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sábado, 30 de dezembro de 2017






Pedro de Sá



HARMONIA






                      … não choreis por Mim, chorai antes por vós mesmas e pelos vossos filhos…
                                                  Lucas 23, 27-31

Sede prudentes como serpentes e inocentes como pombas.

                                                   Mateus 10:16





ÍNDICE



A página em branco………………………………………..5

A Ideia………………………………………………………50

A Escrita………………………………………….…………100





A página em branco




Se me perguntassem como ali cheguei, não saberia o que responder, afinal, tudo começou há muito. Mas, agora, ali na rua, sob aquele inclemente sol de Agosto, a tarde no seu auge, não havia tempo para considerações acerca da génese deste meu destino. Toquei à campainha, nem hesitei, o trinco da porta demorou o necessário a abrir-se, entrei, aproveitei para respirar fundo e fruir da frescura da entrada forrada a mármores, sempre apreciei a frescura das entradas dos prédios antigos, por vezes, reflectia se, com os tempos, não desaprendêramos de fazer as coisas… Subi a escada até ao primeiro-andar, enquanto ouvia uma porta a abrir-se, aí chegado, deparei-me com uma mulher, de estatura média, era agradável à vista, tinha uma beleza dissonante dos seus gestos e voz, como se um corpo que merecesse outra alma (quantas vezes tal sucede?), teria mais uns dois ou três anos que eu, sempre fui péssimo a estimar idades, porém, desta vez acho que acertara, até porque, de certa forma, estava contextualizado, cumprimentámo-nos, ela Chegou um pouco antes da hora. Não olhei para o relógio, achei que seria uma manifestação de fraqueza, optei por um sorriso, sempre a melhor forma de ocultar sentires e pensares, estendi-lhe a mão, ela retribuiu, cumprimentámo-nos, convidou-me para entrar, conduziu-me para a sala, enquanto Bom, depois do seu telefonema, confesso que dei voltas ao assunto, e não sei bem o que quer de mim… Afinal, não o conheci assim tão bem. Apontou-me para um cadeirão, sentei-me, ela sentou-se, num sofá barato, bem à minha frente, porém, lá prevaleceu um resquício de educação Desculpe, nem lhe perguntei se toma alguma coisa… Quer um café? Não sei porquê, mas nunca tive forças para recusar um café, aceitei, sinceramente, acho que ela esperava o contrário. Levantou-se, enquanto isso, olhei à minha volta, percebia-se que se tratava de um apartamentozito alugado, talvez com uma renda inversamente proporcional ao espaço disponibilizado, mobiliário só o necessário, como é natural nestes infelizes tempos de inconstância, além desta salita onde estávamos, pelas portas que vi, poucas mais divisões deveria ter, regressou com o café, vestia uma roupa de desporto, coçada em vários pontos, as cores esbatidas, uns ténis, apesar de serem de uma marca em voga, não me escapou que fossem o modelo mais básico, o que conferia ao quadro uma nota desagradável, pois, a tal ideia de dissonância, a sua dicção era sofrível e o esforço pelo verbo faziam-na salivar, felizmente ainda estava a alguma distância e eu não uso óculos, mas, assim que se silenciava, de novo, como se por milagre, diante de mim, aquela beleza de há pouco, discreta, é certo, mas tão longínqua daqueles gestos, salivares, roupas coçadas, enfim, houve outro pormenor que não me escapou, desde que ali entrei, não vi um único livro! Sempre achei que uma casa sem livros é um homem sem ideias. Como pôde ele relacionar-se com uma mulher assim? A minha curiosidade aumentava, de facto, ela evidenciava outros atributos, talvez fosse por aí… Como estava a dizer, estendeu-me a chávena e sentou-se no sofá barato, bem à minha frente, não percebo bem o que quer de mim. Já agora, é da família dele? Reparei que o salivar se adensava à medida que ela procurava acelerar o discurso, talvez houvesse também alguma nervoseira à mistura, procurei tranquilizá-la pausando as palavras, Não. Nada disso. Estou a recolher dados para um trabalho académico. Sabe, todos os seus livros são puramente autobiográficos. É esta a minha convicção e quero demonstrá-lo. Acredito que cada linha que escreveu corresponde a um instante vivido. E, como é natural, tenho esperança de encontrar resposta para a sua decisão… Percebe, não é? O que o levou a… Neste ponto, percebi-lhe algum desconforto, remexeu-se, por mais que uma vez, no sofá, Pois, compreendo, mas insisto: não sei como ajudá-lo. Saímos juntos algumas vezes. Nada mais… Compreendi que tinha de me socorrer rapidamente de uma questão, a seiva do diálogo, O que sentiu quando soube da sua morte? A mudança tão repentina, na geografia da conversa, deixou-a perplexa, demorou o seu tempo a recompor-se, Bom, foi terrível, não acha? E naquelas circunstâncias… Não estava nada à espera! Foi um amigo comum que me contou. É curioso, agora que falo nisto, uma parte de mim não ficou surpreendida. Ele falava recorrentemente da morte. Eu até lhe dizia para afastar tais pensamentos. Mas parecia uma obsessão. Começava a achar que, afinal, não tinha perdido o meu tempo! Recostei-me no cadeirão, acho que este gesto a incentivou à palavra, pareceu-me que também ela precisava de reorganizar este acontecimento em si, Certa tarde, estávamos num café, ele andava inquieto, isto sucedia quando não tinha matéria para a escrita, este ponto, claro, não me passou despercebido, se ela, há pouco, afirmou não o conhecer assim tão bem, como é possível saber a génese da sua inquietude? Optei pelo silêncio e deixei-a prosseguir, Começava a perguntar-me pelos meus pais, irmã, se nos dávamos bem, a minha infância, amores passados, eu respondia-lhe, claro, mas, ao mesmo tempo, percebia-lhe esta inclinação vampiresca, afinal, ele precisava de temáticas para escrever, agora que me lembro disto, sabe que chegou a escrever sobre mim e um antigo namorado? Mandou-me o texto e perguntou se correspondia, li-o, mas confesso-lhe a minha dificuldade com aquela prosa, não sei porquê, parecia-me que ele escrevia ao contrário do suceder das coisas. Como hei-de dizer? Parecia que estava a assistir ao desenrolar da história, mas sob um outro ponto de vista, ou mesmo de vários pontos de vista, na altura, optei por discordar da sua descrição demasiado suburbana da casa dos meus pais, ele refugiou-se, de imediato, na liberdade criativa. Anuí, claro está, para disfarçar o meu desconforto com o rótulo de suburbanos. Neste ponto, quase não disfarcei um sorriso, relanceei, uma vez mais, a roupa de desporto, coçada em vários pontos, com as cores esbatidas, e o modelo básico dos ténis, a dicção, como é óbvio, só servia para coroar o quadro geral, porém, uma questão impunha-se Mas achava-o elitista? Acho que ficou, de novo, surpreendida com a minha frontalidade, Elitista? Bom, como hei-de dizer? Sabe, quando li aquele texto sobre mim e um antigo namorado, no fundo, foi a única coisa que li dele, não sou muito de leituras, então, literatura, não tenho mesmo paciência! Gosto de coisas mais práticas, mais palpáveis, mas voltando àquele texto, ele pegou na história que lhe contei e trabalhou-a como quis, não o reconheci naquelas linhas. Se me dissessem que tinha sido escrito por um desconhecido, eu acreditava, porque o texto era muito sério, muito erudito, bom, eu sabia que ele tinha todas essas qualidades, porém, no dia-a-dia, não era nada assim, acho, inclusive, que o procurava disfarçar, talvez para não se distanciar em demasia de nós... Por outro lado, às vezes, roçava a extrema má educação e chegava a ser agressivo, no trânsito, então, nem lhe digo nada… Agora, elitista, não creio que fosse. Bom, era um bocado snobe, quer dizer, tinha os seus momentos, sobretudo, lá está, quando tinha de demonstrar a sua erudição, no entanto, quando a coisa virava, parecia que estávamos diante de um autêntico cavador. Não me escapou um pormenor, resolvi jogar um trunfo na mesa, Falou-me há pouco do trânsito. Afinal, pressuponho que saíram várias vezes, certo? Como sempre sucede nestas situações, percebo-lhe desconforto pelo desvelar da mentira, Sim, tem razão. Mas não é meu costume falar da minha vida a estranhos, como deve imaginar. E, já agora, o senhor anda a investigar a vida privada dele ou a sua obra? Tentativa de inverter os papéis, um clássico, sorri-lhe de novo, neste momento, acho que ela estava mais ansiosa por falar do que eu por ouvi-la, não me pareceu que fosse adiantar muito ao que já sabia, contudo, deixei-a prosseguir, Ao contrário do que possa julgar, eu também tenho faculdade, e muito antes de si. Noutra área, é certo, daí a minha distância das letras. Não pude reter a imagem daquela dicção, diante de um auditório, a dissertar sobre a mais singela temática. Dei o meu melhor para liquidar, de imediato, a gargalhada que me nascia. Consegui restabelecer-me, assumi uma expressão de interesse pelas suas palavras, enquanto anuía com insistência, para que ela levantasse o passado, Corremos vários cafés e esplanadas. Quase sempre junto a praias. Percebia-se que ele amava o mar. Acho que o tranquilizava (...)

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