Tudo começa com uma demora nos olhares, tantas
frases por ali desfilam, parte-se com a certeza de que por ali muito ficou por
dizer, ele não prescindia, a meio da tarde, de um
café, esta necessidade agudizou-se há uns meses, descia com um colega,
atravessavam a rua e entravam no café em frente, nessa dezena de minutos nunca falavam de trabalho, como se um acordo tácito,
frases de circunstância e pouco mais, eram apenas colegas ávidos de sair um
pouco daquele asfixiante espaço, inundado de papéis, papéis e mais papéis, ecos,
por todo o lado, de ininterruptos telefones, pouco conheciam do outro, mas o
suficiente que permitisse atravessar uma rua para um café, um casado há uma
década, com duas filhas, desposou a mulher para esquecer uma paixão, a mulher
desposou-o para deixar de ser a divorciada, era uns anitos mais velha, em
verdade, uniram-se para esquecer paixões, um erro grosseiro, as paixões nunca
se esquecem, apenas podemos adormecê-las, ela, muito cedo, entregou-se ao calor
de tal sentir, enfrentou a família e, perante a autoridade dos homens, colocou
uma aliança no anelar-esquerdo, não ousou ascender à autoridade divina, tudo se
esfumou em poucos meses, regressou a casa paterna e “Quantas
vezes te avisámos, minha filha?” repetia-se, pelo menos, três dezenas de
vezes por dia, equitativamente dividido entre pai e mãe, de
vinte e poucos anos, com o desgosto, passou a aparentar quarentas e…, olheiras,
as maçãs do rosto descaídas, uma magreza e flacidez simultâneas, das piores
combinações possíveis, é sempre duro compreender que só nos apaixonamos por
ideias, o sujeito que lhe colocou uma aliança no anelar-esquerdo, sob a
autoridade dos homens, contra a vontade da família, não regressou, durante uma
semana, ao apartamento, de uma assoalhada, alugado, as irmãs contaram-lhe que fôra
visto na companhia, em múltiplas ocasiões, de senhoras com generosos decotes,
sempre de copo na mão, a entrar e sair de bares madrugada adentro, do trabalho
ligaram, apenas por uma vez, a perguntar o porquê da sua ausência, elucidativo,
ela não soube o que responder, mas intuiu, pelo tom, que tal chamada não se
repetiria, um facto, pelo sétimo dia, no decorrer de uma manhã de Domingo, após
ligar a uma das irmãs, com a voz entrecortada, a pedir que a viessem buscar,
ela fez as malas, desceu, e aguardou no passeio, nesse entretanto ainda olhou
para o seu carro ali estacionado perto, não conseguia reunir forças e guiar
para longe dali, teriam de a levar, no dia seguinte rescindiu o contrato de
arrendamento, com o suporte da família entrou com a papelada para, sob a
autoridade dos homens, retirar a aliança do anelar-esquerdo, de vinte e poucos
anos, com o desgosto, passou a aparentar quarentas e…, os pais respiraram
melhor apesar de se sentirem nodoados com a aliança tão precocemente colocada
no anelar-esquerdo da filha mais velha para, pouco depois, ser tão abruptamente
retirada, a paixão dele mergulhou-o na mais densa das noites, chegou a ter de
se socorrer de quem norteie a razão alheia, uma vez que não há medicina para o
coração da alma, e como esse lhe sangrava, olharam-se como um porto.de-abrigo,
eram dois seres dilacerados pelas paixões, estavam exangues, apenas procuravam
a quietude de um abrigo após tão dolorosa intempérie, do colega que o
acompanhava nas fugas de café pouco sabemos, apenas que vivia maritalmente com
uma enfermeira, quando se questionava a razão de não haver alianças, tudo
servia, até o anacronismo da instituição casamento (a quem interessa este
facto? Pois, aos do costume…), tudo começa com uma demora nos olhares, tantas frases por ali desfilam, parte-se com a certeza de
que por ali muito ficou por dizer, assim foi nessa tarde quando abandonaram
o café, ele ficou perdido no olhar esverdeado, atencioso
e doce da nova empregada, aprendera, há muito, que nunca se partilha um
destino almejado, assim que saíram, após os habituais dez minutos onde nunca
falavam de trabalho, como se um acordo tácito, frases de circunstância e pouco
mais, sentiu um imenso desejo de regressar, até se estranhou, não sentia um
calor assim desde, pois, a intempérie que o dilacerou, antes de atravessar a
rua, olhou para trás, ela recolhia as chávenas da mesa onde se sentaram, assim
que se ergueu, os seus olhares, pela segunda vez nessa tarde, demoraram-se, tantas frases por ali desfilam, parte-se com a
certeza de que por ali muito ficou por dizer, pelo largo vidro da montra, ficou
a contemplá-la, de bandeja na mão, imóvel, num
desamparo que lhe fendia o coração, nesse final de tarde, ao entrar em casa, só
a imagem dela, de bandeja na mão, imóvel, num desamparo que lhe fendia ainda
mais o coração, ausente para a sua circunstância familiar, respondia com
monossílabos e um sorriso, apenas se queria centrar naquela imagem de bandeja
na mão, imóvel, nessa noite, já deitado, olhou a mulher, a seu lado, com uma
revista de vulgaridades, olhou-a com discrição e reflectiu na sua relação
íntima, entre lençóis nunca houve paixão, apenas sexo,
foi a sua conclusão, se há uma década ela de vinte e poucos anos, com o
desgosto, passou a aparentar quarentas e…, com dois filhos, descuidou-se
bastante, nesse aspecto, ele não falhava a sua corrida de fim-de-semana, a
verdade é que já não se sentia muito atraído, e foi penosa a sua conclusão: entre
lençóis nunca houve paixão, apenas sexo; ela há muito aí aportara, daí não se
coibir dos seus docinhos ou salgadinhos ao longo do dia, quanto a corridas, já
lhe bastavam as lides domésticas e as diárias para o trabalho, nesta fase,
quando o olhava, a seu lado, deitado, concluíra que o coração de uma mulher só
conhece uma Primavera, e a sua terminou numa manhã de Domingo, com um
indesejado regresso à casa paterna, no dia seguinte, teria de regressar sozinho
ao café, para compreender se, de facto, aquele olhar esverdeado,
atencioso e doce, era para si, para o efeito, teria de sair, discretamente,
noutra hora, assim o fez, sem nada dizer, escapuliu-se, atravessou a rua quase
em corrida, e entrou, àquela hora só duas ou três mesas ocupadas, e uns quantos
vultos ao balcão, ela estava de costas a tirar um café enquanto a outra
empregada de volta das mesas, não lhe restou alternativa, sentou-se ao balcão
e, enquanto ela de costas, a tirar um café, apreciou-lhe alonga trança, num castanho-claro, quase louro,
zelosamente entrelaçada, as formas que tanto agradam a um olhar masculino, no
entanto, ele somente aguardava por aquele olhar esverdeado, atencioso e doce, onde
se perdera, assim que ela se virou, em equilíbrio, com a chávena de café
fumegante na mão, os seus olhares reencontraram-se, nesse instante, ele
soube-se, uma vez mais, perdido…
Livros do Escritor
sexta-feira, 18 de abril de 2025
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