Viver é subtrair o futuro e adicionar
passado, por muitas teorias contrárias, deste facto ninguém me demove, e é no
passado que respiram alguns vultos que hoje vão ocupar estas linhas, em
verdade, há muito o mereciam, é sabido que o tempo é o melhor juiz: dissipa
todas as dúvidas de quem nos guiou para a luz ou procurou anoitecer-nos o viver;
há quem faça a apologia de não haver acasos nesta coisa do viver, já caminhei
mais distante desta máxima, se todos, com quem nos cruzamos, desempenham um
papel na nossa caminhada, naturalmente o oposto também sucede, eu sempre fui
detentor de um lado melancólico de olhar o ido, talvez por aí resida a génese deste
hábito de juntar palavras, de lhes dar musicalidade, construir enredos, contar
histórias, as personagens que, de seguida, vou iluminar, ainda hoje me fazem
sorrir, não é tudo, porém nos antípodas de ser o pouco, demasiados ficam tão
aquém deste desígnio, frequentávamos o mesmo espaço desportivo com a intenção de sermos os futuros Schwarzenegger, um dos donos era como se pai de todos, ouvia, aconselhava,
corrigia, enfim, todas as incumbências da paternidade, certa tarde, ouço
alguém, em jeito de proclamação, dizer-lhe: “Ontem virei-me para os meus pais e
disse-lhes: pai e mãe: vou deixar de estudar porque tenho de treinar mais… Ando
a crescer pouco!”; tudo
por ali ficou em suspenso à espera da reacção do nosso guia-espiritual (um dos
donos era como se pai de todos, ouvia, aconselhava, corrigia, enfim, todas as
incumbências da paternidade), a mão pelo cabelo e o
olhar no chão indiciaram-me desespero, ergueu o rosto e questionou: “E
o que disseram os teus pais?”, claro que a mão pelo cabelo e
o olhar no chão passaram
despercebidos ao sujeito, continuou a sua narrativa: “O que disseram?
Ameaçaram-me: se deixas de estudar, podes ir trabalhar! E fui mesmo: deixei a
escola e fui trabalhar para uma obra!”, fez-se, de novo, silêncio, talvez o
mesmo raciocínio pairasse pelos espíritos ali presentes: então, se queria
crescer, o mais avisado não seria trabalhar nas obras… O silêncio permaneceu, tal como uma mão pelo
cabelo e um olhar no chão, para o miúdo que era, e felizmente sou, aquilo
afigurou-se-me uma epifania: “Ontem virei-me para os meus pais e
disse-lhes: pai e mãe: vou deixar de estudar porque tenho de treinar mais… Ando
a crescer pouco!” Nem a minha imaginação conseguia visualizar tal,
não me lembro de, nessa tarde, o nosso
guia-espiritual articular uma frase, somente a mão pelo cabelo e o olhar no
chão, este sujeito, na altura, também me apresentou o revendedor de marcas de
suplementos norte-americanas de prestígio, lá íamos, que nem peregrinos, ao seu
armazém adquiri-las, aqui dá-se-lhe a segunda epifania: como podem constatar,
ainda a preservo ciosamente: vira-se para o revendedor e: “Ouve lá, Rui, um dia destes tens de me deixar dormir
aqui… Só
de inspirar este ar, sinto-me a crescer!” Conciso, sintético,
profundo, reparei no ar abismado do revendedor, ainda permaneceu uns instantes
boquiaberto, também não me recordo de, nessa tarde, articular mais frases, e
como era pródigo de verbo, eu, pelo contrário, compreendi estar perante um
visionário: “Ouve lá, Rui, um dia destes tens de me deixar dormir aqui… Só
de inspirar este ar, sinto-me a crescer!” Tempos depois, cruzei-me com esta
personagem, ia de fato, com um aspecto gasto, sublinhe-se, uma malinha na mão,
apanhar o comboio, trabalhava numa sucursal-bancária, trocámos frases breves e
apressadas, confesso o meu desgosto pela sua capitulação, nada lhe disse,
diante de mim era um outro, longe, tão longe, daquele que, certa tarde,
proclamou: “Ontem virei-me para os meus pais e disse-lhes: pai e mãe: vou
deixar de estudar porque tenho de treinar mais… Ando a crescer pouco!” Num
canto de mim, alimentou-se a esperança de que, talvez no seu regresso, da
sucursal-bancária, o Rui lhe abrisse o portão, de um certo armazém, para o
deixar dormir, “Só
de inspirar este ar, sinto-me a crescer!” É possível, ou talvez a
ferocidade da vida lhe tenha destruído os sonhos do ontem, creio que o meu
desgosto, em verdade, se deva ao funeral de mais um sonho: o mundo ganhou um
céptico e perdeu um sonhador – mau prenúncio para o amanhã! Hoje também vou revelar
como a Filosofia entrou na minha vida: foi exactamente nesse espaço desportivo
que frequentávamos, com a intenção de sermos os futuros Schwarzenegger, entre
pegar e largar barras ou halteres, recuperar o fôlego, olho um rosto bastante
familiar por ali, estava noutro aparelho, sorri e diz-me: “Um gajo tem é de
lhe dar!” Assim, do nada, de repente, outra epifania diante de mim, “Um
gajo tem é de lhe dar!” – como podia fugir do mundo da Filosofia?! Eu já lá
morava sem saber, este sujeito tinha a alcunha de Nubret, pela
semelhança com o conhecido culturista francês, também havia quem o chamasse de O
Africano, introvertido, calmo, concentrado no treino, reunia as
características inatas de um herói, agora adicionava as de um pensador: “Um gajo tem é de lhe dar!” Alguém que pratica
desporto já ouviu melhor conselho? Pois, então silêncio perante esta erudição,
e, em verdade, isto não se cinge só ao desporto, é extensível à própria vida (“Um
gajo tem é de lhe dar!”), sublime, como veem, ainda perdura em mim, em
nenhum outro espaço me voltei a cruzar com personagens assim e muito menos com
máximas ou conselhos tão profundos, se alguma noite me virem a bater num
portão, não se preocupem, estou à espera que o Rui abra para ali pernoitar, não
sei porquê, mas “Só de inspirar este ar, sinto-me a crescer!”

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