Os serões pouco divergiam, ele, no sofá, de
rosto oculto, pelo jornal, para que ela não percebesse a chegada do sono, por
seu turno, ela num ávido e galopante tricotar, uma
ferocidade crescente, o
olhar absorvido pela trama da telenovela com aquele peculiar sotaque de
terras além-mar, volta
e meia, resmungava-lhe “Não me digas que já estás a dormir!
Acorda, homem! Vê bem ao ponto que chegaste…”, com
tanto barulho, lá se vê forçado a regressar à sua circunstância, ao metálico
embater das agulhas e ao rectângulo onde se desenrola uma trama com aquele
peculiar sotaque de terras além-mar, olha-a da distância do seu sono, imensa
por sinal, as mãos frenéticas, num ávido e galopante tricotar, uma ferocidade
crescente, o olhar absorvido pela trama da telenovela com aquele peculiar
sotaque de terras além-mar, por momentos, breves mesmo, pensou regressar ao seu
sono, mas receou aquele brado de novo “Não
me digas que já estás a dormir! Acorda, homem! Vê bem ao ponto que chegaste…”, assim
sendo, fingiu interesse pelo que se desenrolava no rectangular écran, enquanto
ela lhe debitava as mais recentes ocorrências, pelo menos duas vezes por semana
desaguava naquela sala uma conhecida – sempre considerei a palavra “amiga” rara
e preciosa –, o marido, nesses dois serões, juntava-se a um coro-litúrgico,
enfim, há quem fuja de si por uma vida inteira, e,
no caso desse sujeito, não se visualizava a mínima aptidão para o canto, pois,
há quem fuja de si por uma vida inteira, e como são demasiado plurais os
exemplos, para não passar esses dois serões sozinhas, esta conhecida optava por
ali desaguar, e era só atravessar a rua, ao menos, enquanto as duas conversavam,
aquele brado não regressava (“Não me digas que já estás a dormir! Acorda,
homem! Vê bem ao ponto que chegaste…”), há quanto os serões, por ali, não
divergiam? A um olhar exterior, pareciam náufragos, a
partilhar um destroço, ao sabor da corrente, sem qualquer assomo de volição
face ao acontecer, ternura e repulsa entrecruzavam-se perante tal cenário,
será este o destino, com o tempo, de qualquer casal? Ela absorvida
pela trama de uma telenovela com aquele peculiar sotaque de terras além-mar, num
ávido e galopante tricotar, uma ferocidade crescente, chega-se a um ponto
da existência em que já nada se espera, sabe-se que o
amanhã apenas mais um ontem, é dos momentos mais dolorosos desta caminhada
(sabe-se que o amanhã apenas mais um ontem), cada
um enfrenta este facto como pode: uns fogem-lhe, pela alienação, mediante a sua circunstância (jogo, bebida,
viagens, muitos, por incrível que pareça, pelo trabalho, mais frustrante não
pode haver… E são tantos!), outros, pela Arte, procuram redescobrir o Sentido,
ainda há os que buscam, de forma desesperada, trazer o ontem ao hoje, um
equívoco, sem dúvida, as coisas nunca ficam onde as deixámos, mas é sempre uma
tentativa de o amanhã diferir do hoje, por fim, há os
que se colocam na plateia para assistir a algo que os relembre quem foram,
ela caminhava entre estes últimos, absorvida pela trama de uma telenovela com
aquele peculiar sotaque de terras além-mar, num ávido e galopante tricotar, uma
ferocidade crescente, por ali, entre amores e desamores, visualizava a centelha
de algo, no fundo, de um ontem, longínquo, tão longínquo, de dois náufragos, a
partilhar um destroço, ao sabor da corrente, sem qualquer assomo de volição
face ao acontecer, nem a chegada da conhecida, duas vezes por semana, a fazia
refrear o embate metálico das agulhas, e, muito menos, esbater a avidez do
olhar pela trama no écran rectangular, a conhecida tinha facilidade em se
ajustar aos contextos, era ela que batia à porta, procurava transparecer
interesse, pela trama da telenovela com aquele peculiar sotaque de terras
além-mar, através de observações, em verdade, eram mais perguntas para se
situar na acção, as agulhas respondiam energicamente, não fosse aquele um dos
seus espelhos de eleição (há os que se colocam na plateia para assistir a algo
que os relembre quem foram), pouco mais de duas horas depois, duas vezes por
semana, de a conhecida bater à porta, era o marido, vindo do coro-litúrgico, a
soar a campainha, entre outros complexos, o sujeito padecia de gaguez, e havia
nele uma irreprimível ânsia de transparecer mais cultura do que efectivamente
cabia na sua divisória craniana, além, claro, de uma total ausência de vocação
para o canto, embora tal facto não o coibisse de frequentar o coro-litúrgico, os
dois náufragos saudaram-no da sua circunstância, as agulhas mantiveram a sua
cadência, o olhar nem se desviou do desenrolar da trama, quanto ao jornal lá
continuou sobre a barriga refém das subidas e descidas do diafragma, palavras
de ocasião, a conhecida feliz pela iminente partida, embora um olhito já
capturado pela trama da telenovela com aquele peculiar sotaque de terras
além-mar, assim que a porta se fechou, as agulhas mantiveram o seu frenético
ritmo, ele, porém, capitulara à consciência de que o amanhã apenas mais um
ontem.
Livros do Escritor
domingo, 14 de julho de 2024
Capitulação
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