... tudo tão veloz, de facto, a tragédia é filha do instante, mas mãe da amargura de uma vida...
in Desta coisa absurda chamada viver
A primeira vez que a vi, bom, confesso que me
desagradou bastante, não há como lhe fugir, ostentava uma expressão bolorenta,
como se o simples facto de respirar constituísse um acto de contrição, olhar os
outros, nem se fala, era como aportar noutro continente, estava a meio daquela
década em que nos despedimos de algo para compreender uma outra coisa, como se
fôssemos corrigidos, por mão oculta, na direcção do olhar, pois, cinquenta e
cinco anos somava agora ela, dizia, então, eu, que a primeira vez que a vi,
bom, confesso que me desagradou bastante, não há como lhe fugir, sempre
considerei as primeiras impressões determinantes, como se aí residisse a
essência do outro que encontramos no mundo, quantas vezes nos enganamos? Não
sei, apenas sei que não nos cansamos de errar… Certa manhã, atrás de um balcão,
num desses muitos locais onde inevitavelmente caímos por mais um qualquer
papel, sempre exigido no insaciável labirinto do hoje, revi-lhe a expressão
bolorenta, estava particularmente irritado àquela hora, embora desconhecesse o
porquê, quantas vezes nos enganamos? Não sei, apenas sei que não nos cansamos
de errar… Tirei a senha e fui-me sentar, havia doze números à minha frente, de
onde estava vi-a perfeitamente, na sua secretária, analisava os papéis recolhidos
ao balcão, pareceu-me, não sei porquê, haver excesso desdém por aquele olhar,
talvez pela aparente distância entre ela e a sua circunstância, lembro-me tão
bem, quando eu, por uma escritura (foi há quanto?), a tirar a senha, a
constatar que não sei quantas à minha frente, talvez doze, não me lembro,
sentei-me, quando chamam pelo meu número, após um tempo que indecorosamente me
subtraíram do existir, lá me dirigi para o balcão, num indisfarçável esforço,
uma das pernas entretanto dormente, pelo desconforto daquele banco de madeira,
ou pelas costas que tanto me ameaçavam, ou pela idade, não sei, mas lá fui,
aguardava-me aquela expressão bolorenta, anunciei-lhe ao que vinha, um
documento para uma escritura, de pronto, ela responde-me que para levantar esse
documento devia vir munido de um outro, eu retorqui que não o possuía, ela,
secamente, sem alterar qualquer ponta de bolor, Tem de o arranjar! Sem essa certidão, nada feito, levantei a voz,
vociferei, quase rocei o insulto, ela, impassível, de saída fiz questão de
atirar com a porta, já não me lembro do porquê, nem do contexto específico, no
entanto, vi-me transportado para um cenário de província, mas já me recordo,
pois, assim foi, chegava a casa, ainda a vociferar, a minha mulher acabara de
pousar as compras, para uma sempre oportuna troca de impressões, como correu o
dia, o galopante aumento dos preços, a crescente má educação dos miúdos, o
iminente divórcio dos vizinhos do primeiro andar, meu Deus, um mundo de coisas
obrigavam àquele pousar de sacos e a uma sempre oportuníssima reflexão sobre a
existência com a vizinha da frente, eu vencia os degraus ainda com vestígios
claros da fúria de há pouco, assim que chego ao meu andar, deparo-me com os
sacos no chão, de um deles, duas laranjas ameaçavam a fuga, as duas mulheres
interrompem, por instantes, uma sempre oportuníssima reflexão sobre a
existência, a minha cumprimenta-me e pergunta a causa de vencer degraus em
fúria, relato-lhe a tarde de expressões bolorentas e de para levantar um documento vir munido de um outro, a vizinha
intervém, questiona se o tal balcão, num desses muitos locais onde
inevitavelmente caímos por mais um qualquer papel, sempre exigido no insaciável
labirinto do hoje, é o mais próximo da nossa porta, com o fluir da conversa,
percebo-lhe uma certa familiaridade com a expressão bolorenta, um grau de
parentesco mesmo, primos em segundo grau, fez-se um silêncio necessário quando
compreendi que ela nos iria elucidar a génese daquela expressão, em verdade,
não foi necessário muito, a minha vizinha da frente nunca perdia uma
oportunidade para reflectir sobre a existência, como sempre sempre sucede, no
território da narrativa, há que primeiro pedir licença para se levantar o véu
do tempo, começou por nos elucidar que, há três décadas, por aquele rosto
apenas uma expressão de espontânea alegria, o verbo fluía-lhe com facilidade e
as palavras denotavam a leveza da hora solar, concluiu os estudos, casou com o
amor da juventude, pouco depois um filho, tão desejado, tudo parecia bem, até
as férias conseguiam passar no Algarve, um luxo de que poucos se podiam gabar,
foi num certo Agosto, a meio da tarde, ela com o filho, teria já os seus cinco
anos, sob o guarda-sol, o marido levanta-se a resmungar com o exagerado calor,
encaminha-se para a água, ela sempre em brincadeiras com o filho, tão desejado,
tudo parecia bem, não repara que, antes de entrar na água, o marido lhe acena
alegremente, não, não reparou, talvez se o fizesse a memória tivesse um pouco
mais onde se alimentar, falou-se de congestão, de uma súbita corrente, de tanta
coisa, onde há uma voz, há uma teoria, começou aí a alterar-se a expressão do
seu rosto, como se a alegria encetasse uma fuga dali, na sua vida, passou a ser
só ela e o filho, os natais e as férias em casa dos pais, na província, anos
depois, numas férias de Verão, talvez fosse Agosto, o filho teria já os seus
nove anos, acompanhava o avô no campo, ajudava na horta e no pomar, ela com um
livro, embalada pela melodia do estio campestre, assim sobrevivia à tarde, e ao
calor, até que uns gritos, o poço, as canas à volta e lá no fundo, como se
esqueceram do poço, quando antes se perdiam a repetir aquele perigo, a
ambulância que demorou uma vida, no sentido literal, ela em gritos para o pai,
o velho já nem ruína era, a velha correu a amparar o marido, também ouviu os
gritos da filha, tudo tão veloz, de facto, a tragédia é filha do instante, mas
mãe da amargura de uma vida, depois falou-se de tanta coisa, onde há uma voz,
há uma teoria, concluiu-se que não foi a água, porém, com a queda, uma cana que
perfurou um pulmão, e a expressão aí tornou-se-lhe bolorenta, nunca mais
regressou à casa paterna na província, nem para o funeral do pai, que
sobreviveu apenas dezoito meses aos seus gritos daquele dia, houve quem
dissesse que a velha, nessa noite, após o silêncio da terra tragar o seu mundo,
queimou as fotografias da filha, depois falou-se de tanta coisa, onde há uma
voz, há uma teoria, o tempo lá continuou o seu caminho, tão longe e tão próximo
do sentir humano, hoje sei que ela tem um companheiro, embora nunca mais
entrasse no templo de outrora, uma filha, que já está na faculdade, mas aquela
expressão jamais partirá do seu rosto, talvez se ela regressasse à casa paterna
na província, se sentasse à lareira com a mãe e… Chamam o meu número,
levanto-me, dirijo-me para o balcão, num indisfarçável esforço, uma das pernas
entretanto dormente, pelo desconforto daquele banco de madeira, ou pelas costas
que tanto me ameaçavam, ou pela idade, talvez por tudo, deparo-me com aquela
expressão, apetece-me, não sei porquê, pousar-lhe, com ternura, a mão no braço
e dizer-lhe, como se em súplica, Quantas
vezes nos enganamos? Não sei, apenas sei que não nos cansamos de errar…
Ela
percebeu-lhe a distância logo de início, o ar apatetado, sonhador, de criança com um
brinquedo novo, um renovado zelo com a indumentária, a minuciosa
utilização do perfume, não era necessária muita agudeza no olhar para
inferir tais mudanças, ele também não procurava ocultar, imbuído que estava em
retornar ao início da caminhada, uma nova possibilidade de corrigir passos
erráticos, nada lhe passou despercebido, ela de vinte e poucos
anos, com o desgosto, passou a aparentar quarentas e…, olheiras, as maçãs do rosto
descaídas, uma magreza e flacidez simultâneas, das piores combinações
possíveis, quando o olhava, a seu lado, na cama, concluíra que o coração de uma
mulher só conhece uma Primavera, e a sua terminou, há
muito, numa manhã de Domingo, com um indesejado
regresso à casa paterna, entre eles nunca houve paixão, apenas sexo, ela cedo aportou a
esta certeza, porém, não iria regressar uma segunda vez à casa paterna, jurou
para si mesma que, aos olhos da família, não voltaria a fracassar, já aos seus,
a história é outra, tal como a dor, daí a sua incomunicabilidade, vive,
adormece e desperta em nós, compreendemos que, com o tempo, nos subtrai dias,
embora manifestemos gratidão pelo conhecimento proporcionado, não há melhor
mestre, em verdade, queremos exorcizá-la, seja qual for o preço, começa por nos
matar sonhos, cedo se viu privada dos seus, o desgosto precoce, que de vinte e poucos anos passou a aparentar quarentas e…,
fê-la distanciar-se das coisas, uma indesejada imunidade face ao sentir, só não lhe toleraria infidelidade sob o mesmo tecto, a
cidade não era assim tão extensa, corria o risco de ser visto pela família
dela, isso jamais admitiria, por ora, só tinha
suspeitas, apesar de o seu coração gritar e a razão o silenciar, desde há
sete ou oito meses, intimidades só havia uma ou duas
vezes por mês, tudo muito mecânico, ele já nem a beijava, ela grata, também só queria
retirar a sua dose de prazer, nada mais, ambos, no fundo, satisfaziam uma
necessidade fisiológica, os diálogos apenas sobre o circunstancial, filhos,
contas, refeições, compras, ele nunca lhe perguntou pelos sonhos, ela retribuiu
com o seu silêncio, cedo percebeu que a paternidade não lhe estava no sangue,
limitava-se e mal a cumprir com as suas obrigações, enquanto, para ela, foram as luzes da sua consolação, quando regressava, aos
fins-de-semana, à casa paterna, para visitar, com as duas
filhas, a sua lado, sentia-se triunfal, percebia, no olhar que os
pais derramavam sobre as netas, uma irreprimível emoção, longe do fracasso de
há muito que fê-la de vinte e poucos anos aparentar quarentas e…, das três
filhas foi a única, até então, a dar netos aos pais, algo que lhe permitia, de
forma significativa, expiar um indesejado regresso à casa paterna, há bem mais
de uma década, numa manhã de Domingo, ele raramente a acompanhava nestas
visitas, escudava-se nas suas corridas de fim-de-semana, a verdade é que com os
sogros as frases pouco fluíam, tudo muito forçado, sorrisos postiços, gestos
encenados, após aquele fracassado regresso a casa, de aliança no
anelar-esquerdo, os pais desejavam ardentemente outra coisa para a filha,
ignoravam o prematuro anoitecer do seu coração, ele limitou-se a virar costas a
tanta hipocrisia, apesar de também ela estar muito aquém dos desejos de nora
dos seus pais (quem deseja uma divorciada para um filho? A cidade não era assim
tão extensa…), de facto, só as crianças iluminavam as faces de todos, as luzes
da sua consolação, com as duas filhas, a sua lado, sentia-se triunfal, optou
por rumar às praias, sempre oferece uma distância de tranquilidade, o respirar
harmoniza-se, aí chegados, ele procurou-lhe os lábios enquanto lhe percorria, suavemente,
a face com um gesto de ternura, um quadro tão longínquo de: intimidades só uma
ou duas vezes por mês, tudo muito mecânico, ele já nem a beijava, ela grata,
também só queria retirar a sua dose de prazer, nada mais; ela acariciou-lhe a
mão, embora recuasse o rosto, não se conteve e questionou-a “Trata-se
de um equívoco? Queres que te leve para casa?”, enquanto se endireitava no
banco, “Sim, por favor,” ligou o carro e guiou tão depressa quanto lhe
foi possível, com o orgulho ferido procurou, com juras pelo meio, organizar o
pensamento e redireccionar os próximos passos, o primeiro seria arranjar outro
café e jamais voltar a contactá-la, até equacionava, assim que a deixasse,
apagar o contacto, já os candeeiros derramavam sombras pela rua, quando a
deixou à porta do prédio, para sua surpresa, uma rua agradável, construíra um
quadro mais doloroso, um primeiro aviso da distância entre a sua idealização e
a realidade, “Então, Adeus…,” a frase saiu-lhe assim, seca, ela
permaneceu sentada, parecia esperar algo distinto, de repente, “Adeus!”, levantou-se
e saiu, ficou a vê-la afastar-se, de semblante nocturno, por segundos apenas,
obrigou-se a dar meia-volta para rapidamente dali sair, na segunda noite
seguinte, recebe uma mensagem “Como estás? Não disseste mais nada…,” foi
lesto a responder “Pensei que não quisesses… Não foi tudo um equívoco?,” coitado,
estava nas mãos dela, o extenuado número de se fazer de difícil, num primeiro
encontro, é quase caricatural, apenas para maquilhar a promiscuidade, pois, a
cidade não era assim tão extensa, andou, lá por casa, de rosto nocturno durante
dois dias, nem vestígios de um ar apatetado, sonhador, de criança com um
brinquedo novo, no decorrer do jantar, ela não se conteve “Está tudo bem?
Algum problema no trabalho? Andavas tão feliz…,” quando se tem uma ferida, o
pior é alguém vir propositadamente lhe tocar, foi assim que interpretou as suas
palavras, de uma notória intromissão, e como estava magoado, “Tudo gira à
volta do trabalho?! Já não se pode simplesmente estar chateado? Olha, fica por casa dos teus paizinhos que são uns
queridos…,” nem terminou a frase, a mistura de assuntos só reflectiu o seu
desnorte, antes de se deitar, nessa noite, olhou-se, durante um pouco, ao
espelho, nunca se conseguiu olhar por muito tempo, e questionou como colocou
tanto de si numa quase estranha, por outras palavras, o que de errado havia
consigo para assim se expor, ao desligar
o omnipresente rectângulo, reparou na mensagem, as reflectidas questões, frente
ao espelho, rapidamente se esfumaram, o seu rosto sorria, o olhar cintilava,
dedos ávidos a juntar letras para responder “Pensei que não quisesses… Não
foi tudo um equívoco?,” coitado, estava nas mãos
dela, no dia seguinte lá foram, de novo, em direcção às praias, a
cidade não era assim tão extensa, apenas o mar como horizonte, saíram do carro,
o seu orgulho, ainda ferido, não lhe permitia repetir certos passos, desceram
para a areia, brincaram como crianças, ameaças de rasteiras, até ambos caírem e
pela primeira vez se beijarem, ela com dissimulado pudor, coitado, estava nas
mãos dela, outras saídas se sucederam, até tudo terminar, pois, no banco de
trás, ela acabou por regressar ao seu habitat, por casa, uma vez mais, o ar
apatetado, sonhador, de criança com um brinquedo novo, um renovado zelo com a
indumentária, a minuciosa utilização do perfume, se tivera suspeitas, o seu coração gritava e a razão procurava silenciá-lo,
agora só queria ver, já acreditava, a cidade não era assim tão extensa, o
colega de café acabou por perceber o porquê da sua ausência, outros também a
viram entrar no seu carro, por preguiça, o assunto mais fácil é sempre o outro,
sem ter noção, ele tornou-se assunto do dia, nas suas costas os comentários
repetiam-se quase sincronizados “Sabias que anda com uma tipa do café aqui
em frente? Sim, bem mais nova que ele! E a mulher? Sei lá, isso é assunto
deles… Nem comento! Uma vergonha… E as filhas, enfim… Parece que a vai esperar,
todos os dias, à saída do trabalho. Estas raparigas não têm o mínimo juízo!
Mas, pelos vistos, ele também não…,” tudo acabou por se precipitar, após uma
insistência dele em almoçar num restaurante que muito apreciava, saíam há três
semanas, da janela do escritório houve quem jurasse tê-los visto de mãos-dadas,
como namorados, ela nem estava muito a fim de experimentar tal restaurante, entrava
em zona desconhecida, distante de um banco-traseiro, o gerente procurou
disfarçar espanto ao vê-lo, por ali, com outra mulher a seu lado, e como se
lhes gritava a intimidade, ela pareceu apreciar o espaço e a refeição, ele
embevecido só a olhava, chegaram a entrelaçar dedos sobre a mesa, esse gesto
não passou despercebido a uma sujeita sentada duas mesas atrás, estava com um
grupo considerável, quase passava despercebida, daquelas refeições que se
prolongam tarde adentro, eles naturalmente saíram antes, ela aproveitou para,
com a devida discrição, os fotografar no restaurante, depois a sair e, de
mão-dada, caminhar até ao carro, chegou à dezena de fotos, nada verbalizou, não
ia expor a irmã, levantou-se da mesa para lhe telefonar, “Estou? Preciso de
falar contigo urgentemente! Quando podes?”, imediatamente percebeu do que se
tratava, o seu coração gritava e a razão procurava silenciá-lo, agora só queria
ver, já acreditava, a cidade não era assim tão extensa, ao ver as fotos, do
homem que dormia a seu lado com outra mulher, bem mais nova, espantou-se por
apenas sentir compaixão, nem vestígios de raiva, ódio, ciúme, apenas compaixão,
talvez por de vinte e poucos anos, com o desgosto, passou a aparentar quarentas
e…, pediu as fotografias à irmã, prontamente as recebeu, nessa noite, quando
ele entrou em casa, com ar apatetado, sonhador, de criança com um brinquedo
novo, ela já deitara as filhas, esperou-o na sala, em pé, só um candeeiro,
emissor de luz tranquila e difusa, percebeu-lhe a expressão antes de tudo, com uma voz tranquila “Não
quero cenas, desculpas de adolescente, muito menos diálogo, vais calmamente
fazer as malas e sair… O resto será tratado nos próximos dias. E rápido, por
favor.”, foi ele a regressar à casa paterna, não tinha mais para onde ir, de
olhar no soalho, não conseguiu construir uma frase sequer, colocou apenas uma
muda de roupa numa mochila e saiu, só não lhe toleraria infidelidade sob o
mesmo tecto, a cidade não era assim tão extensa, corria o risco de ser visto
pela família dela, isso jamais admitiria, ela só regressou à casa paterna, para
visitar, com as duas filhas, a sua lado, sentia-se triunfal, conseguiu manter a
casa, os seus pais, nesse aspecto, foram providenciais, o segundo divórcio já era
demasiado, a cidade não era assim tão extensa, ao menos nem tudo se perdesse,
assim que soube da separação, disse-lhe adeus por mensagem, até deixou o café
em frente ao trabalho dele, ao ler as poucas e mal redigidas linhas, sentiu o
carácter irreversível do adeus, dolorosamente compreendeu que iluminara uma
frágil vela na procura de clarear uma noite infinda que transportava consigo há
muito…
Enquanto
esperava por ela, dentro do carro, ao final da tarde, levantou-se-lhe, vindo de
parte incógnita, um viés da mais densa das noites onde há uns anos mergulhara,
tentou rapidamente afastar aquela indesejada intromissão, por instantes, ainda
reflectiu no porquê de tal reminiscência, quando, de repente, os nós dela no
vidro, para destrancar a porta, devolveu-o à sua circunstância, era a segunda
vez que a ia buscar à saída do trabalho, a primeira foi consequência de mais
três idas, sozinho, ao café, olhares demorados, tantas frases por ali desfilam,
lá procurou dar o corpo da sua voz a algumas, sempre tão aquém do ideal, o
receio da voz dela não corresponder à doçura do olhar, afinal soou-lhe
melodiosa, de início, tudo é sonho, estava tão perdido naquele
olhar
esverdeado, atencioso e doce,
que nem se lembrou de ocultar a aliança no anelar-esquerdo, se reflectisse bem
nesse gesto, afigurar-se-ia ridículo, a palidez da marca gritaria bem alto, e
ele nunca fui muito escrupuloso no jogo de máscaras-sociais, assim sendo,
avançou desvelado, às frases de circunstância iniciais, seguiram-se as
habituais questões, alimento do diálogo, ela respondia pronta, sorridente e era
lesta a retribuir-lhe cada questão, ele pensava há quanto não lhe colocavam
questões assim (Se gostava do trabalho? Se era o seu sonho de criança? No
fundo, uma estupidez, vendo bem as coisas, que criança sonha, em adulto,
trabalhar num asfixiante espaço, inundado de papéis, papéis e mais papéis, com
ecos, por todo o lado, de ininterruptos telefones? Pois, nenhuma, claramente…
Mas ele deliciava-se com aquela atenção, permitia-lhe, de certa forma,
redescobrir-se, avaliar o seu percurso, e, como horizonte, aquele olhar
esverdeado, atencioso e doce, era possível melhor?), lá por casa, o seu
trabalho é apenas o imperativo ordenado, nada mais, ninguém lhe pergunta se
aquele era o seu sonho de criança, a verdade é que, assim que os seus olhares
se demoraram pela primeira vez, ele esqueceu a aliança, como se aquele olhar
esverdeado, atencioso e doce, fosse um lugar à sua espera desde sempre, a
possibilidade de vivenciar uma outra existência (há coisa melhor?), nem se
preocupou com a eventualidade de ela reparar, nunca o indiciou, quando lhe
perguntou a hora da saída, a resposta dela foi espontânea, ele retorquiu se a
poderia vir buscar, de novo, da parte dela, uma naturalidade afirmativa, como
era o primeiro encontro, quis ser cauteloso e jamais levá-la a um café, a
cidade também não era assim tão extensa, corria o risco de ser visto, optou por
rumar às praias, sempre oferece uma distância de tranquilidade, o respirar
harmoniza-se, um observador atento compreendia, com demasiada facilidade, que
ele construía uma personagem à medida das suas expectativas, em verdade, ele não
a ouvia, narrava uma história por si construída, trabalhava
num café para ajudar a mãe desvalida, o pai abandonara inexplicavelmente o lar
há demasiados anos, tal facto obrigou-a, para grande desgosto, a largar os
estudos, não obstante o notório fulgor de inteligência, bem mais nova que ele, de
certa maneira parece um retornar ao início da caminhada, uma nova possibilidade
de corrigir passos erráticos, se, por acaso, tivesse um receptor da sua
confiança, seria esta a personagem que apresentava, tão distante de uma jovem
promíscua, conhecedora do fascínio que exerce sobre o sexo oposto, que muito gosta
de os ver a seus pés, para o efeito joga todo o
arsenal da arte feminina da sedução, já
que no restante tempo só lhe resta andar de bandeja na mão a servi-los e a
ouvir rudezas, coleccionava empregos precários como aquele, a instabilidade
emocional reflectia-se a cada passo, virou, muito cedo, costas aos livros, o
único aspecto positivo da escola era, lá em casa, não a mandarem trabalhar,
assim arrastou a coisa o máximo possível, quando atingiu a maioridade, com três
reprovações no currículo, a única porta que se lhe abriu foi trabalhar, começou
numa tascazita do seu bairro, tratou logo de encantar o filho do patrão, foram
apanhados, pela hora do almoço, no armazém, foram descuidados com a volumetria dos gemidos, não restou alternativa,
apesar da veemente oposição do filho, pagou os dias de trabalho e depois
abriu-lhe a porta, o filho ameaçou seguir-lhe os passos, o pai colocou-o à-vontade,
apenas sublinhou que ali teria de deixar as chaves do carro, nem hesitou,
correu atrás dela, no entanto, quando o viu, durante dias, a arrastar-se, de
todas as formas possíveis, pelas ruas, durante o dia, pelas digitais, durante a
noite, perdeu o interesse, como um artista após a obra feita, ou um atleta após
a marca alcançada, ou um assassino após o crime, e ela era uma assassina de
corações, o desgraçado quase se perdia para as drogas, não fosse a pronta
intervenção paterna a resgatá-lo, regressou ao trabalho na tasca e recuperou as
chaves do carro, não raras vezes o pai amaldiçoou a hora em que a empregou,
percebeu-lhe demasiado calor nos gestos, só nunca equacionou que o filho caísse
em tão óbvia armadilha, o episódio no armazém, pela hora do almoço, só não
ganhou mais ecos, pelo bairro, porque o pai era homem de palavras essenciais, não
obstante a volumetria dos gemidos, mas a sua sede, de
os ver a seus pés, somava episódios no bairro e não só, quando percebeu o seu insistente olhar, a
meio-caminho entre a timidez e a gula, percebeu que seria uma presa fácil,
andava entediada, lá por casa, o pai, veterano condecorado das pielas, entrava
e saía consoante o peso da carteira, a mãe nunca lhe negava o regresso, talvez
por aí a sua sede de os ver a seus pés, reparou, de imediato, na aliança, nunca
andara com um casado, apenas comprometido, seria, para ela, uma adenda ao seu
currículo, sabia, também, que nunca largaria a esposa, óptimo, quando se
fartasse, ele não poderia provocar muitas ondas, as rédeas estariam do seu
lado, algo de que sempre se assegurava, não gostava de melodramas, limitou-se a
ser a personagem que ele construíra, nada mais simples, trabalhava num café
para ajudar a mãe desvalida, o pai abandonara inexplicavelmente o lar há
demasiados anos, tal facto obrigou-a, para grande desgosto, a largar os
estudos, não obstante o notório fulgor de inteligência, bem mais nova que ele,
enterneceu-se quando, na primeira saída, a levou até à praia, o alaranjar do
horizonte, era um romântico, coitado, pensou ela, vai ser uma dolorosa queda, no
seu currículo já soma múltiplas saídas que não foram além do banco-traseiro, tudo
isto constitui uma novidade, até a forma, antes de um primeiro beijo, de ele
lhe percorrer, suavemente, a face com um gesto de ternura.
Tudo começa com uma demora nos olhares, tantas
frases por ali desfilam, parte-se com a certeza de que por ali muito ficou por
dizer, ele não prescindia, a meio da tarde, de um
café, esta necessidade agudizou-se há uns meses, descia com um colega,
atravessavam a rua e entravam no café em frente, nessa dezena de minutos nunca falavam de trabalho, como se um acordo tácito,
frases de circunstância e pouco mais, eram apenas colegas ávidos de sair um
pouco daquele asfixiante espaço, inundado de papéis, papéis e mais papéis, ecos,
por todo o lado, de ininterruptos telefones, pouco conheciam do outro, mas o
suficiente que permitisse atravessar uma rua para um café, um casado há uma
década, com duas filhas, desposou a mulher para esquecer uma paixão, a mulher
desposou-o para deixar de ser a divorciada, era uns anitos mais velha, em
verdade, uniram-se para esquecer paixões, um erro grosseiro, as paixões nunca
se esquecem, apenas podemos adormecê-las, ela, muito cedo, entregou-se ao calor
de tal sentir, enfrentou a família e, perante a autoridade dos homens, colocou
uma aliança no anelar-esquerdo, não ousou ascender à autoridade divina, tudo se
esfumou em poucos meses, regressou a casa paterna e “Quantas
vezes te avisámos, minha filha?” repetia-se, pelo menos, três dezenas de
vezes por dia, equitativamente dividido entre pai e mãe, de
vinte e poucos anos, com o desgosto, passou a aparentar quarentas e…, olheiras,
as maçãs do rosto descaídas, uma magreza e flacidez simultâneas, das piores
combinações possíveis, é sempre duro compreender que só nos apaixonamos por
ideias, o sujeito que lhe colocou uma aliança no anelar-esquerdo, sob a
autoridade dos homens, contra a vontade da família, não regressou, durante uma
semana, ao apartamento, de uma assoalhada, alugado, as irmãs contaram-lhe que fôra
visto na companhia, em múltiplas ocasiões, de senhoras com generosos decotes,
sempre de copo na mão, a entrar e sair de bares madrugada adentro, do trabalho
ligaram, apenas por uma vez, a perguntar o porquê da sua ausência, elucidativo,
ela não soube o que responder, mas intuiu, pelo tom, que tal chamada não se
repetiria, um facto, pelo sétimo dia, no decorrer de uma manhã de Domingo, após
ligar a uma das irmãs, com a voz entrecortada, a pedir que a viessem buscar,
ela fez as malas, desceu, e aguardou no passeio, nesse entretanto ainda olhou
para o seu carro ali estacionado perto, não conseguia reunir forças e guiar
para longe dali, teriam de a levar, no dia seguinte rescindiu o contrato de
arrendamento, com o suporte da família entrou com a papelada para, sob a
autoridade dos homens, retirar a aliança do anelar-esquerdo, de vinte e poucos
anos, com o desgosto, passou a aparentar quarentas e…, os pais respiraram
melhor apesar de se sentirem nodoados com a aliança tão precocemente colocada
no anelar-esquerdo da filha mais velha para, pouco depois, ser tão abruptamente
retirada, a paixão dele mergulhou-o na mais densa das noites, chegou a ter de
se socorrer de quem norteie a razão alheia, uma vez que não há medicina para o
coração da alma, e como esse lhe sangrava, olharam-se como um porto.de-abrigo,
eram dois seres dilacerados pelas paixões, estavam exangues, apenas procuravam
a quietude de um abrigo após tão dolorosa intempérie, do colega que o
acompanhava nas fugas de café pouco sabemos, apenas que vivia maritalmente com
uma enfermeira, quando se questionava a razão de não haver alianças, tudo
servia, até o anacronismo da instituição casamento (a quem interessa este
facto? Pois, aos do costume…), tudo começa com uma demora nos olhares, tantas frases por ali desfilam, parte-se com a certeza de
que por ali muito ficou por dizer, assim foi nessa tarde quando abandonaram
o café, ele ficou perdido no olhar esverdeado, atencioso
e doce da nova empregada, aprendera, há muito, que nunca se partilha um
destino almejado, assim que saíram, após os habituais dez minutos onde nunca
falavam de trabalho, como se um acordo tácito, frases de circunstância e pouco
mais, sentiu um imenso desejo de regressar, até se estranhou, não sentia um
calor assim desde, pois, a intempérie que o dilacerou, antes de atravessar a
rua, olhou para trás, ela recolhia as chávenas da mesa onde se sentaram, assim
que se ergueu, os seus olhares, pela segunda vez nessa tarde, demoraram-se, tantas frases por ali desfilam, parte-se com a
certeza de que por ali muito ficou por dizer, pelo largo vidro da montra, ficou
a contemplá-la, de bandeja na mão, imóvel, num
desamparo que lhe fendia o coração, nesse final de tarde, ao entrar em casa, só
a imagem dela, de bandeja na mão, imóvel, num desamparo que lhe fendia ainda
mais o coração, ausente para a sua circunstância familiar, respondia com
monossílabos e um sorriso, apenas se queria centrar naquela imagem de bandeja
na mão, imóvel, nessa noite, já deitado, olhou a mulher, a seu lado, com uma
revista de vulgaridades, olhou-a com discrição e reflectiu na sua relação
íntima, entre lençóis nunca houve paixão, apenas sexo,
foi a sua conclusão, se há uma década ela de vinte e poucos anos, com o
desgosto, passou a aparentar quarentas e…, com dois filhos, descuidou-se
bastante, nesse aspecto, ele não falhava a sua corrida de fim-de-semana, a
verdade é que já não se sentia muito atraído, e foi penosa a sua conclusão: entre
lençóis nunca houve paixão, apenas sexo; ela há muito aí aportara, daí não se
coibir dos seus docinhos ou salgadinhos ao longo do dia, quanto a corridas, já
lhe bastavam as lides domésticas e as diárias para o trabalho, nesta fase,
quando o olhava, a seu lado, deitado, concluíra que o coração de uma mulher só
conhece uma Primavera, e a sua terminou numa manhã de Domingo, com um
indesejado regresso à casa paterna, no dia seguinte, teria de regressar sozinho
ao café, para compreender se, de facto, aquele olhar esverdeado,
atencioso e doce, era para si, para o efeito, teria de sair, discretamente,
noutra hora, assim o fez, sem nada dizer, escapuliu-se, atravessou a rua quase
em corrida, e entrou, àquela hora só duas ou três mesas ocupadas, e uns quantos
vultos ao balcão, ela estava de costas a tirar um café enquanto a outra
empregada de volta das mesas, não lhe restou alternativa, sentou-se ao balcão
e, enquanto ela de costas, a tirar um café, apreciou-lhe alonga trança, num castanho-claro, quase louro,
zelosamente entrelaçada, as formas que tanto agradam a um olhar masculino, no
entanto, ele somente aguardava por aquele olhar esverdeado, atencioso e doce, onde
se perdera, assim que ela se virou, em equilíbrio, com a chávena de café
fumegante na mão, os seus olhares reencontraram-se, nesse instante, ele
soube-se, uma vez mais, perdido…
Hoje
resolvi levantar a memória de uma figura que, num certo contexto, ficou
conhecida pelo supracitado título (homónimo de um aclamado filme), nesta
altura, estar-se-á o leitor a questionar: Porquê Filadélfia? Bom, já lá iremos…
A primeira característica a ressaltar era a sua
irritante voz, algures
entre um boneco-de-corda e uma criancinha com mimo em demasia, para agudizar o efeito, tinha o condão de
muito pouco se calar, era efectivamente simpático, nada a obstar, no
entanto, aquele timbre, algures entre um
boneco-de-corda e uma criancinha com mimo em demasia, assassinava a paciência
de qualquer um, falava com todos, diálogos de superfície, pouco mais,
embora, por vezes, tentasse dar um passito para além do circunstancial, para o
efeito, elegeu a música como seu baluarte, sobretudo uma área recente – a
denominada “música alternativa” – ou lá o que isso seja,
creio, com sinceridade, que, por estes dias, haja nichos para tudo, de volta à
personagem em apreço, há que sublinhar o seu divórcio com o trabalho, e foi
litigioso, sublinhe-se, nunca o ouvi proferir tal vocábulo, ainda hoje não sei
se foi logo à nascença, é uma possibilidade, quando alguém, por acaso, falava
de um episódio no seu emprego, ficava em espanto, emudecido, como se, de
repente, falasse num idioma estranho proveniente de longínquas paragens, o seu
quotidiano cingia-se a casa, à frequência daquele contexto, e aguardar pelas
sextas-feiras onde, na companhia de outro melómano, rumava para essas lojas recônditas, sobretudo na capital, onde se vendiam
álbuns de “música
alternativa,” era vê-lo chegar, uma dezena de minutos antes da hora
combinada, para povoar todo o espaço em redor com aquele timbre, algures entre
um boneco-de-corda e uma criancinha com mimo em demasia, assassinava a
paciência de qualquer um, como gostava de discorrer sobre álbuns e cantores
incógnitos para a maioria, muitas vezes, no regresso, lá vinha com alguns
debaixo do braço, com ar de júbilo, pois, incógnitos para a maioria, em algum
momento teria de se sentir um iluminado, embora luz não lhe faltasse, pelo
contrário, essa era uma das suas mais notáveis características, em verdade,
independentemente da hora ou da circunstância, parecia
sempre saído de uma intensa sessão de sauna, as luzes em volta
reflectiam-se-lhe no rosto, o cabelo similar a um anúncio de gel, talvez
fosse um homem de calores, é possível, a seu lado, omnipresente, a figura
materna, dessas que acha ser o farol do mundo, apesar
de nem a pirilampo chegar, não só pela altura como pela consistência das
frases emitidas, o semblante registava a aspereza de
uma inextinguível dívida por cobrar do mundo, as coisas são, quase sempre, muito
simples, a partir de certa idade, as mulheres que registam um semblante áspero de
uma inextinguível dívida por cobrar do mundo são as divorciadas e mal
resolvidas, denotava-se-lhe pelo penteado que a sua inspiração estava
além-Atlântico, numa jornalista cuja permanente companhia era um
papagaio-verde, de facto o cabelo transparecia uma aura falante e alada, confesso
que, não raras vezes, dei por mim a olhar para os seus ombritos, na expectativa
de por ali vislumbrar um papagaio-verde, como era estranho conciliar estas duas
personagens, à superfície tão distintas, mas com tão singulares laços como: mãe
e filho: ela com um semblante áspero, de uma inextinguível dívida por cobrar do
mundo, a achar-se um farol da razão, apesar de nem a pirilampo chegar, ele parecia
sempre saído de uma intensa sessão de sauna, as luzes em volta
reflectiam-se-lhe no rosto, o cabelo similar
a um anúncio de gel, com a sua irritante voz, algures entre um boneco-de-corda
e uma criancinha com mimo em demasia, para agudizar o efeito, tinha o condão de
muito pouco se calar, soube-se mais tarde, em certos contextos tudo acaba por
emergir, que, além de ter uma companheira, já tinha um descendente, cioso da
sua privacidade, compreensível, já brilhava em demasia, certa tarde, de uma
sexta-feira, foi visto com a sua companheira, antes de embarcar na odisseia por
lojas recônditas, sobretudo da capital, onde se vendiam álbuns de “música
alternativa,” houve quem jurasse que a sua companheira parecia a última
contratação de um conhecido clube de futebol, enfim, pura maledicência, só
podia ser, talvez alguém que se sentisse ofuscado com tanto brilho e almejasse
ter um cabelo saído de um anúncio-televisivo de gel.
Antes
da chave na porta, já lhe ouvira os saltos no patamar, a porta a abrir e
fechar-se, o elevador, num lamento mecânico, a caminho de outras altitudes, a
carteira pousada à pressa, o prolongado gemido da porta-da-despensa, por fim,
uma breve luta para abrir algo, encosta-se à bancada e suspira, de onde estava,
no sofá, frente à televisão, visualizava, no pensar, cada passo da filha, ia
para dois meses desta cadência, acabava, minutos depois, por lhe aparecer,
cumprimentos, frases de circunstância, tudo muito pela superfície, bastavam os
olhares para se compreender a desolação pressentida, filhos e pais, a partir de
certa idade, simplesmente não devem coabitar, antagónico à ordem natural do
existir, as circunstâncias levaram-na a desgraçadamente
regressar ao ninho materno (se assim se pode designar), apesar das vincadas
diferenças entre elas, quando dali partira, há cerca de quinze anos, afirmara “Só aqui regresso, para vos visitar…”, o pai
ainda presente, em verdade, a frase era-lhe dirigida, entre elas sempre
vincadas diferenças, a vida e o seu enlear levaram-na a capitular quantos dos
seus valores? Contra os desígnios maternos, juntou-se a um sujeito mais velho,
divorciado, pai de dois filhos, a mãe incessantemente lhe repetia (“Casar rima com alguma segurança, juntar é de uma total
insegurança”), ela prontamente rebatia com conceitos
oníricos de Felicidade e Realização, a mãe respondia (“Casar rima com
alguma segurança, juntar é de uma total insegurança”), passados oito meses,
anuncia aos pais a sua gravidez, vendia viagens na agência do sujeito, aí se
conheceram, embora detestasse fazer as malas, aqui se vislumbrava uma primeira
fissura que não passou despercebida ao atento olhar materno, ele sempre
prontinho para o próximo destino, assim que soube da gravidez aparentou
entusiasmo, a paternidade não lhe era estranha, não é possível, a quem está de
fora, percepcionar a força e magia dos invisíveis laços que levam um homem e
uma mulher a caminhar na mesma direcção, oito semanas depois de anunciar aos
pais a sua gravidez, certo final de tarde, a olhar os sapatos, num murmúrio,
comunica-lhes que não vingou, o médico, por precaução, desaconselhou novas
tentativas, o problema era dela, estrutural, o pai abraçou-a prontamente, a mãe
questionava a razão de a filha ali estar sozinha a dar-lhes tal notícia, pensou
em questioná-la onde estava o sujeito, a emoção da cena fê-la silenciar-se, há
muito não via pai e filha tão irmanados na dor, sabia do seu sonho de ser avô,
agora, nesse final de tarde, esfumado, não conseguiu levantar-se e abraçar a
filha, o marido já o fizera por si, permaneceu sentada e emitiu frases de
ocasião, o facto de a filha ali estar só, a dar-lhes tal notícia, apenas lhe
causava repulsa, em verdade, nem conseguia fitá-la, não era também seu objectivo ser avó, tal
como mãe, daí só ter aceitado o facto por uma vez, tudo fez para que não se
repetisse – quando lhe puseram aquela pequena criatura nos braços, enrugada,
ruborescida, que se contorcia como um idoso, em busca de uma posição que lhe
pacificasse ossos e articulações, olhou-a como uma estranha, ainda procurou, em
si, de todas as formas possíveis, ligar-se àquele
diminuto ser que segurava, um espelho, algo seu por ali derramado, nada, essa
foi a verdade, nada, por si ecoaram frases ocas repetida e exaustivamente
propaladas (“É um momento único! Inexplicável! Tornamo-nos logo outras… A
vida muda naquele segundo… Deixamos de importar, só o bebé… Até o nosso
respirar muda… Nada de iguala àquele instante em que nos depositam o bebé nos
braços… Vale por uma vida! Não se encontram palavras à altura de tal sentir…”),
ela ainda procurou, de todas as formas possíveis, ligar-se àquele diminuto
ser que segurava, um espelho, algo seu por ali derramado, nada, essa foi a
verdade, nada –, sentiu padecer de um qualquer
inominável mal, foi dos momentos de maior solidão da sua existência, talvez
o maior, naquela madrugada, com a bebé nos braços, olhá-la e nem vislumbres de
um sentir cantado desde tempos imemoriais, um sentir que jamais ousou comunicar,
pois, sentiu padecer de um qualquer inominável mal, extenuada, dorida, sapiente
de que a dor maior jamais poderia verbalizar, levaria dali uma estranha, nos
braços, para casa, uma noite de hospital é a eternidade, quando a luz se
apagou, ela só se recorda de virar costas, ao berço plástico ao lado da cama, e
rezar pela misericórdia de um sono que a levasse para bem longe dali, apesar de
ela jamais verbalizar o seu sentir, com o tempo, a filha bebeu-o, o olhar na
direcção da mãe apenas reflectiu esse fel, quando o pai se aproximava, o rosto
suavizava-se e o olhar em luz, assim decorreram os anos entre eles, vendo bem
as coisas, sob a luz do tempo, a verdade é que o pai não insistiu muito em
dialogar por outro filho, é possível que, nos primeiros meses, em múltiplas ocasiões,
a visse de costas voltadas para o berço a seu lado, há coisas, na vida, que
sabemos, no entanto, incompreensivelmente não queremos acreditar, por
conseguinte, atiramos para uma indistinta zona de nós, algures entre indizível
e o esquecimento, para continuarmos a respirar com quem vive sob o mesmo tecto,
as circunstâncias levaram-na a desgraçadamente regressar ao ninho materno (se
assim se pode designar), apesar das vincadas diferenças entre elas, quando dali
partira, há cerca de quinze anos, afirmara “Só aqui regresso, para vos
visitar…”, o olhar da mãe gritava-lhe essa frase, sentia-o de onde estava,
encostada ao balcão da cozinha, de olhos fechados, a saborear, com lentidão,
cada quadrado do chocolate que há pouco abrira, precisava daquele doce para
equilibrar o tanto fel que a habitava.
Aquela frase (Veja lá se cuida de si, homem), hoje, diante de mim, de certa
forma, como se tivesse regressado, com um propósito, talvez para me relembrar
que, pois, talvez por aí, assim que a ouvi, virei-me, com a esperança de um
rosto, embora soubesse que o destinatário do - Veja lá se cuida de si, homem – fosse outro… Não se pode dizer que
não gostasse da minha vida, nada disso, casada, dois filhos, ainda por cima um
casalinho, ele mais velho três anos, uma casa agradável, nada de luxos, é
verdade, mas tinha todas as comodidades, a única coisa que me incomodava um
pouco, não assim tão pouco, já que estamos com esta mania das verdades, era
aquela sua apatia face a tudo, e sempre com o cigarro, o que me irritava aquele
cigarro, apesar de também fumar, e há tanto que o faço, mas nele, não sei
porquê, irritava-me, parecia que lhe acentuava aquela apatia, trabalhava como
engenheiro numa construtora, era o primeiro a sair de casa, já de cigarro na
boca, e parecia-me, não sei se era só uma vaga impressão, que falava cada vez
menos, ia para a estação a pé, com o tempo parecia que se divorciara do carro,
que para ali ficava a remoer desamparos e costas voltadas, o miúdo (um filho
nunca cresce para os pais) também caminhava pelas engenharias, ela ainda
indecisa no términus do liceu, eu apanhava diariamente boleia de um casal
vizinho para a repartição pública onde trabalhava há quase década e meia,
ficava-lhes a meio do seu também diário trajecto, e como havia quotidianamente
um recorrente tema de conversa, mas é curioso, sempre a apresentei a terceiros
como minha vizinha, ou pelo nome,
claro, jamais usei o epíteto de amiga,
ela também usava o mesmo diapasão, são as tais zonas de silêncio, onde o verbo
se torna uma obscenidade, regressava de comboio, mas nunca por ali encontrei um
cigarro a acentuar apatias, depois de fechar a porta de casa, às vezes, ainda a
mulher-a-dias por ali, aproveitava para lhe dar indicações para o dia seguinte,
bem sei que, entre os vizinhos, nesta altura, houvesse invejas pelo facto de
serem outras mãos a cuidar da limpeza do que é nosso, mas não me ralava nada,
chegada do trabalho, eu queria era sentar-me na esplanada do café em frente, a
folhear as revistas da moda, era disso que eu mais gostava, dava por mim, não
raras vezes, durante o dia, a suspirar por este momento, na esplanada do café
em frente, a folhear as revistas da moda, tinha a maior parte das vezes como
companhia a vizinha que me dava boleia de manhã, sempre a apresentei a
terceiros como minha vizinha, ou pelo
nome, claro, jamais usei o epíteto de amiga,
ela também usava o mesmo diapasão, são as tais zonas de silêncio, onde o verbo
se torna uma obscenidade, percebia-se-lhe uma latente fuga da ruralidade, nos
gestos, palavras, vestuário, vaticinava-lhe sucesso, no entanto, ainda não
terminara, gostava de conversar com ela, não obstante um par de anos mais
velha, ouvia-me com um fascínio reverencial, pois, ainda a fuga da ruralidade,
o facto de o marido ser vendedor de artigos de construção, só lhe atrasava os
passos da fuga, sempre que se referia ao meu era o senhor engenheiro, ria-me interiormente, aquela sua apatia face a
tudo, e sempre com o cigarro, o que me irritava aquele cigarro, apesar de
também fumar, e há tanto que o faço, mas nele, não sei porquê, irritava-me,
parecia que lhe acentuava aquela apatia, confesso que gostava daquela atenção
desmedida, do fascínio reverencial, há tanto que ninguém segue assim as minhas
palavras, o senhor engenheiro numa
apatia crescente, consagrado ao fumo daquele infindável cigarro que tanto me
irrita, o miúdo (um filho nunca cresce para os pais) às voltas com a
calculadora e com a namorada, a miúda (uma filha também nunca cresce para os
pais, ou talvez o faça demasiado depressa) sempre a falar da próxima noite de
Sábado, com um sublimado pedido de saída, ou de penteados e mexericos com as
amigas, não me lembro da última vez em que, algum deles, se sentou diante de
mim, na esplanada do café em frente, por mais que um minuto, confesso que me
dava imenso jeito a boleia, todos os dias, de manhã, ficava-lhes a meio do seu
também diário trajecto, permitia-me sair uma hora depois de casa, e poupava-me
à infindável sucessão de encontrões das viagens matinais de comboio, para
retribuir com algo, sentia-me na obrigação de lhe ensinar a melhor direcção na
sua fuga da ruralidade, e como eu gostava daquela atenção desmedida, do
fascínio reverencial, às minhas palavras, ela só tinha um filho, teria
aproximadamente a idade do nosso, a certa altura, falou-se no bairro das
companhias, ela jamais comentou alguma coisa, nem nas boleias matinais, nem nos
cafés vespertinos, também nunca lhes denotei algo de diferente, nem nos gestos,
nem nas vozes, ao contrário do senhor
engenheiro, o marido dela coloria as palavras de emoção e graça, quantas
vezes, nas boleias matinais, não dei por mim em gargalhadas, tão distinto da
austeridade nocturna da nossa casa, apesar de termos uma das primeiras
televisões a cores do bairro, ele com o infindável cigarro e a galopante
apatia, certa manhã, a boleia atrasou-se, parece que, durante a noite, a
polícia os visitou, confirmou-se que o filho com muito más companhias, o bairro
expressou a sua desaprovação, felizmente, o meu menino quase a suceder ao pai
como senhor engenheiro, o tempo lá
continuou o seu caminho de aparência invisível, consegui uma repartição mais
próxima de casa, já não precisei de mais boleias, entretanto, abriu um café com
uma esplanada bem mais solarenga, optei por essa, e, em verdade, parecia mal
que a mulher do senhor engenheiro apanhasse
boleia daquele casal com um filho que andava com tão más companhias, depois
dessa visita nocturna das autoridades, talvez por vergonha, soube que mudaram
de casa, perdi-lhes o rasto, o tempo lá continuou o seu caminho de aparência
invisível, foi mais ou menos quando pus os papéis para a reforma, que um amigo
nosso se sai com esta Veja lá se cuida de
si, homem, a partir daqui, tudo se traduziu numa queda, a magreza, uma
crescente palidez, médico, exames, outros médicos, uma frase que tanto me
cansou (Tem de largar o cigarro já!),
mais exames, mais médicos, a magreza continuava a ganhar terreno, tal como a
palidez, o hospital, além dos filhos, a visitá-lo, somente eu e o meu irmão,
nem um colega de trabalho, nem um vizinho, nas horas de visita, o omnipresente
ponteiro do relógio de parede a relembrar a nossa insuficiência, como se cada
segundo fosse um passo que o distanciasse de nós, por vezes, ele na súplica por
um cigarro, nesses momentos, quem me dera saber o que fazer, logo eu, que fui
ouvida com uma atenção desmedida e um fascínio reverencial, certa tarde, já
sabíamos que ele perdera a corrida para o mal que o habitava, era uma questão
de dias, informara-nos o médico, numa
indiferença de talhante, saberia ele que o meu marido era um senhor engenheiro? Deambulava eu, pelos
corredores do hospital, surda para o que me rodeava, a arrastar uma dor que me
puxava para a terra, quando a vi, ao fundo, veio ao meu encontro, enquanto se
aproximava, não consegui reprimir um sorriso, afinal, nesta vida, há corridas
que se vencem…