uns fogem-lhe, pela alienação,  mediante a sua circunstância (jogo, bebida, viagens, muitos, por incrível que pareça, pelo trabalho, mais frustrante não pode haver… E são tantos!), outros, pela Arte, procuram redescobrir o Sentido, ainda há os que buscam, de forma desesperada, trazer o ontem ao hoje, um equívoco, sem dúvida, as coisas nunca ficam onde as deixámos, mas é sempre uma tentativa de o amanhã diferir do hoje, por fim, há os que se colocam na plateia para assistir a algo que os relembre quem foram, ela caminhava entre estes últimos, absorvida pela trama de uma telenovela com aquele peculiar sotaque de terras além-mar, num ávido e galopante tricotar, uma ferocidade crescente, por ali, entre amores e desamores, visualizava a centelha de algo, no fundo, de um ontem, longínquo, tão longínquo, de dois náufragos, a partilhar um destroço, ao sabor da corrente, sem qualquer assomo de volição face ao acontecer, nem a chegada da conhecida, duas vezes por semana, a fazia refrear o embate metálico das agulhas, e, muito menos, esbater a avidez do olhar pela trama no écran rectangular, a conhecida tinha facilidade em se ajustar aos contextos, era ela que batia à porta, procurava transparecer interesse, pela trama da telenovela com aquele peculiar sotaque de terras além-mar, através de observações, em verdade, eram mais perguntas para se situar na acção, as agulhas respondiam energicamente, não fosse aquele um dos seus espelhos de eleição (há os que se colocam na plateia para assistir a algo que os relembre quem foram), pouco mais de duas horas depois, duas vezes por semana, de a conhecida bater à porta, era o marido, vindo do coro-litúrgico, a soar a campainha, entre outros complexos, o sujeito padecia de gaguez, e havia nele uma irreprimível ânsia de transparecer mais cultura do que efectivamente cabia na sua divisória craniana, além, claro, de uma total ausência de vocação para o canto, embora tal facto não o coibisse de frequentar o coro-litúrgico, os dois náufragos saudaram-no da sua circunstância, as agulhas mantiveram a sua cadência, o olhar nem se desviou do desenrolar da trama, quanto ao jornal lá continuou sobre a barriga refém das subidas e descidas do diafragma, palavras de ocasião, a conhecida feliz pela iminente partida, embora um olhito já capturado pela trama da telenovela com aquele peculiar sotaque de terras além-mar, assim que a porta se fechou, as agulhas mantiveram o seu frenético ritmo, ele, porém, capitulara à consciência de que o amanhã apenas mais um ontem.

sábado, 13 de julho de 2024

 


... aqueles braços que se estendem para um berço como ramagens, num dia de Verão, a ofertarem a paz de uma revigorante sombra...

in O lento esvoaçar das cortinas pela manhã


segunda-feira, 8 de julho de 2024

“Não plecisa de ajuda”

 


Ainda por aqui a imagem da primeira vez que o vi, ninguém lhe podia ficar indiferente, realizava, num contexto propício a tal, um exercício cujo movimento ficava a meio, e a seguir outro, mais outro, todos os movimentos pela metade, ou talvez fosse uma outra coisa, pois, a verdade é esta, percebi, assim que o vi, estar na presença de um verdadeiro Ninja, claro que executava os movimentos correctamente, a nossa visão é que estava sempre aquém da sua velocidade, a realidade era esta, sim, sem dúvida, chama-se Yang, o nosso Ninja, quando algum incauto o procurava corrigir, o nosso herói, de poucas falas como todos os grandes ícones do mundo da acção, limitava-se a responder, de forma quase sumida, “Não plecisa de ajuda”, elementar, conciso, pragmático, como um Ninja conseguiria explicar, a um simples mortal, que o olhar comum está aquém da sua velocidade de movimentos? Levantou-se-me logo, vinda da memória, a canção do genérico de uma série de infância, nem por acaso sobre heróis de Shaolin, agora, à minha frente, ali estava um, afinal eram reais, as más-línguas diziam que trabalhava num desses armazéns que alimentam as lojas das suas gentes, duvido muito, a maledicência não tem limites, e que vivia com a mãe, imagine-se: um verdadeiro Ninja a trabalhar num armazém que alimenta lojas orientais e a viver com a mãe?! Onde já se viu tal??? Obviamente tudo falsidades, é recrutado para missões-secretas de alto-risco e quando regressa tem, à sua espera, o leito de múltiplas pretendentes, a nossa visão é que estava sempre aquém da sua velocidade, a realidade era esta, o destino, esse incógnito que, volta-e-meia, gosta de nos relembrar a sua existência, forçou-o a ir treinar para outro espaço, ali chegado pagou uma anuidade, como era seu hábito, e em notas, às habituais e inconvenientes questões (“Quer factura? Precisa de recibo? Tem a certeza de que não quer?) limitava-se a repetir, de forma quase sumida, “Não plecisa…”, lesto a virar-costas e seguir o seu caminho, lá foi para a sala-de-exercícios espalhar a sua magia, claro que, por ali, também não estavam preparados para assistir aos treinos de um Ninja,  a nossa visão estava sempre aquém da sua velocidade, não tardou muito para que os incautos profissionais se aproximassem em tentativas de o corrigir, já um pouco desgastado, o nosso Ninja, num tom sem réplica, “Não plecisa de ajuda… “Não plecisa de ajuda…”, e assim continuava a sua saga, de exercícios pela metade, apenas uma ilusão de óptica para o nosso desarmado olhar, perante este tom sem réplica, ninguém ousava contra-argumentar, todos se afastavam para dar largas à maledicência, coitados, ignoravam o essencial: que a nossa visão estava sempre aquém da sua velocidade; houve quem o visse, de noite, à janela de sua casa, a vigiar o armazém, do outro lado da rua… Mentira! Estaria à espera da sua próxima missão, talvez fosse num longínquo ponto do mundo, nem dariam pela sua entrada quanto mais da sua saída, como era possível, de um Ninja, afirmar que, aos fins-de-semana, se limitava a uns passeios, pelo bairro, com a mãe?! Não, não pode ser, não acredito, é o cúmulo da maledicência, Yang, o Ninja, seja em dia for, ou está a salvar o mundo de um qualquer inimigo da humanidade ou a preparar-se para tal, e não se preocupem, se alguém lhe perguntar se precisa de ajuda, já sabe a resposta! Como todo o herói tem o seu disfarce, usa uns óculos quase colados ao rosto, para esbater as feições duras de guerreiro, em verdade, não me passou despercebida a sua constante atenção à envolvência, como se em alerta face a um possível ataque, tinha razão: estava em presença de um verdadeiro Ninja, se, por acaso, Sábado ou Domingo, virem um filho a passear a mãe, pelo bairro, escusam de perguntar se precisa de ajuda, porque não é Yang, o Ninja, esse estará num lugar longínquo a lutar para termos um amanhã, e, sim, é verdade, jamais “Plecisa” de ajuda…

domingo, 7 de julho de 2024

Lembras-te de quando…

 



Lembras-te de quando, já se percebia que o frio, lá fora, pousara as malas, tu a chegares-te para juntinho de mim, a sugerires ternamente Não me queres aquecer os pés, meados de um Outubro ido, talvez Novembro, num Sábado de manhã, porventura Domingo, ficávamos, não sei se te lembras, sempre até mais tarde deitados, a repor sonos, depois de uma semana de loucos, custava-me tanto acordar cedo, menos do que a ti, bem sei, mas custava-me à mesma, levantar apenas uma ponta do lençol e logo a punhalada daquele frio da madrugada, que apenas acentuava um sonho interrompido, enquanto, ainda sentado na cama, a procurar os chinelos, de olhos fechados, com os pés no soalho escurecido, debruço-me sobre questões que sempre viajaram comigo, o Sentido de tudo isto, o porquê de abraçar a contragosto o frio da madrugada, virar costas a um sonho interrompido que me olha, numa súplica de abandonado, da almofada que ainda ostenta a minha efígie, uma dezena de minutos depois, mais ou menos, aparecias-me na cozinha, vestígios também de almofada por uma das tuas faces, as palavras sucumbiam, à nascença, a gestos mecânicos apressados, leite, torradas, café, acordavas depois as miúdas, pouco antes de saíres, achava um disparate, mas sempre foste pródiga em argumentos Deixa-as dormir mais um pouco. Têm tanta vida pela frente, para perceberem o frio do mundo. E, afinal, não sou eu que as deixo, todos os dias, na escola? E lá as deixava, a salvo do frio, por mais uns minutos, saía apressado, não sem antes me despedir, com a devida dignidade, de ti, lá fora, como sempre sucede nesta altura do ano, ainda estrelas de um lado, do outro, uns indícios alaranjados antecipam o irromper de algo, como se, por aqueles lados do mundo, qualquer nova caminhasse ao nosso encontro, como se por ali viesse o repouso para aquelas questões que sempre viajaram comigo, é possível, até hoje, aqueles indícios alaranjados são apenas o prenúncio de uma monótona sucessão do ontem, até que, certa tarde, não sei se te lembras, lá fora as coisas já se teriam invertido, onde bem cedo indícios alaranjados agora pontificavam umas quantas estrelas, onde ainda estrelas, neste momento, despedidas alaranjadas, vens ao meu encontro, abraças-me, percebo, depois, uma folha pela mão, pergunto-te, claro, o porquê da alegria, sem a ânsia natural se te compreendesse tristeza pelo rosto, dizes-me, com um certo despudor, ao relembrar-me ainda, em certos cantos de mim, a indignação, Entrei para a faculdade, confesso que tive de me sentar, as questões sucediam-me e não lhes encontrava palavras para as materializar (Faculdade? O quê? Porquê? Quando te inscreveste? De novo, porquê? Em que curso? Não disseste nada? Uma vez mais, porquê?), demorou o seu tempo, como tudo nesta vida, mas lá me contaste, no teu jeito tão lento, mas tão lento, que só propícia o meu exasperar, a sugestão, no trabalho, de uma colega, a hipótese de ascenderes a um outro cargo, consequente aumento salarial, não disseste nada porque, porque, era uma surpresa, disseste isto, não sei se te lembras, abraçada a mim, eu olhei um canto distante de alcatifa, fechei os olhos, e vi-te a mentira tão cobarde, era uma surpresa, parabenizei-te, procurei, claro, maquilhar, naquele momento, a convicção de uma mentira tão cobarde que encontrei, de olhos fechados, num canto distante da alcatifa, no fundo, as coisas são tão simples, uma questão elementar assaltou-me de imediato, se o resultado outro, na folha pela mão, ter-me-ias contado? Essa variável, que tanto sopesaste, o orgulho, não é? Sempre o orgulho, o receio de falhar, de deslustrar a já de si pálida imagem que trazemos ao mundo em cada dia que por aqui andamos, como dizia, essa variável foi o início do nosso desencontro, claro que assumo as minhas culpas, senti-me traído, e que viravas costas àquele mundo que até ali construíramos, foi, mais ou menos nessa altura, que aquela colega me pediu boleia, uma tarde chuvosa de Abril, não sei se te lembras, telefonei-te a dizer que ia jantar ao Armando para ver a bola com o resto do pessoal, ela bem mais nova que tu, a confidenciar-me os receios dos primeiros passos no mundo laboral, não achas curioso? Conhecia-me há tão pouco, e confidenciava-me receios, tu que vivias comigo há tanto, ocultavas-me factos, sabes, em verdade, sempre soube do teu jeito com as letras, antes deste hoje, de modernices, se ter instalado na nossa vida, como se nunca tivesse havido um antes, lembro-me das longas cartas que escrevias aos teus pais, apesar do telefonema semanal, regra geral, Sábado à noite, fazias questão da carta, deixava-la na mesa da sala, antes do envelope, e como eu gostava de ler aquelas palavras derramadas de ti, como se fosses uma outra, dizias as coisas de um jeito que eu, cá à minha maneira, até conseguia pensá-las, mas, lá está, não encontrava palavras para as materializar, no dia em que te acenasse por uma qualquer janela, sabia que não lhe irias virar costas, nem podias, afinal, com esse teu jeito para as letras terias muitas cartas para escrever, e não só, como era regra geral, num Sábado à noite, afastámo-nos, não fujo às minhas culpas, hoje até compreendo o porquê daquela variável, talvez me quisesses dizer que, apesar do insistente acenar do teu jeito para as letras, sempre que o frio, lá fora, pousasse as malas, tu chegar-te-ias para juntinho de mim, a sugerires ternamente Não me queres aquecer os pés?

quinta-feira, 4 de julho de 2024


 

O nosso cansaço das coisas é proporcional às ilusões que carregamos.

in O lento esvoaçar das cortinas pela manhã

terça-feira, 2 de julho de 2024


 

... nem a mais singular e minúscula fibra-muscular estava imune a esta dor que me consumia corpo e alma, e assim relembrei a maldição de estar apaixonado: simultaneamente o melhor e o pior do mundo!

in O lento esvoaçar das cortinas pela manhã