A primeira vez que a vi, bom, confesso que me
desagradou bastante, não há como lhe fugir, ostentava uma expressão bolorenta,
como se o simples facto de respirar constituísse um acto de contrição, olhar os
outros, nem se fala, era como aportar noutro continente, estava a meio daquela
década em que nos despedimos de algo para compreender uma outra coisa, como se
fôssemos corrigidos, por mão oculta, na direcção do olhar, pois, cinquenta e
cinco anos somava agora ela, dizia, então, eu, que a primeira vez que a vi,
bom, confesso que me desagradou bastante, não há como lhe fugir, sempre
considerei as primeiras impressões determinantes, como se aí residisse a
essência do outro que encontramos no mundo, quantas vezes nos enganamos? Não
sei, apenas sei que não nos cansamos de errar… Certa manhã, atrás de um balcão,
num desses muitos locais onde inevitavelmente caímos por mais um qualquer
papel, sempre exigido no insaciável labirinto do hoje, revi-lhe a expressão
bolorenta, estava particularmente irritado àquela hora, embora desconhecesse o
porquê, quantas vezes nos enganamos? Não sei, apenas sei que não nos cansamos
de errar… Tirei a senha e fui-me sentar, havia doze números à minha frente, de
onde estava vi-a perfeitamente, na sua secretária, analisava os papéis recolhidos
ao balcão, pareceu-me, não sei porquê, haver excesso desdém por aquele olhar,
talvez pela aparente distância entre ela e a sua circunstância, lembro-me tão
bem, quando eu, por uma escritura (foi há quanto?), a tirar a senha, a
constatar que não sei quantas à minha frente, talvez doze, não me lembro,
sentei-me, quando chamam pelo meu número, após um tempo que indecorosamente me
subtraíram do existir, lá me dirigi para o balcão, num indisfarçável esforço,
uma das pernas entretanto dormente, pelo desconforto daquele banco de madeira,
ou pelas costas que tanto me ameaçavam, ou pela idade, não sei, mas lá fui,
aguardava-me aquela expressão bolorenta, anunciei-lhe ao que vinha, um
documento para uma escritura, de pronto, ela responde-me que para levantar esse
documento devia vir munido de um outro, eu retorqui que não o possuía, ela,
secamente, sem alterar qualquer ponta de bolor, Tem de o arranjar! Sem essa certidão, nada feito, levantei a voz,
vociferei, quase rocei o insulto, ela, impassível, de saída fiz questão de
atirar com a porta, já não me lembro do porquê, nem do contexto específico, no
entanto, vi-me transportado para um cenário de província, mas já me recordo,
pois, assim foi, chegava a casa, ainda a vociferar, a minha mulher acabara de
pousar as compras, para uma sempre oportuna troca de impressões, como correu o
dia, o galopante aumento dos preços, a crescente má educação dos miúdos, o
iminente divórcio dos vizinhos do primeiro andar, meu Deus, um mundo de coisas
obrigavam àquele pousar de sacos e a uma sempre oportuníssima reflexão sobre a
existência com a vizinha da frente, eu vencia os degraus ainda com vestígios
claros da fúria de há pouco, assim que chego ao meu andar, deparo-me com os
sacos no chão, de um deles, duas laranjas ameaçavam a fuga, as duas mulheres
interrompem, por instantes, uma sempre oportuníssima reflexão sobre a
existência, a minha cumprimenta-me e pergunta a causa de vencer degraus em
fúria, relato-lhe a tarde de expressões bolorentas e de para levantar um documento vir munido de um outro, a vizinha
intervém, questiona se o tal balcão, num desses muitos locais onde
inevitavelmente caímos por mais um qualquer papel, sempre exigido no insaciável
labirinto do hoje, é o mais próximo da nossa porta, com o fluir da conversa,
percebo-lhe uma certa familiaridade com a expressão bolorenta, um grau de
parentesco mesmo, primos em segundo grau, fez-se um silêncio necessário quando
compreendi que ela nos iria elucidar a génese daquela expressão, em verdade,
não foi necessário muito, a minha vizinha da frente nunca perdia uma
oportunidade para reflectir sobre a existência, como sempre sempre sucede, no
território da narrativa, há que primeiro pedir licença para se levantar o véu
do tempo, começou por nos elucidar que, há três décadas, por aquele rosto
apenas uma expressão de espontânea alegria, o verbo fluía-lhe com facilidade e
as palavras denotavam a leveza da hora solar, concluiu os estudos, casou com o
amor da juventude, pouco depois um filho, tão desejado, tudo parecia bem, até
as férias conseguiam passar no Algarve, um luxo de que poucos se podiam gabar,
foi num certo Agosto, a meio da tarde, ela com o filho, teria já os seus cinco
anos, sob o guarda-sol, o marido levanta-se a resmungar com o exagerado calor,
encaminha-se para a água, ela sempre em brincadeiras com o filho, tão desejado,
tudo parecia bem, não repara que, antes de entrar na água, o marido lhe acena
alegremente, não, não reparou, talvez se o fizesse a memória tivesse um pouco
mais onde se alimentar, falou-se de congestão, de uma súbita corrente, de tanta
coisa, onde há uma voz, há uma teoria, começou aí a alterar-se a expressão do
seu rosto, como se a alegria encetasse uma fuga dali, na sua vida, passou a ser
só ela e o filho, os natais e as férias em casa dos pais, na província, anos
depois, numas férias de Verão, talvez fosse Agosto, o filho teria já os seus
nove anos, acompanhava o avô no campo, ajudava na horta e no pomar, ela com um
livro, embalada pela melodia do estio campestre, assim sobrevivia à tarde, e ao
calor, até que uns gritos, o poço, as canas à volta e lá no fundo, como se
esqueceram do poço, quando antes se perdiam a repetir aquele perigo, a
ambulância que demorou uma vida, no sentido literal, ela em gritos para o pai,
o velho já nem ruína era, a velha correu a amparar o marido, também ouviu os
gritos da filha, tudo tão veloz, de facto, a tragédia é filha do instante, mas
mãe da amargura de uma vida, depois falou-se de tanta coisa, onde há uma voz,
há uma teoria, concluiu-se que não foi a água, porém, com a queda, uma cana que
perfurou um pulmão, e a expressão aí tornou-se-lhe bolorenta, nunca mais
regressou à casa paterna na província, nem para o funeral do pai, que
sobreviveu apenas dezoito meses aos seus gritos daquele dia, houve quem
dissesse que a velha, nessa noite, após o silêncio da terra tragar o seu mundo,
queimou as fotografias da filha, depois falou-se de tanta coisa, onde há uma
voz, há uma teoria, o tempo lá continuou o seu caminho, tão longe e tão próximo
do sentir humano, hoje sei que ela tem um companheiro, embora nunca mais
entrasse no templo de outrora, uma filha, que já está na faculdade, mas aquela
expressão jamais partirá do seu rosto, talvez se ela regressasse à casa paterna
na província, se sentasse à lareira com a mãe e… Chamam o meu número,
levanto-me, dirijo-me para o balcão, num indisfarçável esforço, uma das pernas
entretanto dormente, pelo desconforto daquele banco de madeira, ou pelas costas
que tanto me ameaçavam, ou pela idade, talvez por tudo, deparo-me com aquela
expressão, apetece-me, não sei porquê, pousar-lhe, com ternura, a mão no braço
e dizer-lhe, como se em súplica, Quantas
vezes nos enganamos? Não sei, apenas sei que não nos cansamos de errar…

Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.