Um dia
destes, nas notícias, relatavam um acidente, com vítimas mortais, durante um
evento, para contextualizar, a jornalista lá resolveu entrevistar alguns dos
participantes, retive os lugares-comuns e a boçalidade final de um: “Pois,
é lamentável, muito triste, mesmo muito triste, não devia ter acontecido, mas é preciso andar para a frente,” o
meu pensar sentou-se aquando e depois de ouvir (“… mas é preciso andar para
a frente”), o que mais feriu os ouvidos, para não falar do sentir, foi,
talvez, a naturalidade da entoação, onde se denotava algum entusiasmo, como se
remetesse o sucedido para um lugar bem pretérito, onde nem a memória já
conseguisse alcançar, sei há muito que, quando daqui partirmos, continuamos a
respirar na memória daqueles que nos amam, no entanto, ao saber da partida de
três seres-humanos, o boçal ardilosamente colocou o ênfase no futuro,
desvalorizando por completo o presente que, no fundo, é um constante passado,
enfim, a verdade é que, a cada dia, me revejo menos na
realidade circundante, longe vão os tempos em que, quando se falava de
partidas, olhos no chão e pesar pelas faces, por outras palavras, havia
respeito, pois, hoje diz-se adeus com demasiada facilidade, ou muito me
engano, ou chegará o dia em que muito poucos, raríssimos, conseguirão dialogar
olhos-nos-olhos, a verdade é que, a
cada dia, me revejo menos na realidade circundante, Platão sempre esteve certo,
desconhecia apenas que a caverna seria um rectângulo sofregamente sustido entre
os dedos, uma palavra silenciada, uma frase reprimida, “Hoje não vale a
pena, mais vale guardar para amanhã… Para que é que me vou aborrecer?”, o
telefonema que não apetece atender, e depois é tarde… Um
pouco como aquele familiar que sempre vamos adiando a visita, por este ou aquele
motivo, tempo, sobretudo paciência, até que um dia só o vazio do espaço que
ocupava, e essa ausência que nos ameaça engolir, afinal, a sua dimensão era bem
maior que se julgava, equivalente à saudade que nos habita, ainda por aqui
a imagem de um casal, viviam nos subúrbios, empregos atrás de secretárias,
filhos na escola, primeiro ela, depois ele, uma inversão ao olhar paterno, tudo
bem, a saúde é que importa, ao olhar materno, aquando férias regressavam às
origens, por outras palavras, à aldeia que a viu nascer, ela
é que norteava os passos familiares, ele limitava-se a segui-la, da melhor
forma possível, na véspera de Natal, era vê-la sair do prédio, em primeiro, muito direita, com o seu vison contrafeito, a armação do
cabelo, construída à custa de muitos litros de laca, imperturbável face a
qualquer intempérie, os saltos-altos de um quase segundo-andar, a maquilhagem
num excesso de palhaço-pobre, em segundo, lá vinha ele, curvado, numa luta
titânica para arrastar duas malas de volumetria assinalável, um fato-coçado em
vários pontos, uma gravata anacrónica, seguia-se-lhe
a filha, fones nos ouvidos, rectângulo na mão, qualquer som dali emergia, tal a
sua alienada expressão, pastilha na boca, o mascar conferia-lhe um desagradável e
deselegante ar bovino, por fim, o filho, também se curvava por uma
mala, o bom-senso de, dentro do possível, mitigar o esforço paterno, lá
seguiam para a aldeia materna, ali chegados tudo se repetia, apenas o sentido se
invertia, ela a primeira a sair do carro, muito direita, com o seu vison
contrafeito, a armação do cabelo, construída à custa de muitos litros de laca,
imperturbável face a qualquer intempérie, os saltos-altos de um quase
segundo-andar, a maquilhagem num excesso de palhaço-pobre, em segundo, lá vinha
ele, curvado, numa luta titânica para retirar duas malas, de volumetria
assinalável, da bagageira, um fato-coçado em vários pontos, uma gravata
anacrónica, seguia-se-lhe a filha, fones nos ouvidos, rectângulo na mão, qualquer
som dali emergia, tal a sua alienada expressão, pastilha na boca, o mascar
conferia-lhe um desagradável e deselegante ar bovino, por fim, o filho, que
também se curvava, sobre a bagageira, por uma mala, o bom-senso de, dentro do
possível, mitigar o esforço paterno, à porta os pais dela aguardavam-nos, a
mãe sempre com uma expressão velada para a filha, só perante o genro e os netos
se tornava solar e os gestos se janela, o
carro, repetia incessantemente que a filha não poderia ter realizado melhor
casamento, ela é que norteava os passos familiares, repetia, com indisfarçável
orgulho, aos mais próximos, quantos homens, após décadas de matrimónio, secundariam
a mulher enquanto se digladiavam com duas robustas malas? Na Páscoa, tudo se
repetia, no Verão igualmente, e os anos a sucederem-se, um dia, o filho vira-se
para o pai e “Nunca vamos visitar a nossa avó-materna! Porquê?” Espanto
pela face perante uma evidência tão crua, desde o casamento, de facto, como se
costas para as suas origens e um irreversível amplexo pela família da mulher,
quando, por acaso, lembrava ao tempo que não visitava sua mãe, o pai partira há
muito, logo esta: “Para quê? A tua irmã está sempre lá metida! Ainda nos fazia
sentir uns estranhos… E sabes bem como aquilo é longe! No Inverno é gelo, no
Verão nem se consegue respirar… Um horror! Para quê lá ir? Falas com a tua
mãezinha quase todos os meses. Não te esqueças de que ela sublinha bem a predilecção
pelas filhinhas da tua irmã! Isso faz muito mal à cabeça dos miúdos…”, quando
lhe relatou a questão do filho, ela limitou-se a: “Para quê? A tua irmã
está sempre lá metida! Ainda nos fazia sentir uns estranhos… E sabes bem como
aquilo é longe! No Inverno é gelo, no Verão nem se consegue respirar… Um
horror! Para quê lá ir? Falas com a tua mãezinha quase todos os meses. Não te
esqueças de que ela sublinha bem a predilecção pelas filhinhas da tua irmã!
Isso faz muito mal à cabeça dos miúdos…”, que ninguém se esqueça do carácter
irónico do tempo, um dos erros maiores na vida, foi numa manhã de Sábado, o
telefone, foi a filha que atendeu, talvez de pastilha na boca, o mascar
conferia-lhe um desagradável e deselegante ar bovino, a expressão, no entanto,
ficou cinzenta, aproximou-se do pai “É a tia! Diz que precisa de falar
urgentemente…”, um assomo de energia fê-lo levantar-se do sofá, a filha nem
concluiu a frase, ele limitou-se a ouvir o que chegava do outro lado, não
emitiu qualquer palavra, a sua expressão transparecia o sentir de alguém que
sempre vai adiando a visita a um tão próximo familiar, por este ou aquele
motivo, tempo, sobretudo paciência, influência do cônjuge, até que um dia só o
vazio do espaço que ocupava, e essa ausência que o ameaça engolir, afinal, a
sua dimensão era bem maior que se julgava, ela ladeou-o, talvez estivesse ao
espelho, percebeu logo o sucedido, assim que ele desligou o telefone : “Pois,
é lamentável, muito triste, mesmo muito triste, não devia ter acontecido, mas é
preciso andar para a frente…”
Livros do Escritor
quinta-feira, 25 de julho de 2024
É preciso andar para a frente…
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