Há
uns tempos escrevi: “Aqui
chegado, creio que só os simples são felizes”; a personagem que hoje vou abordar enquadra-se, de
forma paradigmática, neste contexto, ficara muito aquém da escolaridade mínima
– se bem que a escola jamais meça inteligências, apenas trabalho –, por
conseguinte, vivia sob a asa dos pais, que eram donos de uma oficina, cedo
aprendeu aquele sublime léxico (bielas, pistom, escape,
correia-de-transmissão, pastilhas-de-travão…) digno de qualquer profuso
pensador, em verdade quem lhe
estendia mais a asa era a mãe que, como para os livros prematuramente revelou
total inépcia, logo o colocou na oficina, havia que providenciar a sucessão, e
como o léxico era vasto
(bielas, pistom, escape, correia-de-transmissão, pastilhas-de-travão…) tinha de
apreendê-lo o mais cedo possível, o pai era mais exigente e afastado, todo o
cabelo lhe fugira para o lábio-superior, e como se orgulhava daquela vasta
bigodaça, certa tarde, não me recordo o motivo, tive de lhes bater à porta,
estavam os três à mesa, pai, mãe e filho, mais
comovente é impossível, da bigodaça paterna pingava azeite, chafurdava um prato
de bacalhau, assim que me viu: “Então patrão, o que o traz por
cá? É servido?” Na presença do pai, o filho
esvaziava-se, impossível este pormenor passar despercebido a quem soubesse
olhar, não por acaso, talvez para se arrogar de que conseguia ir além da esfera
paterna, veio com a notícia de ir simultaneamente trabalhar numa outra área,
quando se lhe perguntou qual, respondeu com uma pérola que até hoje guardo
ciosamente: “Uma cena qualquer ligada ao marketering..”; risos ou lágrimas? Pois, a
realidade em suspenso: risos ou lágrimas? E afirmou-o com a naturalidade de
quem sabe do que fala, os seus horizontes cingiam-se à moto, ginásio,
bebedeiras, namorada, e, por imperativo de sobrevivência, claro, a oficina, não
lhe saíam três frases seguidas sem afirmar a sua masculinidade, regra geral, no
uso dos punhos ou ameaça de os utilizar, longas
epopeias, como sempre acontece quando a garganta é
inversamente proporcional aos factos, até que, repentinamente, a namorada
troca-o por outro, um acontecimento assim não é filho do instante, há muito
tudo se jogava nos bastidores, e o “trocado”, pois, é sempre o último a saber, neste
ponto, confesso que fiquei apreensivo com a saúde do sujeito que era agora
titular do coração da sua ex, todavia, ele limitou-se
às lamúrias,
lágrimas e nada mais, dias
transformaram-se em semanas, semanas em meses, meses em trimestres, e somente,
da sua parte, lamúrias, lágrimas e nada mais, neste ponto
da caminhada seguimos por vias distintas, registei apenas o facto de que,
numa situação-limite, afinal, no lugar de punhos ou ameaça de os utilizar, limitou-se
às lamúrias, lágrimas e nada mais, por norma a garganta é inversamente
proporcional aos factos, ainda me recordo, como sempre acontece na tribo das
motos, ou em qualquer outra, o rito assume sempre um papel-central, quando
alguém chegava com uma nova, todos se imobilizavam em
redor a observar, como devotos diante de um altar, em silêncio, devoção,
deleite, espanto, passado algum tempo, começavam a andar
em redor, como se romaria, as cabeças em gestos verticais de anuência, como
nunca professei esta religião, por respeito, recuava uns passos e observava
este rito de uma segura distância, meia-dúzia ou mais sujeitos a olhar
boquiabertos e atónitos para um veículo, algo me escapava, felizmente continua
a escapar, foi mais ou menos nesta altura que comecei a intuir o facto de a
estupidez ter sido tão generosamente distribuída entre os homens, e o silêncio caído
enquanto se imobilizavam em redor a observar, como devotos diante de um altar, pois,
graças a Deus há horizontes que me foram sempre vedados, ele cumpria este rito
com total abnegação, andar em redor, como se em romaria, a cabeça em gestos
verticais de anuência, não nos podemos esquecer de que já estaria muito à
frente para o seu tempo, não fosse um especialista em “marketering”, a última vez que o vi foi no
meu local de trabalho, deslocara-se lá para resolver uma questão com o filho,
como não o deixavam entrar berrava e gesticulava, quando me viu lá se acalmou,
perguntei-lhe qual era o problema, aos berros respondeu-me, a apontar para a
funcionária, “Aquela grande P… não me deixa entrar!”, lá o encaminhei e cessou o
brado, naqueles breves instantes, senti proximidade e uma enormíssima distância
com esta personagem, houve um ponto da caminhada em que seguimos por vias
distintas, este facto é irreversível e dita muito de quem somos e sobretudo de
quem fomos, por acaso esqueci-me de lhe perguntar se ainda está ligado ao “marketering”, se me revestir de paciência
talvez, numa destas tardes, lhe bata à porta, e encontre os três à mesa, pai,
mãe e filho, mais comovente é impossível, da bigodaça paterna pingue azeite, possivelmente
chafurde um prato de bacalhau, e assim que me vir: “Então patrão, o que o traz por
cá? É servido?”

Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.