Livros do Escritor

Livros do Escritor

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

O ténue equilíbrio da indistinta memória de um rosto

 



Com quantos rostos nos cruzamos numa vida? A questão saiu-lhe ao caminho assim, num repente, como se caída de um qualquer lado, olhava-se da janela sem lá estar, mas não se reconhecia (algum dia se reconhecera?), o autocarro prosseguia a sua marcha soluçada, ele continuava a olhar-se, numa insistência obstinada, da janela para si, por fim, declinou, baixando o olhar, aquele confronto consigo mesmo, sem dúvida o mais funesto, as primeiras luzes prenunciavam noite, uma chuva miudinha apressou vultos nos passeios, é a hora do regresso, pensou ele, todos correm para um não sei quê, como se alguém os esperasse, sabia que grande parte corria rumo a um desamparo de silêncios, talvez a voz de uma tia velha acamada, um inevitável gato, sempre estimula o verbo e permite povoar silêncios, se um cão, mais barulho, movimento, ainda o regresso à rua, o passeio que ajuda à digestão, mas vê-os a correr, numa estranha pressa de urgências, como se uma voz interior os instigasse a acelerar o passo rumo àquele desamparo por ora encoberto, só ele, dali, embalado por aquela marcha soluçada, perscrutava-lhes a tia velha acamada, um inevitável gato, sempre estimula o verbo e permite povoar silêncios, se um cão, mais barulho, movimento, ainda o regresso à rua, o passeio que ajuda à digestão, sentado, em frente, estava um sujeito mais novo, embora reconhecesse a sua crescente dificuldade em atribuir idades, talvez por achar que a sua soma mais que a dos outros, é possível, a olhar os atacadores dos sapatos, a cabeça oscilava a cada soluço do autocarro, segurava uma pasta transparente que permitia ler, com o devido destaque, curriculum vitae, envergava um fato anacrónico, em alguns pontos coçado, a indiciar que talvez fosse o seu único, os sapatos denotavam um vasto conhecimento de calcorrear calçadas, e a sua expressão, balanceada pelos soluços do autocarro, curvado para a frente, a olhar os atacadores dos sapatos, uma ilustração de quem começa a virar as costas ao amanhã, contudo, apesar de hoje ser uma ruína de esperança, o fato anacrónico e coçado passará a noite nas costas de uma cadeira, tem de se amarrotar o menos possível, amanhã talvez se levante ainda mais cedo, cumprirá com a barba, que a esta hora já desponta, acinzentando-lhe o rosto, uma caneca de leite frio, sorvida sem direito a gosto, pela rapidez, pega na pasta transparente que permitia ler, com o devido destaque, curriculum vitae, e regressa às calçadas do mundo, na esperança de que alguém se demore com o conteúdo da pasta transparente, perceba que andou demasiados anos vergado para teorias, abstracções, ideais, que lhe dê valor por isso, então, pode ser que uma porta se abra, e o mundo tenha, afinal, um lugar à sua espera, pode ser que… Se isso acontecesse, reservava uma mesa no café lá do bairro, em frente à sua porta, e seria ele a convidar os pais, velhos e reformados, para um bitoque, têm fama de serem bem abastecidos, a seu lado, desde há duas ou três paragens, uma mulher, andaria pelos trinta anos, emanava um cheiro a detergentes, apesar de sentada, das oscilações da cabeça a cada soluço do autocarro, percebia-se-lhe a magreza, e não era uma magreza por opção, quem opta por este caminho detém um ar de triunfo, ela, inversamente, soçobrava em desalento e cansaço, segurava um saco de plástico verde, talvez uma hipótese de jantar, de vez em quando, o sono resgatava-a do daqui e o olhar fechava-se-lhe, apenas por escassos segundos, havia nela, acima de tudo, um sentido de dever, era possível que dois filhos a aguardassem para o jantar, dois rapazes, um com treze, o outro andaria pelos oito, de pais diferentes, o mais velho fruto do primeiro amor, ambos adolescentes, a altura em que a vida é um contínuo presente, as descobertas, o sentir que asfixia o pensar, de repente, um filho nos braços, ele agora uma ausência, afinal, a cobardia, neste ponto, norteou-lhe a direcção dos passos, nunca mais o viu, isto não é inteiramente correcto, cruzaram-se duas ou três vezes na rua, ele fingiu não a ver ou mudou de passeio, o que mais lhe doeu, no fundo, foi o facto de, nem por uma vez, se ter abeirado do rosto do filho, já era a voz da maternidade que estava ao leme das suas emoções, na vizinhança dizia-se que tinha seguido os passos da mãe, A falta que um homem faz… Está aqui o resultado! Criada sem pai, o que se podia esperar? A casa de uma assoalhada, num bairro económico, povoou-se de utensílios de bebé, a mãe, consagrada ao álcool, fê-la optar pelo trabalho, afinal, agora tinha uma boca para alimentar, quando informou a escola, das suas intenções, ainda houve professores que a tentaram demover, sobretudo a de Matemática, que lhe chegou a cantar os dotes para a arte dos números, inclusive chegaram a ir a casa falar com a mãe, que os recebeu de garrafa na mão e apontou, de imediato, para o berço, enquanto gritava repetidamente Quem é que o vai alimentar? Quem é que o vai alimentar? Por acaso, julgam que vou ser eu? É isso que pensam? Daí aos impropérios, nem meia dezena de segundos, e os cálculos matemáticos que a ocuparam passaram a ser os mais complexos possíveis: os da sobrevivência. Desde então, ganha a vida a limpar a casa dos outros, é trabalho e é honrado, encontrou conforto e confiança, passados alguns anos, nos braços de um amigo, repositor num super-mercado, tiveram um filho, ele assumiu-se como padrasto do mais velho, não é um homem perfeito, não, longe disso, tem muitas falhas, mas ela vê-lhe uma qualidade ímpar: não há dia em que não se abeire demoradamente do rosto do filho… É a hora do regresso, pensou ele, todos correm para um não sei quê, como se alguém os esperasse, sabia que grande parte corria rumo a um desamparo de silêncios, e aí chegados, onde como único eco a voz do pensar, antes de nos abandonarmos aos caprichos do sono, nesse indistinto entre o aqui e um qualquer outro lado, compreendemos o outro que poderíamos ter sido, se…

domingo, 27 de outubro de 2024

A migração das almas

 


Algures entre o alívio e a compaixão, olhei o avolumar de viaturas em redor daquele edifício disforme, sem rasgos para o exterior, numa evidente ameaça de opacidade, parecia tudo engolir em volta, um monstro insaciável que se alimentava de qualquer resquício de vida, já por ali caminhei, olho, daqui, esse outro “eu” sem saudade, até com dó, trocar o céu do mundo pela artificialidade de candeeiros, horizontes azuis ou verdes por cartazes onde se lê, em garrafais letras, “Promoções” ou “Saldos”, a ânsia por mais aquilo, uma peça-de-roupa ou mais uns ténis, ela perdida entre vestidos, blusas, calças, sapatos, sedenta na procura de algo que lhe parecia escapar entre a floresta de cabides e a montanha de roupa acumulada, falo disto como se numa outra existência e, afinal, há tão pouco, demorei a compreender, como demorei, que o prazer dali retirado restringia-se somente ao acto de aquisição, de outro modo, àquele fugaz instante em que o dinheiro sai da minha conta e viaja sofregamente para outra carteira, esse outro “eu”, como todos que aqui ainda não aportaram, contente e apatetado por somar um produto que, de todo, não precisava, há qualquer coisa de inebriante nisto de somar, quem sabe se pelo facto de a subtracção na conta, nesse momento, ainda não ser tangível, dentro daquele edifício disforme, sem rasgos para o exterior, numa evidente ameaça de opacidade, parecia tudo engolir em volta, sacos pela mão conferem um estatuto de altivez, materialização de um desejo comum a todos que percorrem aqueles extensos e largos corredores em busca de algo que, de todo, não precisam, mas há qualquer coisa de inebriante nisto de somar, demorei a compreender, como demorei, incautos insectos apanhados numa teia que vai tanto além da sua parca intelecção, em alguns compreende-se-lhes os bolsos tão aquém da volumetria dos sacos, seguem a sua marcha numa vertiginosa alienação sustentada pelo pecúlio de meses ainda não chegados, um dos aspectos que mais me fascinava era o olhar detectivesco dela, e de outras por mim observadas, a examinar uma insignificantíssima peça-de-roupa, como se por ali o Sentido da existência ou quiçá o próprio Graal, felizmente sempre houve cambiantes, nesta caminha, onde sempre estive muito aquém,  a avidez do olhar a percorrer o objecto sustido pelas mãos, de seguida o inflexível guião de perguntas (“Gostas? Achas que me fica bem? Diz lá: o que te parece? Achas que experimente? Não tenho nenhuma igual, pois não? Não sei se noutra côr…”), para fatalmente terminar com mais uma visita ao provador, uma dezena, no mínimo, de minutos, entre despir, vestir, olhar-se no espelho, sair, a dúvida-existencial que decide o percurso de uma existência: “Diz lá: achas que me fica mesmo bem?”; antes que pudesse verbalizar uma sílaba, “Eu vou levar!”, pois, o percurso de uma existência estava em jogo, não se podia facilitar, havia radicais decisões a tomar, com o tempo, comecei a asfixiar  dentro daqueles edifícios disformes, sem rasgos para o exterior, numa evidente ameaça de opacidade, pareciam tudo engolir em volta, por fim, concluí a enormíssima estupidez de somar um produto que, de todo, não precisava e de trocar o céu do mundo pela artificialidade de candeeiros, horizontes azuis ou verdes por cartazes onde se lê, em garrafais letras, “Promoções” ou “Saldos”, ainda sinto, ao olhar aquele edifício disforme, sem rasgos para o exterior, numa evidente ameaça de opacidade, a asfixia de antes, por aqui ainda lateja, creio que jamais me abandonará, a indelével marca da infelicidade, um estigma na alma, pela cega insistência em calar uma asfixia pressentida, à minha frente, agora, um horizonte de verde parece tanger o azul das alturas, para trás ficou o avolumar de viaturas em redor daquele edifício disforme,  sem rasgos para o exterior, numa evidente ameaça de opacidade, expiro longamente, talvez ela distante dos passos do meu pensar, espero que sim, para quê partilhar, agora, tão nocturnas passagens, ignoro se alguém, tal como nós, concluiu a enormíssima estupidez de somar um produto que, de todo, não precisava e de trocar o céu do mundo pela artificialidade de candeeiros, horizontes azuis ou verdes por cartazes onde se lê, em garrafais letras, “Promoções” ou “Saldos”, doravante, só procuro, no olhar da mulher que estiver a meu lado, avidez em contemplar um horizonte que nos harmonize o respirar.

Pedro de Sá

(27/10/24)

domingo, 20 de outubro de 2024

O indizível de cada um…

 



Àquela tão matinal hora, a sala quase despovoada, dois vultos apenas, um debruçado sobre a alienação do hoje, confesso já nem indignação sentir, apenas dó, até pela crescente dívida com as cervicais, e não só, o outro sentado, numa das mesas, o écran iluminava-lhe o rosto, absorta, pois, era uma, a premir teclas num galope crescente, eu ainda não refeito do divórcio, abrupto e repentino, com o sono, olhava, algures entre o espanto e a incompreensão, aquela figura, como era possível, àquela tão matinal hora, possuir  energia para dedilhar tão furiosamente um teclado, por educação lá me saiu um “Bom-dia” sumido, ambos responderam no mesmo tom, a hora não era para mais, abeirei-me das janelas voltadas para o nascer do mundo, aquele, sim, era o meu écran, a realidade no seu renovar de uma sempre adiada esperança, apesar de há muito conhecer este facto, não me canso de olhar a ascensão da luz e a derrota das trevas, uma linha de um difuso alaranjado, na lonjura, lentamente erguia-se esbatendo as poucas estrelas ainda tremeluzentes, olhar horizontes sempre me levou para longe da minha circunstância, daí o meu fascínio pela lonjura, nas minhas costas o dedilhar mantinha-se, nem virei o rosto para ver se o outro ainda debruçado sobre a alienação do hoje, uma questão, vinda de parte incógnita, nasceu-me: Estará a palavra a morrer? Ali estávamos três, àquela tão matinal hora, a noite ainda a pegar na sua mala para deixar o palco, só o dedilhar no teclado não permitia que o silêncio nos sufocasse, e um ou outro riso apatetado do que se debruçava para a alienação do hoje, de novo Estará a palavra a morrer? Desceu-me tristeza, lá fora a vida ressurgia como se o ontem jamais por aqui caminhasse, onde não havia vultos debruçados sobre alienações, este pensamento povoa-me e simultaneamente a tristeza adensa-se-me, somos três, numa sala, nesta manhã outonal, e apenas trocámos um sumido “Bom-dia,” aquando da minha chegada, estou aqui há mais de dez minutos, e somente trocámos um sumido “Bom-dia,”  creio que perdemos a capacidade de nos dizermos, ou não faltará muito para este facto,  se há algo de fascinante neste espaço é o horizonte contemplado, sou o único, de costas voltadas para a sala, a perder-me com horizontes, sempre me levou para longe da minha circunstância, daí o meu fascínio pela lonjura, de repente, o dedilhar cessa, o meu espírito agradece, ouço-a a abrir o fecho da mala para arrumar o aparelho, quase visualizo a cena, mas mantenho-me de costas voltadas, a linha de um difuso alaranjado gradualmente decresce para um amarelo-vivo que tudo ilumina em volta, parece um grito da própria vida, cada vez mais se ouvem gritos emudecidos, angústias soterradas sob maquilhagem ou sorrisos-plásticos, o dedilhar furioso, que há pouco cessou, é um exemplo: aquela mulher, numa tão matinal hora, que mensagem redigia e para quem? Não lhe vi a expressão, apenas ouvi a fúria e pressa nas teclas, uma urgência de aquietar algo, de silenciar uma incómoda voz, de deixar para trás, antes enfrentar um novo dia de indesejado trabalho, uma inquietante sombra, quantas sombras trazemos connosco? Pois, uma questão que poucos terão verbalizado: quantas sombras trazemos connosco? Daí não me cansar de ver a ascensão da luz e a derrota das trevas, olhar horizontes sempre me levou para longe da minha circunstância, daí o meu fascínio pela lonjura, percebo a chegada de novas vozes, algumas num excesso histriónico para tão matinal hora, resolvo deixar o horizonte contemplado, a magia diluiu-se com a ascensão da demasia luminosa, talvez o sublime resida nos “entretantos,” naquele espaço entre um “adeus” e a “promessa de algo,” foi o que concluí, a sala já somava mais de uma dezena, resolvo sair, encaminho-me para a porta, reparo que, do dedilhar incessante, ela agora numa luta sem tréguas para enfiar o computador na mala, o vazio de uma aliança gritava-se-lhe do anelar esquerdo, interrompe os bruscos movimentos para calar o sentir que ameaçava se precipitar pela sua face, a questão regressa-me: Estará a palavra a morrer?

(20/10/24)

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

De mãos dadas só nos passos da memória

 


Não sei porquê, mas sinto a censura, não a percebo, não a ouço, não a olho, apenas e só a sinto, naquele indizível a que só alguns acedem, nunca percebi se é um privilégio ou uma condenação, após o almoço, quando as sombras ameaçam tomar-me a casa, um rés-do-chão no subúrbio, desde já sublinho que não a trocava por palácio algum, é a minha casa, no fundo, a minha segunda pele, há, pelo menos, quarenta anos… Quarenta anos, sempre ouvi os mais velhos gastarem a expressão parece que foi ontem, mas nenhuma outra me ocorre para melhor ilustrar este sentir desamparado e de espanto face à vida, de facto, parece que foi ontem, ele ainda renitente Rés-do-chão… Não achas perigoso? Pelo menos, o primeiro-andar… Talvez tivesse razão, no entanto, as pernas da nossa carteira só ali chegavam, o que ainda trago dessa altura foi a alegria desmedida quando pendurei os cortinados, por mim escolhidos, na sala, realmente, acho que foi a única coisa que escapou ao crivo de pais e sogros, mas isto foi há tanto, numa altura em que olhávamos o outro nos olhos e proferíamos, com uma expressão sorridente, um audível bom dia ou boa tarde, porque, à noite, meninas ou senhoras dignas confinavam-se ao seu lar, na altura, verbalizava interiormente o meu repúdio por tais convenções, hoje, com o que vejo, a minha imensa saudade, de novo, a expressão gasta, parece que foi ontem, quarenta anos, nesse tempo, após o almoço, nem sinal de sombras a invadir-me a casa, parecia que, no mundo, tudo estava no seu lugar, só que o tempo passou e ultimamente parece ter acelerado em demasia, já não afasto os cortinados de agora para ver a rua, se o fizesse, apenas sombras das alturas cinzentas erigidas à nossa volta, como dizia, após o almoço, uma sopinha de feijão-verde, sem batata, as forças não chegam para as trazer do mercado e a bolsa ainda menos, um pão com marmelada, felizmente, para mim, o apetite tem acompanhado os passos da carteira, quando as sombras ameaçam tomar-me a casa, um rés-do-chão no subúrbio, desde já sublinho que não a trocava por palácio algum, é a minha casa, no fundo, a minha segunda pele, há, pelo menos, quarenta anos, desço a rua e vou visitá-lo, as vizinhas e a censura pressentida, sempre a pior, a mais vil, como se o seu sentir pelos maridos fosse mais nobre que o meu, fiz o que considerei melhor para ambos, para ele ter os cuidados devidos, e para que eu ainda por cá ande para o visitar todos os dias, magro como estava, uma sopinha de feijão-verde, sem batata, e um pão com marmelada não seriam suficientes, consegui, quase por milagre, um lugar para ele, sei que é bem tratado, mesmo assim, zelo para que nada lhe falte, asseio, comida, paz, parece pouco, mas é tudo, e uma vida para perceber isto, há dias em que olha daquela distância incógnita, nem uma palavra lhe sai, confesso que me fere, fere-me de uma forma, não sei como explicar, como se uma derrota muito subterrânea, que só nos a percebemos, como se nos alvejassem num órgão-vital e padecêssemos perante a impassibilidade alheia, e, ao fim de quarenta anos, parece que foi ontem, a partilhar sonhos e lágrimas, dói, e de que forma, nas funduras de nós, olha-me como se fosse mais uma qualquer ali na sala, quando antes, e não há tanto tempo assim, o seu olhar, onde estivéssemos, quando se derramava sobre mim, adormecia-me o pensar para ser apenas sentir, e o mundo tornava-se uma distância imensa, como se a razão de tudo fôssemos nós dois, ali passo as tardes, a seu lado, aconselharam-me a falar-lhe ininterruptamente, de nós, do filho, coitado, emigrado há três anos, e o que me custa falar-lhe disto, se antes o meu repúdio por certas convenções, hoje, com o que vejo, a minha imensa saudade, mas cansei-me antes da primeira palavra, optei pelo gesto, é muito antigo que pelo fruto se conhece a árvore, daí que me julgue certa, volta e meia, quedo-me a olhá-lo demoradamente, e espero que, nesses instantes, ele me dê um vislumbre da direcção dessa incógnita parte que o retém, às vezes parece-me vê-lo a acenar, então, corro para a janela, na sala, do nosso rés-do-chão, abro os cortinados por mim escolhidos, realmente, acho que foi a única coisa que escapou ao crivo de pais e sogros, nem sinal de sombras a invadir-me a casa, parece que, no mundo, tudo está no seu lugar, e vejo-o, no passeio, chegado do trabalho, a sorrir-me, como se a razão de tudo fôssemos nós dois, com um gelado em cada mão, apresso-me a ir ao seu encontro, de facto, parece que foi ontem…


 

Este não é o lugar do sonho, aqui enterram-se os mortos, logo o sonho habita noutro lado, não concordas?

in O lento esvoaçar das cortinas pela manhã

 

sábado, 12 de outubro de 2024

Indiferença


 

Estou cansada de lhe repetir: “A continuares assim, vais acabar sozinha…”; que hei-de fazer? Pois, a questão é essa, argumenta com os seus valores, o amor-próprio, enfim, o tempo passa e nada de assentar, é a realidade, ainda me lembro, estava tão enamorada daquele rapaz, filho de boas famílias, um emprego seguro, não se cansavam de estar juntos, ele vinha buscá-la à porta de casa, muito educado, nunca quis subir, compreensível, respeitador da privacidade alheia, ela, em pressas de descer, ao contrário do habitual, até se esquecia das chaves, parecia outra, uma novidade ao nosso olhar, no início nunca há nuvens pelo horizonte, não é verdade? Aparecem inevitavelmente mais à frente, e vezes demais acabam por turvar todo o horizonte, confesso ter acreditado que seria desta, havia uma luz distinta pelo seu rosto, não me pergunte porquê, talvez o facto de lhe redireccionar o olhar para horizontes esquecidos, pois, é possível, bom, como dizia, confesso ter acreditado que seria desta, havia uma luz distinta pelo seu rosto , não me pergunte porquê, o tempo a passar e, como sempre, de noite, os fantasmas que ela carrega a atormentá-la, todos carregamos os nossos, como bem sabe, e a hora preferencial para nos visitarem é quando pousamos o rosto na almofada, ouvi, enganei-me, nada ouvi, percebi, não me pergunte como, talvez pelo dedilhar rápido naquele maldito aparelho que, de forma alguma, poucos largam, haver algo errado, as primeiras nuvens pousavam no horizonte, as suas feições assemelhavam-se a uma escultura de gelo, estava em despedidas, limitei-me a seguir caminho, tinha o jantar ao lume, ela estava à janela, vi-a de relance, o maldito aparelho que, de forma alguma, poucos largam, nas mãos, o perfil frio e pétreo, já lhe vislumbrara tal expressão, desconheço, como é óbvio, a reacção do outro lado, não havia vozes, apenas dedilhares num rectângulo, ontem: não se cansavam de estar juntos, ele vinha buscá-la à porta de casa, muito educado, nunca quis subir, compreensível, respeitador da privacidade alheia, ela, em pressas de descer, ao contrário do habitual, até se esquecia das chaves, parecia outra; hoje: o perfil frio e pétreo, nunca a percebi, ou talvez atirasse para bem longe a minha leitura dos factos: um permanente ajuste-de-contas com o passado; amanhã: a procura de uma nova e incauta presa; tornou-se uma caçadora por uma ferida de lá bem atrás, há uns meses, chegou muito incomodada a casa, percebi-lhe pelos gestos e passos apressados, depois ouvi-as falar no quarto, a irmã chegou a rir-se, ela não, lá me chegou aos ouvidos o sucedido, cruzara-se, num destes lugares do hoje, com  este último rapaz, filho de boas famílias, parece até terem apanhado o mesmo elevador, no entanto, ele não lhe dirigiu a palavra e nem sequer a olhou, ora isto mexeu com a caçadora por uma ferida de lá bem atrás, se há uns tempos, ele vinha buscá-la à porta de casa, muito educado, nunca quis subir, compreensível, respeitador da privacidade alheia, depois foi despachado por um perfil frio e pétreo que dedilhava, com avidez, o maldito aparelho que, de forma alguma, poucos largam, gostei, assumo, da sentida indignação dela, há momentos em que a vida nos convoca para crescermos, tarde ou cedo batem-nos à porta, ela já soma um (e que momento!), mas prossegue a sua caminhada sob uma anestesia e um delírio de sereia cantante que arrebata os corações de tolinhos perdidos no labirinto do sentir, eis que, de repente, se vê confrontada com a indiferença, quem sabe o pior dos sentires, imagine, num elevador, símbolo da claustrofobia, há uns tempos – não se cansavam de estar juntos, ele vinha buscá-la à porta de casa, muito educado, nunca quis subir, compreensível, respeitador da privacidade alheia, ela, em pressas de descer, ao contrário do habitual, até se esquecia das chaves, parecia outra, uma novidade ao nosso olhar –, agora, na aparência, dois estranhos, que nem a voz se conheciam, jamais se tocaram, nunca partilharam sonhos, admirei aquele rapaz, afirmo-o repetidamente, como o admirei, ainda há homens que sabem onde fica o orgulho, na altura certa, foi buscá-lo e colocou-o ao seu peito, o destino tratou de os situar no mesmo elevador, e ele nem, por um segundo, a olhou, uma infeliz novidade para ela, habituada a olhares famintos e sedentos, por uma ferida de lá bem atrás, creio que a ascensão do elevador afigurou-se-lhe uma eternidade, quando nervosa ela começa a mexer os pés, sempre assim foi, ele impassível, encostado a um dos lados, parece nem ter pestanejado, olhava um indistinto ponto oblíquo, como se estivesse municiado para situações assim, afinal, foram os pés que a traíram, precisamente onde quase todos lhe caíam, de olhares famintos e sedentos, como a vida é estranha, este seu incessante enlear, se ao menos todos tivessem a capacidade de retirar alguma conclusão… Eu vi um homem, após uma longa caminhada através de ruínas, as do sentir, as que mais perduram e ferem a alma, na altura certa, a colocar o orgulho no seu peito.

Pedro de Sá

(11/10/24)

 

 

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

O pároco e a alternadeira


Há demasiados anos que o pároco saturninos estava à frente dos destinos daquela paróquia, era um homenzito vulgar, nada tinha que destoasse, indumentária condizente com o estatuto de sacerdote, com o seu quê de naftalina e um vislumbre de moldura sobre um naperon, numa qualquer camilha, de uma tia velha, a única nota dissonante do pároco saturninos estava precisamente no rosto, as feições pareciam o resultado do cruzamento entre um sabujo e um velhaco, falava-se, amiúde, pelas ruas da freguesia, das suas fraquezas pelo feminino, longe, muito longe, dos ditames norteadores da cruz que representa, e, em verdade, nunca houve muita concorrência para aquela diocese, havia também uma característica, no pároco saturninos, que contribuía sobremaneira para que passasse incólume à maioria dos vendavais da existência, falava, com todos, num tom baixo, arrastado, que instava logo concentração e reverência, como se dele proviessem verdades do além, não nos esqueçamos: indumentária condizente com o estatuto de sacerdote, com o seu quê de naftalina e um vislumbre de moldura sobre um naperon, numa qualquer camilha, de uma tia velha; um dos principais atributos do tempo é tudo desarrumar em volta, aquela paróquia não escapou a esta regra, falava-se, há uns bons anos, em cada canto da freguesia, da paixão do pároco saturninos por uma alternadeira de Amarante, a diferença de idades ia muito para além de duas décadas, não obstante todo o falatório, ninguém colocou em causa o seu papel de guia-espiritual daquelas gentes, pois, há fenómenos muito estranhos debaixo do céu do mundo, quem sabe se uma indumentária condizente com o estatuto de sacerdote, com o seu quê de naftalina e um vislumbre de moldura sobre um naperon, numa qualquer camilha, de uma tia velha, ajudasse a serenar dúvidas e a refrear a maledicência, e como era possível, o pároco saturninos, com o seu tom baixo, arrastado, que instava logo concentração e reverência, como se dele proviessem verdades do além, desviar-se, mais de duas décadas, dos ditames norteadores da cruz que representa?! Há, de facto, fenómenos muito estranhos debaixo do céu do mundo, ninguém falava das óbvias fraquezas do pároco saturninos com o feminino, de estar envolvido com uma alternadeira de Amarante, não, nada disso, as conversas centravam-se na diferença de idades ir muito para além de duas décadas, como se o resto fosse aceitável, pouco demorou até que as gentes dali dessem de caras com a alternadeira à frente da tesouraria da paróquia, era uma sujeita baixa, de carnes muito, muito, fartas, um cabelo permanentemente de costas viradas para a escova, uma cara de suína que jamais conseguiria maquilhar um carácter boçal, esta transição do alterne de Amarante para a tesouraria de um edifício encabeçado pela sagrada-cruz ocorreu, para aquelas gentes, com toda a naturalidade, no fundo, como se sempre ali estivesse a boçal-sorridente, ostentava no focinho um omnipresente sorriso, talvez um conselho do pároco saturninos, para facilitar a sua integração por aqueles lados, a única nota dissonante estava no tom de voz, ao contrário do pároco saturninos, com o seu tom baixo, arrastado, que instava logo concentração e reverência, como se dele proviessem verdades do além, a alternadeira simplesmente berrava, por ali se detectava a sua génese, além da indumentária, claro, camisolas largas, de qualidade duvidosa, que apenas lhe acentuavam ainda mais a fartura de carnes, calças de ganga cujo efeito cénico era similar, e uns ténis de linha-branca que somente acentuavam o carácter confrangedor desta personagem, perante o olhar dos outros, jamais se viu uma intimidade entre o pároco saturninos e a alternadeira de Amarante, embora, de noite, ninguém a visse a abandonar a sacristia, nunca se levantou qualquer voz em contrário, as contas da paróquia lá se faziam, o pároco Saturninos também não caminhava para novo, ninguém caminha, precisava, nos Invernos, que alguém lhe aquecesse os pés, e, neste aspecto, a alternadeira de Amarante era de carnes muito, muito, fartas, e, sempre que alguém tinha uma crise espiritual, bastava bater à porta, lá surgia aquele rosto, parecia o resultado do cruzamento entre um sabujo e um velhaco, pronto a dar um conselho num tom baixo, arrastado, que instava logo concentração e reverência, como se dele proviessem verdades do além, se estivesse frio, não tardaria muito, do interior, a ouvir-se um berro: “Vem mas é para dentro que está frio!”

 

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Já falta pouco…


 

Há lugares que são verdadeiras máquinas-do tempo, simplesmente por nos recordarem que ali entrámos, pela primeira vez, em criança, depois em jovem, por fim, em adulto, hoje vou recordar um desses espaços, ficava na lateral de um prédio, descia-se uma ligeira escada, em verdade pouco mais de uma dezena de degraus, e lá estavam as três cadeiras, na primeira, trabalhava o patrão, não era preciso muito para compreender esse facto, na segunda, o mais velho dos três, embora, para mim, todos o fossem, há uma fase da existência – que dura em demasia, apesar de tão abruptamente se extinguir –, em que todos nos parecem velhos, a vida é tão irónica, por fim, na terceira, estava o que melhor manuseava a arte da tesoura, já em miúdo, lá por casa, meu pai o afirmava, não era de muitas falas, preferia deixar o verbo com a tesoura, despachava três cabeças enquanto o patrão subsistia com a mesma, as sílabas da sua tesoura muito aquém das que proferia, com vivacidade, sobre as habituais temáticas destes contextos, futebol ou política, no entanto, a sua terra-Natal era temática recorrente, bem como o regresso quando a idade e a bolsa lhe permitirem, ficava bem no Norte, o olhar iluminava-se-lhe quando pronunciava o nome, a entoação até se aligeirava, nas férias ou festividades impreterivelmente rumava lá para cima, era habitual, quando dissertava sobre as maravilhas dali, questionar os presentes se conheciam a sua terra-Natal, o “não” era dominante, estava a quase quinhentos quilómetros de distância, o entusiasmo não se lhe subtraía, pelo contrário, cantava as suas múltiplas belezas com renovada alegria, a primeira vez que desci aqueles degraus foi num Inverno, ainda por aqui a imagem de que o sol já se despedira do mundo, as ruas povoadas, como se num repente, por densas trevas, a chuva resolvera cumprimentar o mundo dos homens, olho, da entrada, os degraus, na altura pareciam-me bem mais que uma dezena, intuí, não sei porquê, cumprir um rito de passagem para a idade adulta, por ali só via crescidos, jornais e conversas aborrecidíssimas, o cabide afigurava-se-me uma densíssima floresta imperscrutável de casacos, altos e pesados, eu a questionar-me como sustinha tantas e tantas toneladas, o ecoar da chuva crescia, um velhote, com uma vassoura e pá, diligente na recolha dos cabelos espalhados pelo chão, pois, esquecera-me desta quarta personagem, ainda hoje desconheço se seria familiar de algum dos três, um rosto afável, não obstante a escassez de verbo, também contrastante com o patrão,  inspirava de simpatia, recordo-me de atentar na luz derramada do tecto, similar à da cozinha de casa, sempre gostei destes pormenores, como se encontrasse, em cada recanto, um espelho do lar, quando chegou a minha vez, lá fui para a terceira cadeira, onde estava o que melhor manuseava a arte da tesoura, já em miúdo, lá por casa, meu pai o afirmava, não era de muitas falas, preferia deixar o verbo com a tesoura, após sentar-me, o seu pé no pedal para subir a cadeira, a humilhação a que uma criança é votada, apesar de, nesse momento, eu também me sentir a erguer, estava num lugar de adultos, nem vislumbres dos meus colegas de brincadeiras na rua, em volta apenas cabelos brancos, calvícies reluzentes, sob a luz derramada do tecto, similar à da cozinha de casa, e fartos bigodes, algo que sempre me desagradou, um vestígio indelével do primitivo pelo hoje, quando o meu pensar, por segundos, deu uma pausa, já o tilintar da tesoura ao meu redor, à medida que os cabelos encontravam o chão, assistia, pelo espelho, ao lento regresso de uma dignidade pressentida, há lugares que são verdadeiras máquinas-do tempo, simplesmente por nos recordarem que ali entrámos, pela primeira vez, em criança, depois em jovem, por fim, em adulto, até que, confesso, ali não voltei, por isto ou aquilo, acabei a cortar o cabelo noutras paragens, desconheço se o patrão cumpriu o sonhado regresso à sua terra-Natal, após a idade e a bolsa lhe permitirem, se o mais velho dos três, embora, para mim, todos o fossem, lê, algures, placidamente o seu jornal, sem ânsias ou pressas pelo próximo cliente, sei que o da terceira cadeira, pois, o que melhor manuseava a arte da tesoura, já em miúdo, lá por casa, meu pai o afirmava, não era de muitas falas, preferia deixar o verbo com a tesoura, despachava três cabeças enquanto o patrão subsistia com a mesma, acabou por lá ficar sozinho, cheguei a vê-lo deambular pelo passeio, ao pé da entrada, à espera que alguém aparecesse, logo ele, o que melhor manuseava a arte da tesoura, não encontro palavras para descrever por onde o meu sentir caminhou enquanto o via, por ali, no passeio, de braços cruzados, a porta aberta, ainda consegui vislumbrar os primeiros degraus, há muito concluí vivermos a era da incerteza, como as coisas mudam no espaço do viver, por fim, desistiu de manter a porta aberta, optou por deixar o seu contacto na janela, caso alguém queira cortar o cabelo com quem melhor manuseia a arte da tesoura, basta passarem na rua para ficarem com o número, afinal, não é todos os dias que entramos numa máquina-do-tempo.