Livros do Escritor

Livros do Escritor

domingo, 24 de novembro de 2024

Desolação I

 


Há muito ela falava, com insistência, em regressar ao local das primeiras férias juntos, de início, ele relativizou, talvez mais um capricho, a nostalgia batera-lhe à porta, reacender o que inexoravelmente o tempo diluiu, a insistência, no entanto, mantinha-se, “Fomos tão felizes lá! Era tudo mais simples… Lembra-te: durante esses dias, nem precisávamos do carro para nada! Era só descer a rua e estávamos na praia… Já reparaste: não enfrentávamos o caos do aeroporto, horas e horas de espera, passaportes, documentos e mais documentos, malas, avião, basta uma hora de carro e ali estamos!,” uns instantes de silêncio e recomeçava, “Fomos tão felizes lá… Era tudo mais simples…,” ainda apelou ao que se economizava, ele que nunca lidou muito bem com a claustrofobia de estar, horas e horas, dentro de um cilindro, que mais parece imóvel nas alturas, lentamente a, por fim, ouvi-la, de outra forma, a dar-lhe a devida razão, tão raro nestes últimos tempos, “Fomos tão felizes lá… Era tudo mais simples…,” acordaram, no próximo Verão, rumar ao local das primeiras férias juntos, ele encarou como uma pausa, para recuperar o fôlego, do inferno do aeroporto, ainda muitos destinos para cumprir, não atingira que o Destino sempre nos aguarda, embora já lhe tenha murmurado “O aeroporto tira-nos anos de vida…,” lá rumaram, numa manhã de Agosto, ao local das primeiras férias juntos, uma povoação caiada de branco debruçada sobre o mar, ela, em verdade, procurava suspender o tempo, para reencontrar algo que talvez por ali estivesse entre lençóis, areia e mar, da parte dele já se percebeu, uma pausa, para recuperar o fôlego, do inferno do aeroporto, ainda muitos destinos para cumprir, quando se tomam as coisas como certas, a atenção esmorece, este é um erro capital, quantas vezes não vem a vida, com o seu impetuoso caudal, relembrar este facto? Durante a viagem falaram de trivialidades, há muito só falavam de trivialidades, havia uma dor, antiga, que sublimadamente nem ousavam verbalizar, de certa forma, ambos compreendiam o magnetismo que os unia, como se uma inevitabilidade, talvez fosse ele, em vários momentos, quem mais remou contra esse facto, embora dele tivesse consciência, daí a sua luta, ela acabou por se acomodar, apesar de não descurar o seu brilho, não lhe passavam despercebidos certos olhares quando descia a rua ou noutras circunstâncias, ambos nutriam um carinho muito particular por esta povoação caiada de branco debruçada sobre o mar, não foi só o primeiro lugar das férias juntos, a intuição dela sempre lhe ditou: chegaram dois, mas regressaram três, esta convicção enraizara-se-lhe no ser; chegou a partilhar-lhe, na altura, melodiosamente ao ouvido, ele apenas sorrisos, para, pouco tempo depois, relembrar-lhe os imperativos da existência do hoje: o curso, a urgência de um trabalho, o choque ou desgosto das famílias por tanta imprudência, a escassez de recursos para chegaram dois, mas regressaram três,” não, não podia ser, algo teria de se corrigir, de início, ela prontamente cortou qualquer possibilidade de diálogo, até o telefone lhe deixou de atender, ameaçou “sim, chegaram dois, mas regressaram sempre, pelo menos, dois,” neste ponto, ele já se via fora da equação, porém, ambos compreendiam o magnetismo que os unia, como se uma inevitabilidade, num Domingo, de manhã, escudado por um frondoso ramo-de-flores, bateu-lhe à porta, foi o pai dela a abrir, perante tal cenário, quase não resistia à gargalhada, muito a custo lá se conteve e disse-lhe para entrar, a filha, ao vê-lo, em pé, na sala, escudado por um frondoso ramo-de-flores, quase tinha a mesma reacção que o pai, não fosse a memória de “chegaram dois, mas regressaram três,” o seu rosto coloriu-se de frieza, ele estendeu-lhe o frondoso ramo-de-flores enquanto dos seus lábios “Aceita, por favor, como um pedido de desculpas…”, hesitantemente a sua mão ergueu-se para aceitar, estavam os dois a morrer de amor por dentro, havia somente que liquidar o orgulho, neste particular, ele foi mais eficaz, deu um passo em frente e abraçou-a por inteiro, desconheço por quanto tempo assim ficaram, no meio da sala, a relembrar o magnetismo que os unia, se fosse possível, nesta manhã de Agosto, durante a viagem para o lugar das primeiras férias juntos, alguém lhes relembrar esta cena, afigurar-se-lhes-ia de uma longínqua existência, não por acaso ela procurava suspender o tempo, para reencontrar algo que talvez por ali estivesse entre lençóis, areia e mar, ele talvez nem se recorde de, numa manhã de Domingo, lhe tocar à porta coberto com um frondoso ramo.de-flores, que pena, talvez se esta memória o acompanhasse não perdesse anos e anos de vida, no aeroporto, a fugir de si mesmo, mais uma curva e já avistam o contraste da povoação caiada de branco e do azul, que tanto demora o olhar, daquele mar, ela, num gesto hesitante, como há tantos anos quando recebeu um frondoso ramo-de-flores, pousou a mão sobre a dele, sentiu felicidade, retribuiu com um sorriso no olhar…

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Ontem cruzei-me com um estranho na rua…

 


Não sei se cheguei a dormir, andei por ali, entre o cá e o lá, entre o estar ao leme do meu pensar e o abandonar-me aos caprichos do sono, que mais não faz do que levantar a carpete da nossa consciência, ora me virava para um lado, ora para outro, ele, a meu lado, nem se mexia, apenas a respiração, num compasso pesado, indiciava os caminhos, pelo menos, do sono, não sei se abrira as portas do sonho, nunca mo dissera, olhei as luzes vermelhas em cima da minha mesa-de-cabeceira, para ver se podia prolongar a esperança de me abandonar, nem que fosse por mais um pouco, aos caprichos do lado de lá, percebi que me restavam vinte e oito minutos até que as luzes começassem a tremeluzir e o aparelho a gritar numa urgência de ave caída, resolvi levantar-me, não, não valia a pena insistir, ora me virava para um lado, ora para outro, e o sono uma repetida miragem de Verão, saí do quarto, também não valia a pena acordá-lo, afinal, sai de casa quatro horas depois, vesti-me na sala como sempre fazia desde que tenho este trabalho, uma chávena de café com leite que me soube a pressa, há tanto que a comida não tinha outro sabor, uma carcaça com manteiga, no meio de tudo, casaco, cachecol, abri e fechei a porta num devagar contrastante com os meus intentos, mas a hora era de silêncios e repousos, só eu e o mundo num face a face, como se não houvesse outras almas neste intermédio de qualquer coisa a que alguns chamam vida, de novo a carcaça, ou o que dela restava, desci os dois andares, saí para a ainda fria noite do mundo, do outro lado da rua, a minha vizinha e colega já me aguardava, acenou-me, hoje foi ela a esperar-me, regra geral, esse papel pertence-me, atravessei a rua ao seu encontro, contudo, decidi não sublinhar este facto, iniciava logo o relato das peripécias da véspera, coitada, juntou-se há três anos a um tipo que passa mais de metade do ano desempregado, até ouvi dizer que se ajeita bem com as madeiras, porém, diz-se, lá no bairro, em conversas de escada e de portas entreabertas, que deve o valor de uma casa a gente muito pouco recomendável, por causa de umas apostas clandestinas, desde então, álcool e mais álcool, volta e meia, os gritos dela, do outro lado da rua, chegam-me a casa, cansei-me de lhe dizer que há coisas degradantes, mas logo se socorre da memória, e fala-me, por vezes demasiado explicitamente, das tardes de suor e gemidos dos fins-de-semana, e como ele, nesses instantes, se revela um verdadeiro cavalheiro, “Sabes, nem parece o mesmo… Não tem nada a ver! Acreditas que até já me levou, por mais que uma vez, o pequeno-almoço à cama? Pois é… É só para tu veres! Algum dia deixava um homem destes? Nunca!”, neste ponto, nem lhe relembro aquele dente que quase perdia, ainda abanou por dois dias, além de, durante pelo menos cerca de uma semana, o zumbir do ouvido esquerdo, um efeito da descontrolada mão dele, às vezes, confesso, acho que ela até gosta, os ciúmes, pois, um pretexto tão dúbio, que tudo explica menos uma breve ausência de amor, uma daquelas brevidades que chega a durar, em alguns casos, toda uma vida, preferia, claro, a minha situação, a memória de um calor ido, volta e meia, uns reacendimentos nos fins-de semana, afinal, que resta aos pobres fazer nos tempos livres? Se ao menos a nossa situação fosse diferente, talvez um filho, mas ele não estabiliza, eu ainda menos, o tempo só o vemos quando somamos anos e paramos, de repente, para os contar, e passamos grande parte a queixarmo-nos da vida, um belo dia, talvez por cansaço, ela vira-nos costas e percebemos que já é tarde, àquela hora, em que a noite começa a fazer a mala, só nós as duas no autocarro, o trajecto até ao cais dura cerca de quinze minutos, apanhamos sempre o primeiro barco, vai para dez meses, não me posso queixar, ao menos pude escolher, quando os meus pais “Tens de estudar, minha filha! Não queres ser alguém na vida? Aproveita esta oportunidade! Olha que um dia vais querer e aí perceberás que já é tarde”, neste último ponto, enganaram-se, desde há dez meses que é demasiado cedo, a cidade, diante dos meus olhos, dorme como se fosse um espaço longe do pecado, da dor, onde todos tivessem o seu lugar, as ruas iluminadas reflectem a madrugada, volta e meia, umas luzes velozes que logo se diluem, parecia-nos uma declaração de vida, pela ponte, à nossa esquerda, também poucos carros, de certa forma, parecia que tudo estava suspenso, como se aguardasse uma qualquer coisa, talvez fosse isso que melhor traduzisse o ser da madrugada, esqueci-me de dizer que a minha colega ainda não se calara, por esta altura dissertava sobre uma qualquer doença da mãe que vivia lá para os lados de Viseu, acho que foi isso que ouvi, somente anuía, assim ela não pedia que lhe respondesse, o que era óptimo para mim, podia dar galope ao meu pensar, e tentar compreender como, desde há dez meses, apanho o primeiro barco rumo a Lisboa, como vivo com um homem, num minúsculo apartamento da margem Sul, que nem vestígios de ternura me suscita, dizem que, no fim, pelo menos fica a ternura pelo que foi, eu já nem isso, não que ele alguma vez tenha sido grosseiro ou incorrecto, nada disso, apenas as coisas são o que são, e eu olho de frente a indiferença que lhe sinto, aproximo-me nesta madrugada, vai para dez meses, de um trabalho que igualmente desprezo, limpeza de sucursais bancárias antes da abertura, há tanto que de fragrâncias só conheço a esterilidade aromática de detergentes, conversas só de escada e de portas entreabertas sobre tardes de suor e gemidos de fins-de-semana, ainda por cima dos outros, não sei que escolha, pensamento, ou frase, me fez estar hoje aqui, e vai para dez meses, de primeiro barco da madrugada, a sentir o frio que se levanta das águas pela face, não, não sei, à minha volta, tudo parece suspenso, como se aguardasse uma qualquer coisa, talvez seja  isso que melhor traduz o que vai dentro do meu peito.

domingo, 17 de novembro de 2024

Deus também erra?

 


Ensinaram-me, em criança, que Deus é perfeito, o mal é resultado do livre-arbítrio do homem, sempre tive estas duas premissas bem presentes, até que, há uns dias, alguém, durante o relato de um episódio biográfico, a dada altura afirma: “Deus também erra”; a frase ecoou por cada canto do meu ser (“Deus também erra”), em verdade, tirando a perspectiva teológica, eu não tinha como contrariar esta evidência (“Deus também erra”), quem, nos seus passos pelo aqui, não queria, num dado momento, tudo fosse uma outra coisa? E o amanhecer confrontado (ou será resignado?) com o mesmo tão indesejado do ontem, um velho aforismo dita que “Não há ateus na hora da morte,” concordo plenamente, a morte acompanha-me a cada passo, porque, há muito, não a temo, em verdade, só a receei durante a infância, no entanto, houve em mim uma mudança, desconheço a sua génese, facto é que desde a adolescência me sinto pronto para a acolher, num certo momento até já lhe senti o calor, a morte não é fria, como se pensa, mas quente e tranquilizadora, a primeira sensação que tive, ao ouvir esta frase (Deus também erra”), foi de distância, senti que talvez Deus se tenha cansado do homem e partido para bem longe, minha avó sempre me pareceu ser detentora de um canal de comunicação privilegiado com Deus, as pedras, entre seus dedos, ritmadas por palavras suplicantes e de glória, ora de manhã, ora de tarde, sempre uns momentos consagrados para pôr a conversa em dia com o Criador, e não passava um dia sem entrar no lugar de encontro entre nós, que para aqui andamos, e Ele, a seu lado, era impossível esquecê-Lo, meu pai também era crente, nunca se deitava sem antes dirigir umas palavras de louvor e gratidão ao Altíssimo, embora nunca lhe visse pedras, entre seus dedos, ritmadas por palavras suplicantes e de glória, ora de manhã, ora de tarde, só uma vez por semana entrava no lugar de encontro entre nós, que para aqui andamos, e Ele, de uma visita diária a uma semanal, pois, apesar da fé paterna, em relação a minha avó, a presença de Deus, lá por casa, diluiu-se um pouco, feitas as contas, que dizer da minha…? As coisas, pelos vistos, estão num gritante decréscimo, ou terão somente mudado de coloração? Outro velho adágio dita “Cada um tem o Deus que merece,” pois, não sei, como todas as relações, há os seus altos e baixos, proximidades e enormíssimas distâncias, a verdade é que Nele acredito, independentemente da forma, o conteúdo só pode ser fatalmente o Bem, continuo sem responder à questão (“Deus também erra?”), apesar de me ter sido apresentada sob a forma de uma afirmação, a realidade é que não tenho resposta, só quando a morte se sentir pronta para me acolher tê-la-ei, antes é, de todo, impossível não dar uma resposta parcial mediante a nossa circunstância, dei voltas e voltas à cabeça e, de facto, o “sim” é a resposta mais plausível, quantos sonhos sepultados não jazem à vista do nosso horizonte? Quantas vezes o acontecer não foge à cor do nosso sentir? Quanta Dor não grita na noite das nossas almas? Quase subscrevo que “Deus também erra,” mas aqui levanta-se-me a honestidade, o facto de só deter uma visão parcial dos factos, vemos o mundo da varanda de nós, é esta a nossa realidade, o vislumbre do Todo é apenas uma quimera, por conseguinte, não, não posso subscrever tal afirmação, também não a posso refutar, isto que fique bem sublinhado, só quando, por fim, o meu cansado coração adormecer, conseguirei responder, se minha avó sempre me pareceu ser detentora de um canal de comunicação privilegiado com Deus, as pedras, entre seus dedos, ritmadas por palavras suplicantes e de glória, ora de manhã, ora de tarde, se meu pai nunca se deitava sem antes dirigir umas palavras de louvor e gratidão ao Altíssimo, eu para aqui ando, como todas as relações tem os seus altos e baixos, proximidades e enormíssimas distâncias, a verdade é que Nele acredito, talvez, de um certo lugar, estas palavras se assemelhem às pedras que passavam entre os dedos de minha avó.

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Quando ainda fôlego para uma derradeira súplica…

 


Ao passar, diante daquele edifício branco, com uma cruz ao alto, a imagem da mãe, nos últimos tempos reduzida a um ténue articulado de ossos, envolta num manto negro, a ali entrar, todas as tardes, numa discrição condizente com as vestes, de imediato o respeito conduzia-lhe os joelhos ao chão, assim ficava, a passar aquelas pedras por entre os dedos, enquanto os lábios pediam que as alturas se lembrassem, nem que fosse um pouco, de nós que para aqui andamos, todas as tardes de uma vida, neste ponto, afastou-se da mãe, tal como em muitos outros, nunca foi apologista de discretos mantos negros como vestes, nem de joelhos no chão, mas, hoje em particular, gostaria que alguém se lembrasse, nem que fosse um pouco, de nós que para aqui andamos, parou, percebeu a porta aberta, o mundo mergulhado na tarde da vida, cada um cumpria com o seu destino de horas e afazeres, deixou-se ali estar por uns instantes, contou os degraus até à porta aberta, daquele edifício branco, com uma cruz ao alto, totalizavam sete, hesitou, até que, sem o perceber, já vencia o primeiro degrau, nem uma dezena de segundos depois, transpôs a entrada e logo aquele silêncio a envolveu, como se sempre ali estivesse à espera do seu regresso, apreciou aquela semi-obscuridade, instava a confidências e reflexões, apenas dois ou três vultos àquela hora, a quem o respeito conduzira os joelhos ao chão, pediam para que alguém se lembrasse, nem que fosse um pouco, de nós que para aqui andamos, inspirou profundamente e sentou-se, o seu olhar maravilhado pelas chamas ondulantes das velas espalhadas pelo templo, havia algo de irreal nessa luz que se curvava com uma qualquer brisa para logo se reerguer, numa verticalidade fantasiosa, rumo às alturas, passaram-se décadas desde que ali estivera pela última vez, a vida, pois, afastou-se dessas questões de pedir ajuda a um amigo que habita algures entre o pensar e sentir de cada um, além disso, tem muitos nomes, consoante o idioma em que o convocamos, uns desistem, julgam que nunca responde, outros afirmam que sempre responde, mas numa outra linguagem, porém, algo sobreviveu às décadas desde que ali estivera pela última vez: o silêncio. Dali, o mundo parecia um lugar longe, tudo se tornava relativo face àquela promessa de alturas, embora os joelhos dela, sem saber como, sintam, neste momento, a frieza áspera das lajes, junta as mãos e ali repousa, agora, a testa, enquanto procura as palavras certas para recuperar um diálogo interrompido há décadas, a vida, pois, caminha, agora, pelas paisagens de si, tantas sombras, talvez por cansadas noites sem luar, aqui e ali um vestígio de luz sempre filtrado por algo, mas também espaço para vislumbres de Sul, subidas demasiado íngremes, precipícios abruptos, vales de pouca extensão, lugares recônditos que convidam a confidências e virar costas ao tempo, se ao menos aquelas pedras para passar por entre os dedos, enquanto os lábios pediam que as alturas se lembrassem, nem que fosse um pouco, de nós que para aqui andamos, mas nada, de repente, senta-se diante de um dia da meninice ida, vê-se a perguntar, à sua avó, por aquele amigo que habita algures entre o pensar e sentir de cada um, a resposta da velha não tardava Ele, antes mesmo de lhe pedires, já sabe o que queres, tão estranho, pensou na altura, no entanto, hoje compreendeu perfeitamente as palavras da velha, de repente, diante dela, o marido a abrir aquela gaveta, um copo com água na mão, a pegar sofregamente numa lamela, a retirar um comprimido para logo o engolir, sem espaço para mais, reflectir, ponderar, sopesar, tudo tão longe, ele queria aguentar mais um dia, e se chegar ao amanhã, tudo se repetirá, abrir aquela gaveta, um copo com água na mão, a pegar sofregamente numa lamela, a retirar um comprimido para logo o engolir, tudo isso desde que não se levanta pelo pão de cada dia, nem dignidade para lhe dizerem que foi despedido, rotularam-no de dispensado, feriu-o ainda mais o embrulho da expressão, logo ele tão directo, frontal, desconhecedor de eufemismos, a meio dos cinquenta, por outras palavras, vê a meta mas ainda está na corrida, agora nem uma coisa nem outra, como se o desclassificassem tão próximo do fim, já lá vão uns meses, tem falado uns disparates, nestes últimos tempos, que a têm assustado, a filha também não anda melhor, o casamento, nem a isso chegou, no fundo, juntaram-se, as coisas, de facto, relativizaram-se e foram destituídas do seu profundo e legítimo carácter, mas a filha a visitá-los à noite com uma frequência crescente, a contar-lhes que não gosta de passar os serões sozinha, pelo meio, diz que o companheiro acumula horários para trazer mais, no final do mês, para casa, embora ela não dispense, na hora do regresso, um saco de provisões, três litros de leite, cinco carcaças, uma manteiga, um cachito de bananas, nunca fizeram mal a ninguém, não é verdade? Se o marido estivesse acordado a essa hora, isso só seria possível se não abrisse aquela gaveta, um copo com água na mão, não pegasse sofregamente numa lamela, para retirar um comprimido e o engolir, percebia a crescente apreensão dela pela filha, cada vez mais, no pântano do hoje, se comunica o essencial calando-o, ela, antes de fechar a porta, um derradeiro olhar para a filha, com o saco de provisões na mão, que lhe diz, sem palavras, Percebes, não é? Estou prestes a ser trocada… Ele não me procura há quase dois meses. Não consigo um emprego condizente com aquele canudo que de nada me serve… E, lembras-te mãe, tantas e tantas noites em branco para o conseguir… Agora, se o evoco, olham-me como um empecilho… Se digo que nada tenho, olham-me como um verme… Nada se disse entre elas, e o marido, aquém de tudo isto, já dorme embalado pelo fruto da lamela, a olhar uma meta tão próxima, mas sempre tão longínqua… Quais são as palavras certas para recuperar um diálogo interrompido há décadas? Como pedir que as alturas se lembrem, nem que seja um pouco, de nós que para aqui andamos? Se lhe perguntassem, ela não saberia responder, levantou-se, saiu, antes, olhou maravilhada, uma vez mais, as chamas ondulantes das velas espalhadas pelo templo, ou talvez soubesse a resposta, afinal, fora-lhe revelada na meninice, pela avó, aquele amigo, que habita algures entre o pensar e sentir de cada um, antes mesmo de lhe pedires, já sabe o que queres.

terça-feira, 12 de novembro de 2024


 

... assim vão os dois, amparados, rumo à única janela iluminada da noite, para trás fica o molhe, onde uma gaivota assiste,  de um certo banco, à serenidade de um fim.

in Serenidade


 

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Serenidade


 

Caminhavam desencontrados, embora na mesma direcção, o extremo do molhe, onde um banco para assistir ao nascer da noite, ele numa passada vagarosa, hesitante, como se aguardasse ela, primeiro, no banco, a segurança de se saber esperado, uma desavença (o quê?)  fê-los caminhar desencontrados, tantas são as fontes da discórdia, ela parou a meio, virada para Oeste, olhos nas águas, a brisa entardecida ondulou-lhe uma melena, ele fingiu não reparar, não asfixiava palavras, mas sentires, o orgulho a nortear-lhe os passos, daí o caminhar desencontrado, os olhos dela nas águas, nenhum pousava o orgulho, há poucas coisas piores do que morrer de amor por dentro em troca da esterilidade do orgulho exterior, calar o sentir para suster a altivez, num repente, após levantar os olhos da água, ela regressa, passa por ele como se lhe invisível fosse, compreende-se-lhe um vislumbre de a seguir, talvez o orgulho, num derradeiro instante, o imobilizasse, em desespero olha o extremo do molhe, onde um banco para assistir ao nascer da noite, por fim, ela já uma ausência, agora é o olhar dele a encontrar as águas, ambos, como é evidente, sabem o que os fez caminhar desencontrados, não alcança, desta vez, o banco onde se assiste ao nascer da noite, pouco depois, acabou por também se ir embora, o olhar caído a espelhar que nada saiu como esperava, não há assim tanta coisa que faça um casal caminhar desencontrado, uma gaivota levantou vôo ao perceber a chegada estridente de uma criança a pedalar o triciclo, a mãe não se distanciava um passo, quase corria para o acompanhar, imobilizaram-se a meio do molhe, a criança deixou o triciclo e correu para abraçar a mãe, teria dois ou três anos, a mulher pegou-lhe ao colo e apontou extremo do molhe, onde um banco para assistir ao nascer da noite, a criança passou a mãozita pela face, onde um traço salgado corria, da mãe, a mulher ainda deu um passo em frente, hesitou, deu outro, em direcção ao extremo do molhe, onde um banco para assistir ao nascer da noite, lentamente coloca o filho no triciclo e inicia o regresso, a criança, agora, pedala ao ritmo da passada materna, nem vestígios da chegada estridente que fez uma gaivota levantar o seu vôo sobre as águas, talvez retorne assim que o molhe em silêncio, entra um casal de velhos, ela ligeiramente à frente, parece guiar-lhe os passos, ele segue-a numa obediência quase infantil, numa infinita confiança de jamais correr riscos, passos curtos embora seguros, não, nunca chegam ao extremo do molhe, onde um banco para assistir ao nascer da noite, a velhota continua ligeiramente à frente, fala-lhe ininterruptamente, o olhar ausente dele parece não ouvi-la, talvez seja só uma impressão, interrompem a arrastada marcha também a meio, é possível que ela levantasse a memória de quando, naquele exacto ponto, ele, a seus pés, lhe erguia o símbolo de amor e  compromisso, ela, por todos os meios, a contorcer-se para disfarçar as faces ruborizadas, até que, se inclinou para lhe murmurar “Sim, aceito,” passaram pouco mais de cinco décadas, todos os finais de tarde, desde que o tempo permita, descem a rua, ela ligeiramente à frente, parece guiar-lhe os passos, as suas palavras a iluminar este e outros momentos da sua história, a única que lhes importa, o resto apenas uma ilusão de entretenimentos, ele, no entanto, devorado pelo esquecimento, um vazio caminhante, uma ruína, onde o interior somente  vegetação rala desprovida de qualquer beleza, o olhar de ambos nas águas, o espanto de mais de cinco décadas passadas, as águas parecem sempre as de ontem, a expressão dele, nesses instantes, suaviza-se, parece rejuvenescer, olha-a com um brilho que, pois, é isso, fá-la ruborizar, não fosse o facto de, no seu anelar-esquerdo, figurar o símbolo de amor e  compromisso, não haveria duvidas de que, uma vez mais, ele se ajoelharia para o erguer à sua altura, uma repentina brisa relembra a chegada da noite, ela aproveita para lhe endireitar o cachecol, iniciam os passos do lar, mais uma vez, a velha ligeiramente à frente, antes dos seus olhares se despedirem das águas, as falanges dele, com uma enérgica ternura, relembram as dela que as águas parecem sempre as de ontem, recua um passo, assim vão os dois, amparados, rumo à única janela iluminada da noite, para trás fica o molhe, onde uma gaivota assiste,  de um certo banco, à serenidade de um fim.

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Deixai a aparição emergir no seio da aparência



Há vozes que, apesar de já caladas, ainda nos norteiam os passos, volta e meia, frases suas fazem-se ouvir, como é o caso desta, por norma, assim começava as frases (“Meus amigos, meus amigos…”), depois lá vinha a sentença, hoje só vou falar desta (“Deixai a aparição emergir no seio da aparência”), de facto, há frases que levam uma vida para serem compreendidas, ou talvez mais, o primeiro convite desta frase é à paciência, à espera, tão difícil, sobretudo para quem já olhou a “finitude” nos olhos, tão bem a sabe, e compreendeu que o presente é um constante passado, de vez em quando, dou por mim a revisitar velhos álbuns de fotografias, neste momento, há fotos de grupo onde se somam mais ausências que presenças, começa a enraizar-se a ideia de transitoriedade, também eu, um dia, serei uma ausência, um gesto esfumado, uma voz sumida, um rosto distorcido, é curioso, se antes, perante este “abismo”, apoderava-se de mim um terror frio e desmesurado, agora, somente resignação, uma espera consciente pela noite que se aproxima, com a sua passada indistinta e surda, nesta fase da vida, creio que a precipitação, a impaciência, em vez de agilizar as coisas, apenas as agudiza, as demora num doloroso arrastar, como se atentássemos “a ordem natural das coisas”, outra voz, outra sentença, hoje por aqui, “Meu filho, meu filho, o que é teu à tua mão virá ter”, pois, outro convite à paciência, à espera, tão difícil, sobretudo para quem já olhou a “finitude” nos olhos, tão bem a sabe, e compreendeu que o presente é um constante passado, a voz da primeira frase era de um sacerdote, homem idoso (o outro tem sempre a idade de quando o conhecemos), consagrado aos estudos, de trato fácil, humano, sapiente, a voz da segunda frase era de uma mulher idosa (o outro tem sempre a idade de quando o conhecemos), com a quarta-classe, mas a antiga, detentora da reconhecida dignidade (quantas vezes, meu pai, lá por casa: “Valia mais a quarta-classe antiga, do que o vosso liceu…”, curioso, hoje talvez lhe conceda uma larga percentagem de razão), sofrida, amarga, com o seu quê de intriguista (pena serem as últimas impressões a perdurar…), porém, ambas as vozes, provenientes de dois continentes distintos do panorama humano, apontam no mesmo sentido: o da paciência, da espera, tão difícil, sobretudo para quem já olhou a “finitude” nos olhos, tão bem a sabe, e compreendeu que o presente é um constante passado, mas, se bem analisar, quantos erros cometidos por silenciar estas vozes? E outras? Talvez por isso, volta e meia, dê por mim a revisitar velhos álbuns de fotografias, neste momento, há fotos de grupo onde se somam mais ausências que presenças, há uns dias, olhei não a foto de grupo do meu casamento, mas o lugar onde foi tirada, uns degraus, pareceram-me mais na altura, à porta da igreja, e contabilizei mais de oito ausências, ainda nem duas décadas, e oito ausências, daí a dor, a incompreensão, de revisitar velhos álbuns de fotografias, e a questão sem voz a levantar-se: “Ir-nos-emos reencontrar?”, não tanto para onde vamos quando formos uma ausência aos olhos de alguém, mas se, de facto, aqueles idos rostos, silenciadas vozes, esfumados gestos, serão de novo uma presença? E o Sentido? Onde? Detenho-me ainda com essa foto, na forma de uns degraus entardecidos, afinal, a fotografia em mim e não diante do meu olhar, ali apenas os degraus, em pedra, indiferentes, como se, nem há duas décadas, tivesse ali sido tirada uma fotografia, com uma centena e meia de convidados, agora, pelo menos, mais de oito ausências, sem contar os casais separados, muito para além do simples oito, sobre os degraus uma brisa vespertina, continuo a olhá-los, e neles encontro a paisagem interior que me habita, vozes animadas, felicitações, cortesia, boa disposição, futuro no olhar, como se isto fosse o viver, quando, de todo, não o é, não se somassem já mais de oito ausências, sem contar os casais separados, muito para além do simples oito, tudo uma ilusão, só os degraus testemunham a realidade da paisagem que me habita o pensar, e a brisa vespertina traz-me o eco de vozes animadas, felicitações, cortesia e boa disposição, num dia por vir, alguém revisitará velhos álbuns de fotografias, possivelmente se detenha a olhar estes degraus, e eu já seja mais uma ausência a somar na fotografia, se atentar na brisa vespertina sobre os degraus, talvez encontre um vislumbre destas palavras, afinal a ausência está sempre no olhar.

domingo, 3 de novembro de 2024

Passagens nocturnas


 

Acordou com o berço em tumulto, antes de abrir os olhos, já um pé, no soalho, relembrava-lhe Inverno, nem hesitou, seguiu-se o outro, e dois ou três passos até ao berço, ali estava, nesse momento, o seu universo, bastou os lábios pela testa para se aperceber da febre galopante, nem forças para o choro, havia cuidados prementes que urgiam, olhou para o outro lado da sua cama, deitado de bruços, boca aberta, assemelhava-se a um suíno, uma imediata resolução clarificou-se-lhe: não valia a pena despertá-lo! Vestiu um longo casaco, mudou o calçado, agasalhou o máximo que pôde a criança, e saiu para a noite do Inverno, àquela hora, de um dia de semana, na aparência tudo dormia, os carros pareciam brotar a cada passo, o deles ficara na rua de baixo, já somava duas décadas, nem vislumbres de mudança, os bolsos mal davam para a manutenção na oficina, sempre que uma luz nova, por este ou aquele motivo, ele em impropérios raivosos ou murros no volante, como se daí proviesse o desejado milagre de bolsos fartos e de luzes caladas,  serpenteou, com o filho nos braços, entre viaturas, a adrenalina escudou-a do frio e fê-la estugar o passo, o sono ficara na almofada assim que o berço em tumulto, ao jantar, pela apatia, previra que o filho acolhia a primeira gripe daquele Inverno, ainda lhe falou nisso, a atenção dele, no entanto, com um qualquer jogo da bola, aquando do namoro não se apercebera da sua paixão pela bola, representamos tanto, pensou ela, talvez demasiado, escondemo-nos e escondemo-nos para quê? Para, numa noite de Inverno, compreender a inutilidade que, a seu lado, dorme, de boca aberta, e ronca como um suíno, se o acordasse, saberia, de antemão, o rosário de desculpas para a dissuadir de, àquela hora, sair com o bebé nos braços (“Deixa-te de coisas! Lá estás tu a ver filmes! Não tem febre nenhuma! Descansa, deixa-nos dormir, amanhã verás que está tudo bem! Deve ser uma gripezita de nada! Normal nesta altura do ano…”), pois, não valia, de todo, a pena acordá-lo, depois de colocar o filho, na cadeirinha, no banco traseiro, sentiu o frio do momento assim que pousou os dedos no volante, só nesse instante compreendeu que saíra para a noite do Inverno, à primeira o carro não pegou, o frio não tolhia só os pensantes, as máquinas também se ressentiam, foi à segunda tentativa, a luz da reserva iluminou-lhe o rosto, afinal, havia luzes no seu horizonte, soltou uma longuíssima expiração, não se recorda de pegar no carro sem visualizar aquela desesperante luz amarela, parecia gritar-lhe a insuficiência dos bolsos, calculou o que restava de combustível e simultaneamente a distância, de ida e volta, até às urgências mais próximas, o filho emudecido no banco traseiro, ela desesperada com a situação, ensonada, sozinha na noite do Inverno, passada a adrenalina, o frio ameaçava engoli-la, dentro de quatro horas, o seu despertador relembra-lhe que o Inferno não é um lugar tão longe assim, ainda tem de realizar cálculos matemáticos especulativos para saber se consegue ir e regressar, àquela hora, de um dia de semana, encolheu os ombros e confiou que sim, ao contrário do habitual encontrou um lugar próximo da entrada, talvez pouca gente por ali, o porteiro, dentro da sua gaiola, lia ou folheava, no hoje ler é um verbo em crescente desuso, um jornal, não fosse o seu desespero com a apatia do filho, e ter-se-ia espantado com o facto de o porteiro não estar agarrado ao maldito rectângulo destes dias, quão raro isso é, disse ao que vinha, ele prontamente indica-lhe o óbvio: a luminosa e simultaneamente funesta entrada a cinquenta metros; para lé se dirige com o filho nos braços, não sabe a razão, mas pareceu-lhe mais leve, assim que percepciona a multidão ali dentro, nem uma cadeira vazia, mesmo as paredes, segundo recurso para quem vai enfrentar a espera, com escassíssimos espaços vazios onde se encostar, uma cacofonia de espirros e tosse, instintivamente cobriu, com suavidade, o rosto do filho, na aparência tudo dormia, como as coisas mudam no espaço do viver, ali parecia meio-dia, o retirar da senha, o enfrentar da espera, o cansaço a traduzir-se numa crescente dor-de-cabeça, permaneceu próxima da entrada, por ali o ar ia-se renovando, meia-hora depois, o seu número pelo altifalante, nem se apercebeu de que já respondia, numa mecanicidade crescente, a números de cartão, mais números de outros cartões, estranhou a ausência de questões pelo nome (Quando passámos a ser apenas um número?), perguntou-se, “A pediatria está sobrecarregada… Quanto tempo? Mais de três horas! Segundo-piso, corredor do lado direito… À entrada tem uma máquina-de-café, também há aqui outra, do lado…”, deixou de a ouvir, dentro de quatro horas, o seu despertador relembra-lhe que o Inferno não é um lugar tão longe assim, desvela o rosto do filho, que a olha com uma indizível ternura, como se fosse a única luz do mundo.