
Àquela hora, que precede o jantar, há apenas duas ou
três mesas vagas. Chegam e sentam-se na mais afastada. Ambos de mochila,
chinelos de outros solos, olhar de novidade, e com a pele a gritar
estridentemente por sombras. Pegam na ementa, plastificada, no irreflexo de uma
compreensão linguística sempre adiada. Entreolham-se. Para disfarçar o embaraço
do malogro, socorrem-se de um mapa, que ambos analisam numa acuidade
criteriosa, como se chegados a um oásis, e à volta apenas o desconhecido. Numa
outra mesa, um casal idoso, de silêncios comunicantes, actualiza-se, ele com o
jornal, ela com revistas. O idoso, à sua frente, tem uma chávena vazia (café?).
Ela, ligeiramente para a extremidade direita da mesa, um prato vazio
(torradas?), e, diante de si, uma chávena ainda com um pouco de chá. Não sei
porquê, mas pelos seus gestos adivinha-se a proximidade do lar. Como se esta
esplanada fosse o prolongar de uma certa familiaridade. Neste caso, a do
recato. Porque, se nos demorarmos um pouco neles, compreendemos o saber. Nem se
olham. Absortos na leitura. Mas há nesta leitura um imperativo de ordem
desconhecida. Sim, não se vislumbra ansiedade no folhear. Pelo contrário, é
raro vê-los a mudar de página. Como se a sua leitura estivesse eivada de uma
distância intangível, como aquele viajante que, de um cume longínquo, olha o
distante vale numa saudade e indulgência sorridentes. Sim, é isso. Nada lhes é
novidade, apenas ecos de outras paragens. Daí a lentidão. Talvez a lentidão
seja a aprendizagem do efémero. E estas verdades só são visíveis de um cume. O
meu olhar ainda com os idosos. Por enquanto, não há vislumbres de bengalas.
Apenas sequelas, naturais, da guerra de existir. À minha frente, uma mãe e
filho. Ela morena, com um rosto agradável, apesar de um indesmentível traço de
tristeza, desdobra-se em atenções, demasiado excessivas, para o filho finalizar
o lanche. A criança, com idade suficiente para saber comportar-se, lê a
fraqueza maternal, e diverte-se num jogo de vencedor anunciado. Ela com um
resto de bolo na mão, a estendê-lo, o filho ignora-a, como se a penitenciasse
por uma culpa velada aos demais. Apenas por si conhecida. E ela, exausta, com o
resto de bolo na mão, numa súplica inaudível, ele, porém, numa intransigência
mascarada de brincadeira e enfado. Detenho-me naquele traço de tristeza.
Procuro, agora, a sua génese. De onde provém? Ela procura maquilhá-lo sob
imperativos de moda e uma aura de pressa perceptível. Como se fosse esperada.
Sim, como se sempre alguém a aguardasse. De vez em quando, olha o telemóvel –
muleta da solidão –, por acaso, naquela esplanada, foi a única bengala que vi.
Embora não o tivesse ouvido tocar. Talvez um divórcio recente. Uma guerra com
um despojo. Quem sabe se no rosto do filho se espelhem demasiadas memórias? Um
rosto nunca é uma cara. Pelo contrário, um rosto é sempre o resultado da soma
de muitas máscaras. Mas, quando olhamos alguém, só vemos o nosso espelho. Daí o
nosso equívoco. Daí a nossa cegueira. Olhamos o mundo da varanda do nosso eu. E o outro? Está tão longe! É tão
difícil lá chegar. O filho ao alcance da mão, mas fechado no seu jogo. Ela,
apesar da mão estendida, vê-se a correr numa praia, num desespero gritante,
retira, em aflição crescente, objectos da água, leva-os, numa corrida cansada,
para local seco, a salvo das águas, e persiste, mas o seu olhar sempre além
objectos, sim, houve um naufrágio, recorda-se ela agora, mas não estava
sozinha… E nesse seu frenesim salvífico, não encontra a memória de um rosto. De
súbito, cai de joelhos, não por cansaço, mas por outra razão, enterra as mãos
na areia. Não grita, isso é para os filmes, e deixa-se estar. De certa forma, a
frescura subterrânea da areia acalma-a...