Livros do Escritor

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segunda-feira, 21 de abril de 2025

Já esqueceste o Canto-da-Sereia? II


 

Enquanto esperava por ela, dentro do carro, ao final da tarde, levantou-se-lhe, vindo de parte incógnita, um viés da mais densa das noites onde há uns anos mergulhara, tentou rapidamente afastar aquela indesejada intromissão, por instantes, ainda reflectiu no porquê de tal reminiscência, quando, de repente, os nós dela no vidro, para destrancar a porta, devolveu-o à sua circunstância, era a segunda vez que a ia buscar à saída do trabalho, a primeira foi consequência de mais três idas, sozinho, ao café, olhares demorados, tantas frases por ali desfilam, lá procurou dar o corpo da sua voz a algumas, sempre tão aquém do ideal, o receio da voz dela não corresponder à doçura do olhar, afinal soou-lhe melodiosa, de início, tudo é sonho, estava tão perdido naquele olhar esverdeado, atencioso e doce, que nem se lembrou de ocultar a aliança no anelar-esquerdo, se reflectisse bem nesse gesto, afigurar-se-ia ridículo, a palidez da marca gritaria bem alto, e ele nunca fui muito escrupuloso no jogo de máscaras-sociais, assim sendo, avançou desvelado, às frases de circunstância iniciais, seguiram-se as habituais questões, alimento do diálogo, ela respondia pronta, sorridente e era lesta a retribuir-lhe cada questão, ele pensava há quanto não lhe colocavam questões assim (Se gostava do trabalho? Se era o seu sonho de criança? No fundo, uma estupidez, vendo bem as coisas, que criança sonha, em adulto, trabalhar num asfixiante espaço, inundado de papéis, papéis e mais papéis, com ecos, por todo o lado, de ininterruptos telefones? Pois, nenhuma, claramente… Mas ele deliciava-se com aquela atenção, permitia-lhe, de certa forma, redescobrir-se, avaliar o seu percurso, e, como horizonte, aquele olhar esverdeado, atencioso e doce, era possível melhor?), lá por casa, o seu trabalho é apenas o imperativo ordenado, nada mais, ninguém lhe pergunta se aquele era o seu sonho de criança, a verdade é que, assim que os seus olhares se demoraram pela primeira vez, ele esqueceu a aliança, como se aquele olhar esverdeado, atencioso e doce, fosse um lugar à sua espera desde sempre, a possibilidade de vivenciar uma outra existência (há coisa melhor?), nem se preocupou com a eventualidade de ela reparar, nunca o indiciou, quando lhe perguntou a hora da saída, a resposta dela foi espontânea, ele retorquiu se a poderia vir buscar, de novo, da parte dela, uma naturalidade afirmativa, como era o primeiro encontro, quis ser cauteloso e jamais levá-la a um café, a cidade também não era assim tão extensa, corria o risco de ser visto, optou por rumar às praias, sempre oferece uma distância de tranquilidade, o respirar harmoniza-se, um observador atento compreendia, com demasiada facilidade, que ele construía uma personagem à medida das suas expectativas, em verdade, ele não a ouvia, narrava uma história por si construída, trabalhava num café para ajudar a mãe desvalida, o pai abandonara inexplicavelmente o lar há demasiados anos, tal facto obrigou-a, para grande desgosto, a largar os estudos, não obstante o notório fulgor de inteligência, bem mais nova que ele, de certa maneira parece um retornar ao início da caminhada, uma nova possibilidade de corrigir passos erráticos, se, por acaso, tivesse um receptor da sua confiança, seria esta a personagem que apresentava, tão distante de uma jovem promíscua, conhecedora do fascínio que exerce sobre o sexo oposto, que muito gosta de os ver a seus pés, para o efeito joga todo o arsenal da arte feminina da sedução,  já que no restante tempo só lhe resta andar de bandeja na mão a servi-los e a ouvir rudezas, coleccionava empregos precários como aquele, a instabilidade emocional reflectia-se a cada passo, virou, muito cedo, costas aos livros, o único aspecto positivo da escola era, lá em casa, não a mandarem trabalhar, assim arrastou a coisa o máximo possível, quando atingiu a maioridade, com três reprovações no currículo, a única porta que se lhe abriu foi trabalhar, começou numa tascazita do seu bairro, tratou logo de encantar o filho do patrão, foram apanhados, pela hora do almoço, no armazém, foram descuidados com a volumetria dos gemidos, não restou alternativa, apesar da veemente oposição do filho, pagou os dias de trabalho e depois abriu-lhe a porta, o filho ameaçou seguir-lhe os passos, o pai colocou-o à-vontade, apenas sublinhou que ali teria de deixar as chaves do carro, nem hesitou, correu atrás dela, no entanto, quando o viu, durante dias, a arrastar-se, de todas as formas possíveis, pelas ruas, durante o dia, pelas digitais, durante a noite, perdeu o interesse, como um artista após a obra feita, ou um atleta após a marca alcançada, ou um assassino após o crime, e ela era uma assassina de corações, o desgraçado quase se perdia para as drogas, não fosse a pronta intervenção paterna a resgatá-lo, regressou ao trabalho na tasca e recuperou as chaves do carro, não raras vezes o pai amaldiçoou a hora em que a empregou, percebeu-lhe demasiado calor nos gestos, só nunca equacionou que o filho caísse em tão óbvia armadilha, o episódio no armazém, pela hora do almoço, só não ganhou mais ecos, pelo bairro, porque o pai era homem de palavras essenciais, não obstante a volumetria dos gemidos, mas a sua sede, de os ver a seus pés, somava episódios no bairro e não só,  quando percebeu o seu insistente olhar, a meio-caminho entre a timidez e a gula, percebeu que seria uma presa fácil, andava entediada, lá por casa, o pai, veterano condecorado das pielas, entrava e saía consoante o peso da carteira, a mãe nunca lhe negava o regresso, talvez por aí a sua sede de os ver a seus pés, reparou, de imediato, na aliança, nunca andara com um casado, apenas comprometido, seria, para ela, uma adenda ao seu currículo, sabia, também, que nunca largaria a esposa, óptimo, quando se fartasse, ele não poderia provocar muitas ondas, as rédeas estariam do seu lado, algo de que sempre se assegurava, não gostava de melodramas, limitou-se a ser a personagem que ele construíra, nada mais simples, trabalhava num café para ajudar a mãe desvalida, o pai abandonara inexplicavelmente o lar há demasiados anos, tal facto obrigou-a, para grande desgosto, a largar os estudos, não obstante o notório fulgor de inteligência, bem mais nova que ele, enterneceu-se quando, na primeira saída, a levou até à praia, o alaranjar do horizonte, era um romântico, coitado, pensou ela, vai ser uma dolorosa queda, no seu currículo já soma múltiplas saídas que não foram além do banco-traseiro, tudo isto constitui uma novidade, até a forma, antes de um primeiro beijo, de ele lhe percorrer, suavemente, a face com um gesto de ternura.


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