Enquanto
esperava por ela, dentro do carro, ao final da tarde, levantou-se-lhe, vindo de
parte incógnita, um viés da mais densa das noites onde há uns anos mergulhara,
tentou rapidamente afastar aquela indesejada intromissão, por instantes, ainda
reflectiu no porquê de tal reminiscência, quando, de repente, os nós dela no
vidro, para destrancar a porta, devolveu-o à sua circunstância, era a segunda
vez que a ia buscar à saída do trabalho, a primeira foi consequência de mais
três idas, sozinho, ao café, olhares demorados, tantas frases por ali desfilam,
lá procurou dar o corpo da sua voz a algumas, sempre tão aquém do ideal, o
receio da voz dela não corresponder à doçura do olhar, afinal soou-lhe
melodiosa, de início, tudo é sonho, estava tão perdido naquele
olhar
esverdeado, atencioso e doce,
que nem se lembrou de ocultar a aliança no anelar-esquerdo, se reflectisse bem
nesse gesto, afigurar-se-ia ridículo, a palidez da marca gritaria bem alto, e
ele nunca fui muito escrupuloso no jogo de máscaras-sociais, assim sendo,
avançou desvelado, às frases de circunstância iniciais, seguiram-se as
habituais questões, alimento do diálogo, ela respondia pronta, sorridente e era
lesta a retribuir-lhe cada questão, ele pensava há quanto não lhe colocavam
questões assim (Se gostava do trabalho? Se era o seu sonho de criança? No
fundo, uma estupidez, vendo bem as coisas, que criança sonha, em adulto,
trabalhar num asfixiante espaço, inundado de papéis, papéis e mais papéis, com
ecos, por todo o lado, de ininterruptos telefones? Pois, nenhuma, claramente…
Mas ele deliciava-se com aquela atenção, permitia-lhe, de certa forma,
redescobrir-se, avaliar o seu percurso, e, como horizonte, aquele olhar
esverdeado, atencioso e doce, era possível melhor?), lá por casa, o seu
trabalho é apenas o imperativo ordenado, nada mais, ninguém lhe pergunta se
aquele era o seu sonho de criança, a verdade é que, assim que os seus olhares
se demoraram pela primeira vez, ele esqueceu a aliança, como se aquele olhar
esverdeado, atencioso e doce, fosse um lugar à sua espera desde sempre, a
possibilidade de vivenciar uma outra existência (há coisa melhor?), nem se
preocupou com a eventualidade de ela reparar, nunca o indiciou, quando lhe
perguntou a hora da saída, a resposta dela foi espontânea, ele retorquiu se a
poderia vir buscar, de novo, da parte dela, uma naturalidade afirmativa, como
era o primeiro encontro, quis ser cauteloso e jamais levá-la a um café, a
cidade também não era assim tão extensa, corria o risco de ser visto, optou por
rumar às praias, sempre oferece uma distância de tranquilidade, o respirar
harmoniza-se, um observador atento compreendia, com demasiada facilidade, que
ele construía uma personagem à medida das suas expectativas, em verdade, ele não
a ouvia, narrava uma história por si construída, trabalhava
num café para ajudar a mãe desvalida, o pai abandonara inexplicavelmente o lar
há demasiados anos, tal facto obrigou-a, para grande desgosto, a largar os
estudos, não obstante o notório fulgor de inteligência, bem mais nova que ele, de
certa maneira parece um retornar ao início da caminhada, uma nova possibilidade
de corrigir passos erráticos, se, por acaso, tivesse um receptor da sua
confiança, seria esta a personagem que apresentava, tão distante de uma jovem
promíscua, conhecedora do fascínio que exerce sobre o sexo oposto, que muito gosta
de os ver a seus pés, para o efeito joga todo o
arsenal da arte feminina da sedução, já
que no restante tempo só lhe resta andar de bandeja na mão a servi-los e a
ouvir rudezas, coleccionava empregos precários como aquele, a instabilidade
emocional reflectia-se a cada passo, virou, muito cedo, costas aos livros, o
único aspecto positivo da escola era, lá em casa, não a mandarem trabalhar,
assim arrastou a coisa o máximo possível, quando atingiu a maioridade, com três
reprovações no currículo, a única porta que se lhe abriu foi trabalhar, começou
numa tascazita do seu bairro, tratou logo de encantar o filho do patrão, foram
apanhados, pela hora do almoço, no armazém, foram descuidados com a volumetria dos gemidos, não restou alternativa,
apesar da veemente oposição do filho, pagou os dias de trabalho e depois
abriu-lhe a porta, o filho ameaçou seguir-lhe os passos, o pai colocou-o à-vontade,
apenas sublinhou que ali teria de deixar as chaves do carro, nem hesitou,
correu atrás dela, no entanto, quando o viu, durante dias, a arrastar-se, de
todas as formas possíveis, pelas ruas, durante o dia, pelas digitais, durante a
noite, perdeu o interesse, como um artista após a obra feita, ou um atleta após
a marca alcançada, ou um assassino após o crime, e ela era uma assassina de
corações, o desgraçado quase se perdia para as drogas, não fosse a pronta
intervenção paterna a resgatá-lo, regressou ao trabalho na tasca e recuperou as
chaves do carro, não raras vezes o pai amaldiçoou a hora em que a empregou,
percebeu-lhe demasiado calor nos gestos, só nunca equacionou que o filho caísse
em tão óbvia armadilha, o episódio no armazém, pela hora do almoço, só não
ganhou mais ecos, pelo bairro, porque o pai era homem de palavras essenciais, não
obstante a volumetria dos gemidos, mas a sua sede, de
os ver a seus pés, somava episódios no bairro e não só, quando percebeu o seu insistente olhar, a
meio-caminho entre a timidez e a gula, percebeu que seria uma presa fácil,
andava entediada, lá por casa, o pai, veterano condecorado das pielas, entrava
e saía consoante o peso da carteira, a mãe nunca lhe negava o regresso, talvez
por aí a sua sede de os ver a seus pés, reparou, de imediato, na aliança, nunca
andara com um casado, apenas comprometido, seria, para ela, uma adenda ao seu
currículo, sabia, também, que nunca largaria a esposa, óptimo, quando se
fartasse, ele não poderia provocar muitas ondas, as rédeas estariam do seu
lado, algo de que sempre se assegurava, não gostava de melodramas, limitou-se a
ser a personagem que ele construíra, nada mais simples, trabalhava num café
para ajudar a mãe desvalida, o pai abandonara inexplicavelmente o lar há
demasiados anos, tal facto obrigou-a, para grande desgosto, a largar os
estudos, não obstante o notório fulgor de inteligência, bem mais nova que ele,
enterneceu-se quando, na primeira saída, a levou até à praia, o alaranjar do
horizonte, era um romântico, coitado, pensou ela, vai ser uma dolorosa queda, no
seu currículo já soma múltiplas saídas que não foram além do banco-traseiro, tudo
isto constitui uma novidade, até a forma, antes de um primeiro beijo, de ele
lhe percorrer, suavemente, a face com um gesto de ternura.

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