Livros do Escritor

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domingo, 27 de abril de 2025

Já esqueceste o Canto-da-Sereia? III

 


Ela percebeu-lhe a distância logo de início, o ar apatetado, sonhador, de criança com um brinquedo novo, um renovado zelo com a indumentária, a minuciosa utilização do perfume, não era necessária muita agudeza no olhar para inferir tais mudanças, ele também não procurava ocultar, imbuído que estava em retornar ao início da caminhada, uma nova possibilidade de corrigir passos erráticos, nada lhe passou despercebido, ela de vinte e poucos anos, com o desgosto, passou a aparentar quarentas e…, olheiras, as maçãs do rosto descaídas, uma magreza e flacidez simultâneas, das piores combinações possíveis, quando o olhava, a seu lado, na cama, concluíra que o coração de uma mulher só conhece uma Primavera, e a sua terminou, há muito, numa manhã de Domingo, com um indesejado regresso à casa paterna, entre eles  nunca houve paixão, apenas sexo, ela cedo aportou a esta certeza, porém, não iria regressar uma segunda vez à casa paterna, jurou para si mesma que, aos olhos da família, não voltaria a fracassar, já aos seus, a história é outra, tal como a dor, daí a sua incomunicabilidade, vive, adormece e desperta em nós, compreendemos que, com o tempo, nos subtrai dias, embora manifestemos gratidão pelo conhecimento proporcionado, não há melhor mestre, em verdade, queremos exorcizá-la, seja qual for o preço, começa por nos matar sonhos, cedo se viu privada dos seus, o desgosto precoce, que de vinte e poucos anos passou a aparentar quarentas e…, fê-la distanciar-se das coisas, uma indesejada imunidade face ao sentir, só não lhe toleraria infidelidade sob o mesmo tecto, a cidade não era assim tão extensa, corria o risco de ser visto pela família dela, isso jamais admitiria, por ora, só tinha suspeitas, apesar de o seu coração gritar e a razão o silenciar, desde há sete ou oito meses, intimidades só havia uma ou duas vezes por mês, tudo muito mecânico, ele já nem a beijava, ela grata, também só queria retirar a sua dose de prazer, nada mais, ambos, no fundo, satisfaziam uma necessidade fisiológica, os diálogos apenas sobre o circunstancial, filhos, contas, refeições, compras, ele nunca lhe perguntou pelos sonhos, ela retribuiu com o seu silêncio, cedo percebeu que a paternidade não lhe estava no sangue, limitava-se e mal a cumprir com as suas obrigações, enquanto, para ela, foram as luzes da sua consolação, quando regressava, aos fins-de-semana, à casa paterna, para visitar, com as duas filhas, a sua lado, sentia-se triunfal, percebia, no olhar que os pais derramavam sobre as netas, uma irreprimível emoção, longe do fracasso de há muito que fê-la de vinte e poucos anos aparentar quarentas e…, das três filhas foi a única, até então, a dar netos aos pais, algo que lhe permitia, de forma significativa, expiar um indesejado regresso à casa paterna, há bem mais de uma década, numa manhã de Domingo, ele raramente a acompanhava nestas visitas, escudava-se nas suas corridas de fim-de-semana, a verdade é que com os sogros as frases pouco fluíam, tudo muito forçado, sorrisos postiços, gestos encenados, após aquele fracassado regresso a casa, de aliança no anelar-esquerdo, os pais desejavam ardentemente outra coisa para a filha, ignoravam o prematuro anoitecer do seu coração, ele limitou-se a virar costas a tanta hipocrisia, apesar de também ela estar muito aquém dos desejos de nora dos seus pais (quem deseja uma divorciada para um filho? A cidade não era assim tão extensa…), de facto, só as crianças iluminavam as faces de todos, as luzes da sua consolação, com as duas filhas, a sua lado, sentia-se triunfal, optou por rumar às praias, sempre oferece uma distância de tranquilidade, o respirar harmoniza-se, aí chegados, ele procurou-lhe os lábios enquanto lhe percorria, suavemente, a face com um gesto de ternura, um quadro tão longínquo de: intimidades só uma ou duas vezes por mês, tudo muito mecânico, ele já nem a beijava, ela grata, também só queria retirar a sua dose de prazer, nada mais; ela acariciou-lhe a mão, embora recuasse o rosto, não se conteve e questionou-a “Trata-se de um equívoco? Queres que te leve para casa?”, enquanto se endireitava no banco, “Sim, por favor,” ligou o carro e guiou tão depressa quanto lhe foi possível, com o orgulho ferido procurou, com juras pelo meio, organizar o pensamento e redireccionar os próximos passos, o primeiro seria arranjar outro café e jamais voltar a contactá-la, até equacionava, assim que a deixasse, apagar o contacto, já os candeeiros derramavam sombras pela rua, quando a deixou à porta do prédio, para sua surpresa, uma rua agradável, construíra um quadro mais doloroso, um primeiro aviso da distância entre a sua idealização e a realidade, “Então, Adeus…,” a frase saiu-lhe assim, seca, ela permaneceu sentada, parecia esperar algo distinto, de repente, “Adeus!”, levantou-se e saiu, ficou a vê-la afastar-se, de semblante nocturno, por segundos apenas, obrigou-se a dar meia-volta para rapidamente dali sair, na segunda noite seguinte, recebe uma mensagem “Como estás? Não disseste mais nada…,” foi lesto a responder “Pensei que não quisesses… Não foi tudo um equívoco?,” coitado, estava nas mãos dela, o extenuado número de se fazer de difícil, num primeiro encontro, é quase caricatural, apenas para maquilhar a promiscuidade, pois, a cidade não era assim tão extensa, andou, lá por casa, de rosto nocturno durante dois dias, nem vestígios de um ar apatetado, sonhador, de criança com um brinquedo novo, no decorrer do jantar, ela não se conteve “Está tudo bem? Algum problema no trabalho? Andavas tão feliz…,” quando se tem uma ferida, o pior é alguém vir propositadamente lhe tocar, foi assim que interpretou as suas palavras, de uma notória intromissão, e como estava magoado, “Tudo gira à volta do trabalho?! Já não se pode simplesmente estar chateado? Olha, fica por casa dos teus paizinhos que são uns queridos…,” nem terminou a frase, a mistura de assuntos só reflectiu o seu desnorte, antes de se deitar, nessa noite, olhou-se, durante um pouco, ao espelho, nunca se conseguiu olhar por muito tempo, e questionou como colocou tanto de si numa quase estranha, por outras palavras, o que de errado havia consigo para assim se expor,  ao desligar o omnipresente rectângulo, reparou na mensagem, as reflectidas questões, frente ao espelho, rapidamente se esfumaram, o seu rosto sorria, o olhar cintilava, dedos ávidos a juntar letras para responder “Pensei que não quisesses… Não foi tudo um equívoco?,” coitado, estava nas mãos dela, no dia seguinte lá foram, de novo, em direcção às praias, a cidade não era assim tão extensa, apenas o mar como horizonte, saíram do carro, o seu orgulho, ainda ferido, não lhe permitia repetir certos passos, desceram para a areia, brincaram como crianças, ameaças de rasteiras, até ambos caírem e pela primeira vez se beijarem, ela com dissimulado pudor, coitado, estava nas mãos dela, outras saídas se sucederam, até tudo terminar, pois, no banco de trás, ela acabou por regressar ao seu habitat, por casa, uma vez mais, o ar apatetado, sonhador, de criança com um brinquedo novo, um renovado zelo com a indumentária, a minuciosa utilização do perfume, se tivera suspeitas, o seu coração gritava e a razão procurava silenciá-lo, agora só queria ver, já acreditava, a cidade não era assim tão extensa, o colega de café acabou por perceber o porquê da sua ausência, outros também a viram entrar no seu carro, por preguiça, o assunto mais fácil é sempre o outro, sem ter noção, ele tornou-se assunto do dia, nas suas costas os comentários repetiam-se quase sincronizados “Sabias que anda com uma tipa do café aqui em frente? Sim, bem mais nova que ele! E a mulher? Sei lá, isso é assunto deles… Nem comento! Uma vergonha… E as filhas, enfim… Parece que a vai esperar, todos os dias, à saída do trabalho. Estas raparigas não têm o mínimo juízo! Mas, pelos vistos, ele também não…,” tudo acabou por se precipitar, após uma insistência dele em almoçar num restaurante que muito apreciava, saíam há três semanas, da janela do escritório houve quem jurasse tê-los visto de mãos-dadas, como namorados, ela nem estava muito a fim de experimentar tal restaurante, entrava em zona desconhecida, distante de um banco-traseiro, o gerente procurou disfarçar espanto ao vê-lo, por ali, com outra mulher a seu lado, e como se lhes gritava a intimidade, ela pareceu apreciar o espaço e a refeição, ele embevecido só a olhava, chegaram a entrelaçar dedos sobre a mesa, esse gesto não passou despercebido a uma sujeita sentada duas mesas atrás, estava com um grupo considerável, quase passava despercebida, daquelas refeições que se prolongam tarde adentro, eles naturalmente saíram antes, ela aproveitou para, com a devida discrição, os fotografar no restaurante, depois a sair e, de mão-dada, caminhar até ao carro, chegou à dezena de fotos, nada verbalizou, não ia expor a irmã, levantou-se da mesa para lhe telefonar, “Estou? Preciso de falar contigo urgentemente! Quando podes?”, imediatamente percebeu do que se tratava, o seu coração gritava e a razão procurava silenciá-lo, agora só queria ver, já acreditava, a cidade não era assim tão extensa, ao ver as fotos, do homem que dormia a seu lado com outra mulher, bem mais nova, espantou-se por apenas sentir compaixão, nem vestígios de raiva, ódio, ciúme, apenas compaixão, talvez por de vinte e poucos anos, com o desgosto, passou a aparentar quarentas e…, pediu as fotografias à irmã, prontamente as recebeu, nessa noite, quando ele entrou em casa, com ar apatetado, sonhador, de criança com um brinquedo novo, ela já deitara as filhas, esperou-o na sala, em pé, só um candeeiro, emissor de luz tranquila e difusa, percebeu-lhe a expressão  antes de tudo, com uma voz tranquila “Não quero cenas, desculpas de adolescente, muito menos diálogo, vais calmamente fazer as malas e sair… O resto será tratado nos próximos dias. E rápido, por favor.”, foi ele a regressar à casa paterna, não tinha mais para onde ir, de olhar no soalho, não conseguiu construir uma frase sequer, colocou apenas uma muda de roupa numa mochila e saiu, só não lhe toleraria infidelidade sob o mesmo tecto, a cidade não era assim tão extensa, corria o risco de ser visto pela família dela, isso jamais admitiria, ela só regressou à casa paterna, para visitar, com as duas filhas, a sua lado, sentia-se triunfal, conseguiu manter a casa, os seus pais, nesse aspecto, foram providenciais, o segundo divórcio já era demasiado, a cidade não era assim tão extensa, ao menos nem tudo se perdesse, assim que soube da separação, disse-lhe adeus por mensagem, até deixou o café em frente ao trabalho dele, ao ler as poucas e mal redigidas linhas, sentiu o carácter irreversível do adeus, dolorosamente compreendeu que iluminara uma frágil vela na procura de clarear uma noite infinda que transportava consigo há muito…

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