Com quantos rostos nos cruzamos numa vida? A questão saiu-lhe ao caminho assim, num repente, como se caída de um qualquer lado, olhava-se da janela sem lá estar, mas não se reconhecia (algum dia se reconhecera?), o autocarro prosseguia a sua marcha soluçada, ele continuava a olhar-se, numa insistência obstinada, da janela para si, por fim, declinou, baixando o olhar, aquele confronto consigo mesmo, sem dúvida o mais funesto, as primeiras luzes prenunciavam noite, uma chuva miudinha apressou vultos nos passeios, é a hora do regresso, pensou ele, todos correm para um não sei quê, como se alguém os esperasse, sabia que grande parte corria rumo a um desamparo de silêncios, talvez a voz de uma tia velha acamada, um inevitável gato, sempre estimula o verbo e permite povoar silêncios, se um cão, mais barulho, movimento, ainda o regresso à rua, o passeio que ajuda à digestão, mas vê-os a correr, numa estranha pressa de urgências, como se uma voz interior os instigasse a acelerar o passo rumo àquele desamparo por ora encoberto, só ele, dali, embalado por aquela marcha soluçada, perscrutava-lhes a tia velha acamada, um inevitável gato, sempre estimula o verbo e permite povoar silêncios, se um cão, mais barulho, movimento, ainda o regresso à rua, o passeio que ajuda à digestão, sentado, em frente, estava um sujeito mais novo, embora reconhecesse a sua crescente dificuldade em atribuir idades, talvez por achar que a sua soma mais que a dos outros, é possível, a olhar os atacadores dos sapatos, a cabeça oscilava a cada soluço do autocarro, segurava uma pasta transparente que permitia ler, com o devido destaque, curriculum vitae, envergava um fato anacrónico, em alguns pontos coçado, a indiciar que talvez fosse o seu único, os sapatos denotavam um vasto conhecimento de calcorrear calçadas, e a sua expressão, balanceada pelos soluços do autocarro, curvado para a frente, a olhar os atacadores dos sapatos, uma ilustração de quem começa a virar as costas ao amanhã, contudo, apesar de hoje ser uma ruína de esperança, o fato anacrónico e coçado passará a noite nas costas de uma cadeira, tem de se amarrotar o menos possível, amanhã talvez se levante ainda mais cedo, cumprirá com a barba, que a esta hora já desponta, acinzentando-lhe o rosto, uma caneca de leite frio, sorvida sem direito a gosto, pela rapidez, pega na pasta transparente que permitia ler, com o devido destaque, curriculum vitae, e regressa às calçadas do mundo, na esperança de que alguém se demore com o conteúdo da pasta transparente, perceba que andou demasiados anos vergado para teorias, abstracções, ideais, que lhe dê valor por isso, então, pode ser que uma porta se abra, e o mundo tenha, afinal, um lugar à sua espera, pode ser que… Se isso acontecesse, reservava uma mesa no café lá do bairro, em frente à sua porta, e seria ele a convidar os pais, velhos e reformados, para um bitoque, têm fama de serem bem abastecidos, a seu lado, desde há duas ou três paragens, uma mulher, andaria pelos trinta anos, emanava um cheiro a detergentes, apesar de sentada, das oscilações da cabeça a cada soluço do autocarro, percebia-se-lhe a magreza, e não era uma magreza por opção, quem opta por este caminho detém um ar de triunfo, ela, inversamente, soçobrava em desalento e cansaço, segurava um saco de plástico verde, talvez uma hipótese de jantar, de vez em quando, o sono resgatava-a do daqui e o olhar fechava-se-lhe, apenas por escassos segundos, havia nela, acima de tudo, um sentido de dever, era possível que dois filhos a aguardassem para o jantar, dois rapazes, um com treze, o outro andaria pelos oito, de pais diferentes, o mais velho fruto do primeiro amor, ambos adolescentes, a altura em que a vida é um contínuo presente, as descobertas, o sentir que asfixia o pensar, de repente, um filho nos braços, ele agora uma ausência, afinal, a cobardia, neste ponto, norteou-lhe a direcção dos passos, nunca mais o viu, isto não é inteiramente correcto, cruzaram-se duas ou três vezes na rua, ele fingiu não a ver ou mudou de passeio, o que mais lhe doeu, no fundo, foi o facto de, nem por uma vez, se ter abeirado do rosto do filho, já era a voz da maternidade que estava ao leme das suas emoções, na vizinhança dizia-se que tinha seguido os passos da mãe, A falta que um homem faz… Está aqui o resultado! Criada sem pai, o que se podia esperar? A casa de uma assoalhada, num bairro económico, povoou-se de utensílios de bebé, a mãe, consagrada ao álcool, fê-la optar pelo trabalho, afinal, agora tinha uma boca para alimentar, quando informou a escola, das suas intenções, ainda houve professores que a tentaram demover, sobretudo a de Matemática, que lhe chegou a cantar os dotes para a arte dos números, inclusive chegaram a ir a casa falar com a mãe, que os recebeu de garrafa na mão e apontou, de imediato, para o berço, enquanto gritava repetidamente Quem é que o vai alimentar? Quem é que o vai alimentar? Por acaso, julgam que vou ser eu? É isso que pensam? Daí aos impropérios, nem meia dezena de segundos, e os cálculos matemáticos que a ocuparam passaram a ser os mais complexos possíveis: os da sobrevivência. Desde então, ganha a vida a limpar a casa dos outros, é trabalho e é honrado, encontrou conforto e confiança, passados alguns anos, nos braços de um amigo, repositor num super-mercado, tiveram um filho, ele assumiu-se como padrasto do mais velho, não é um homem perfeito, não, longe disso, tem muitas falhas, mas ela vê-lhe uma qualidade ímpar: não há dia em que não se abeire demoradamente do rosto do filho… É a hora do regresso, pensou ele, todos correm para um não sei quê, como se alguém os esperasse, sabia que grande parte corria rumo a um desamparo de silêncios, e aí chegados, onde como único eco a voz do pensar, antes de nos abandonarmos aos caprichos do sono, nesse indistinto entre o aqui e um qualquer outro lado, compreendemos o outro que poderíamos ter sido, se…