Livros do Escritor

Livros do Escritor

segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Nuvens passeantes pelas águas

 


Desde criança sempre tive esta coisa de me perder a olhar horizontes, talvez o sonho de além conseguir pousar a bagagem da minha alma, os meus avós tinham um quintal rodeado de muros, quando por ali ficava, de imediato subia uma escada-de-madeira encostada num desses muros, ali ficava, o necessário, a olhar para Leste, hoje sei que essa escada-de-madeira estava encostada ao muro virado para Leste, à noite, pelo vidro da janela, pouco via para além dos muros, uma chaminé ali, o telhado de uma casa acolá, pouco mais, foi então que resolvi pegar numa enxada, apesar de pouco mais de dez anos, senti-me capaz de mudar o mundo, com uma década, o sonho acompanha-nos o respirar, e comecei a escavar o centro do quintal da casa dos meus avós, sabia, de antemão, que logo ecoaria um brado de minha avó, sempre atenta ao acontecer, apesar da dificuldade no manuseio da enxada, pelo comprimento associado ao peso para os bracitos de um miúdo de dez anos, não me demovi de a levantar aos céus para logo atingir  o terreno visado, logo à primeira investida percebi a dificuldade da empreitada, o terreno era duro, a enxada quase ricocheteava, porém, eu estava resoluto, nada me demoveria, senti a rudeza do cabo de madeira da enxada, de certa forma, a vida apresentava-se-me, continuei a levantar a enxada aos céus e a mergulhá-la na terra, repetidamente, até que o expectável brado de minha avó me chegou, tive de largar a enxada e correr ao seu encontro para me justificar, nada podia perigar o meu projecto, após lhe apresentar as minhas explicações, do que tinha idealizado para o centro do quintal, li-lhe, pelas expressões, primeiro, espanto, nunca havia pensado em tal coisa, depois, alegria, por ver o neto materializar a ideia, já nessa altura, sabia que, quando um adulto não verbalizava o “Não”, que era um “Sim” impronunciado, voltei a pegar no cabo da enxada e, uma vez mais, a trazê-la à terra, e outra, mais outra, não sei quanto tempo passou, ser-me-ia hoje impossível precisar, o tempo da meninice tem outro respirar, pena que o desaprendamos, sei que, boa parte do quintal já na sombra, parei para, com indesmentível orgulho, observar metade da minha obra, só faltava a outra, espalhei a terra revolvida, funcionalidade e estética sempre me nortearam, e a educação, claro, por fim, só faltava saber se… Balde após balde fui enchendo de água a vasta extensão de terra revolvida (Ou seria apenas uma cova? Uma singela poça d`água? A percepção da meninice tem outro respirar, pena que a desaprendamos…), para meu júbilo, a água ali se mantinha, com o queixo pousado na enxada, fiquei a admirar a minha obra, faltava algo, sim, claro, de que me adiantava ter um lago se não o podia atravessar? Logo procurei uma tábua suficientemente comprida para o atravessar, e tijolos onde pudessem assentar as extremidades, uma ponte sem altura não tem dignidade, olhando para trás, muito me admira a quantidade de critérios estéticos que me habitavam, assim foi erigida a ponte, que tão orgulhosamente atravessei múltiplas vezes, embora todas me parecessem a primeira, no entanto, a ideia do lago tinha um propósito mais recôndito, se à noite, pelo vidro da janela, pouco via para além dos muros, uma chaminé ali, o telhado de uma casa acolá, pouco mais, após o jantar, iluminado pela lareira (Há quanto não tenho jantares iluminados por lareiras? A comida não sabia a pressa… O verbo alongava-se sob aquela luz bruxuleante… O tempo, ali, não tinha por onde entrar… Sob aquela luz, alimentada por dois ou três toros, cadenciada por uma melodia de crepitares avulsos, a Eternidade foi-me apresentada…), corri para o vidro da mesma janela do ontem, mas não olhei para cima e sim para as águas, lá em baixo, que espelhavam, em verdade, sonhos por descobrir, volta e meia, uma nuvem passeante obscurecia uma estrela, a água turvava-se, o meu olhar, nem por um segundo, se desprendia das águas, a ponte lá estava, reflecti no facto de aguardar a nuvem passeante para reencontrar o brilho da estrela, pois, através daquele vidro, aprendi o que era viver.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024


 

Nocturnos


Um dos encantos da noite, desde miúdo, reside no fascínio de olhar as janelas iluminadas em volta, como se, por aí, o lar que nunca encontrei entre as paredes onde habitava, como se, por aí, o paraíso que sempre procurei, ou seja, o lugar onde me compreendessem, até hoje o procuro, duvido que o encontre, pelo menos, caída a noite, vou até uma janela e olho as luzes das casas em volta, tudo numa aparente serenidade, a dor do mundo parece ter partido para um lugar demasiado longínquo, onde nem a imaginação a alcança, quando olho as janelas iluminadas em volta, faço-o no melodioso silêncio nocturno, jamais com música, seria supérfluo, basta-me, de facto, o melodioso silêncio nocturno, este meu lado sonhador felizmente ainda não me deixou, se tivesse sucedido, ser-me-ia impossível redigir estas linhas sobre janelas iluminadas em volta, ainda hoje, caída a noite, olho as luzes das casas em redor, a minha atenção demora-se sobretudo onde não vislumbro o écran que tudo devora em redor (Quantos anos de verbo, numa família, são calados? Quantos estranhos se edificam, entre paredes, à volta desse écran? Quantos sonhos ficam por partilhar? Quantos não partiram sem tempo para um gesto de adeus?), pois, como dizia, a minha atenção demora-se sobretudo em janelas onde não encontro o tremeluzir desse écran, algo de encantatório, para mim, nesses espaços, um eco de poesia, uma musicalidade  prenunciada, talvez porque, entre paredes, esse écran, que tudo devora em redor, imperasse, todos o reverenciavam, por algum motivo tinha uma posição central na sala, o lugar de uma divindade imposta para todos adorarem, foi, mais ou menos, nessa altura que se iniciou, em mim, a compreensão de tal absurdo, devia haver lugares, neste mundo, onde me compreendessem e a dor tenha partido para uma demasia longínqua, onde nem a imaginação a alcance, continuo a acreditar, quando olho janelas iluminadas em volta, que por ali o sentir encontre a palavra, e o que nos habita encontre eco num outro, lembro-me de, numa janela iluminada, ver um sujeito à secretária, já de madrugada, calava a obscenidade branca de folhas numa escrita resoluta, sabia por onde caminhava, a perspectiva que se me oferecia não permitia ver-lhe o rosto, a divisão apenas iluminada pelo candeeiro sobre o tampo da secretária, fascinava-me olhar a caneta, linha após linha, a formar um todo só por ele conhecido, eu, incrédulo, assistia a um acto demiúrgico, senti-me um privilegiado, talvez um romance, ou o relato das suas múltiplas viagens pelo mundo, um viajante cansado que, por fim, ali assentou, e agora resolveu verter, em papel, madrugada após madrugada, à luz daquele candeeiro sobre o tampo da secretária, o tanto que vivenciou, poesia não me pareceu, sim, era prosa, disso tenho a certeza, escrevia embalado pelo melodioso silêncio nocturno, nunca me ocorreu, durante o dia, olhar para aquela janela, de certa forma compreendo-o, a luz do dia turva os pormenores, as janelas tornam-se herméticas, a vida parece ter partido para um qualquer outro lugar, como se tivesse perdido interesse pelos que caminham sob o sol,  numa outra janela iluminada, havia um casal de velhotes, cada um sentado no seu cadeirão, o écran tremeluzia, embora não parecesse emitir qualquer som, como se, no fundo, para aquele casal de velhotes, o próprio écran, em silêncio, constituísse a sua janela iluminada, ela tricotava numa elegância serena, a compreensão do desperdício da fúria e das pressas, ele com um jornal ou uma revista, percebia-se-lhes diálogo, o silêncio do écran contribuía para esta convicção, volta e meia um gato pulava, numa elegância serena, a compreensão do desperdício da fúria e das pressas, para o braço do cadeirão onde ela estava, nunca o vi pular para o cadeirão onde o velhote com um jornal ou uma revista, a visão do gato, entre os velhos, conferiu o calor que me permitiu soletrar “lar” àquela janela iluminada, a vida por ali ainda se mobilizava, numa elegância serena, a compreensão do desperdício da fúria e das pressas, certa madrugada, uns andares mais abaixo, pela iluminada janela, retive-me a olhar um casal, de pé, a conversar com o filho, sentado, olhava a carpete, teria a minha idade nessa altura, adolescente, havia seriedade nas expressões dos pais, o filho com a carpete, mas de ouvido atento, percebi diálogo, jamais discussão, quiçá um daqueles momentos decisivos, nesta caminhada, em que os pais são cruciais para, no amanhã, o adulto não coxear, um pormenor ressaltou-me de imediato, apesar de permanecerem em pé, pai e mãe jamais cruzaram os braços, por aquela janela iluminada censura e derrota não tinham espaço de entrada, talvez se, o adolescente levantasse o olhar da carpete, concluísse o mesmo que eu.

domingo, 22 de dezembro de 2024

Indulgência

 


Dizia-se, por aqueles lados, nunca lhe ouvir um insulto, uma ofensa, um azedume, um grito, uma reprimenda, o timbre sempre discreto, como se um apelo à compreensão e ao serenar, vivia num rés-do-chão, não se lhe conhecia outros paradeiros, com o seu canário, saía de casa apenas para as compras ou a obrigatória Eucaristia-Dominical, pouco mais, se alguém apelasse à sua ajuda, por este ou aquele motivo, nem hesitava, era uma casa modesta, sala, cozinha, quarto e casa-de-banho, para ali se mudaram, ela e o marido, há pouco mais de três décadas, houve quem dissesse que tinham muitas posses, no entanto, o desespero da luta contra o vício do único filho quase lhes levou tudo, até a saúde do marido, partira há dezoito meses, o filho partiu bem antes, há pouco mais de três décadas, tentaram de tudo (clínicas de desintoxicação, mudança de casa para ver se outras companhias, colégios internos, curandeiros de vária ordem, ameaça de deserdar…), cada dia mais magro, pálido, alienado, só se alimentava da crescente subtracção da alma, o negócio do pai minguava simultaneamente, a energia não dava para tantas frentes de batalha, ela tentava compreender o porquê de o filho tanto querer subtrair a alma, sem um insulto, uma ofensa, um azedume, um grito, uma reprimenda, o timbre sempre discreto, como se um apelo à compreensão e ao serenar, talvez equacionasse até que a falha pudesse ser sua, neste ponto, o pai mais radical, sabia que o mimo não augura bons destinos, certa madrugada, o mal quase sempre espeita na obscuridade, a insistência demasiada do telefone, um grito ameaçador de todos acordar por aqueles lados, contrariado foi o pai atender, sem antes o desencontro dos pés com os chinelos, o soalho a relembrar-lhe Inverno e madrugada, levanta-se acompanhado de um enorme bocejo e com a convicção de que as notícias seriam tão ou mais sombrias que a própria madrugada, ela acordara ao mesmo tempo, mas deixou-se estar, não quis agudizar o seu contrariado erguer, deitada talvez enfrentasse melhor a obscuridade que se avizinhava daquela insistência demasiada do telefone, um grito ameaçador de todos acordar por aqueles lados, ouve o silenciar do grito ameaçador, ele, a tentar suavizar a rouquidão e também o receio da prenunciada obscuridade, com um “Sim…” deveras arrastado, não ouviu o auscultador a ser devolvido à procedência, quando olhou para a ombreira do quarto, já o marido lá estava, se lhe perguntassem quantos minutos passaram desde o deveras arrastado “Sim…”, se dois, três, quatro ou cinco minutos, jamais conseguiria responder, para ela, o tempo suspendera-se, as palavras foram proferidas pelo olhar, lágrimas e gestos, há lugares onde a palavra é um excesso, o funeral foi três dias depois, tanto quis subtrair a alma que acabou por abandonar o corpo, ele sabia há muito quem pôs este veneno a correr pelas ruas, amaldiçoou-os entredentes, no dia em que foram enterrar o que seria o seu futuro, uma vizinha coloca-lhe a mão no ombro e “Depois disto, ainda acreditas em Deus?”, ela, sem nunca levantar o olhar dos pés, com a suavidade possível na voz, “Mais do que nunca! Ela partira há muito daqui… Só o corpo se arrastava por este lado… Há maior gesto de misericórdia?”, não sabemos se a vizinha atingira o alcance das suas palavras, no mínimo terá lido incongruência fruto da dor, há muito ela compreendera a essência  das coisas, desejo e acontecer raramente coincidem neste caminhar, por conseguinte, ela simplesmente resolveu sorrir e confiar em Deus ou no destino, como lhe queiram chamar, embora fosse crente, apesar de a vida tanto a subtrair, pelo menos jamais lhe conseguirá tirar Deus, como esse facto lhe estruturou a fé, e como a fortaleceu, passou a olhar à sua volta relativizando minudências que tanto perturbam e enraivecem os outros, teve uma fase da vida em que lera muito, os seus pais chegaram a preocupar-se, achavam-na distante da realidade, era precisamente o oposto, tacteava-lhe a essência, entre milhares e milhares de frases, houve uma que lhe norteou os passos de cada dia (“Um sorriso tudo grita e tudo cala”), nunca se lhe viu uma lágrima, eram dolorosamente interiores, também houve quem afirmasse que as secara muito cedo, aquando de uma partida… Mas são suposições, há dezoito meses, pouco depois da partida do marido, numa terça-feira de manhã, a campainha, era uma senhora, com uma pasta, uma fala delicodoce que logo a desagradou, embora o sorriso lhe fosse indestrutível (“Um sorriso tudo grita e tudo cala”), a chamar a atenção para os seus quase oitenta anos, o facto de viver só, os benefícios da sua entrada num lar, o acompanhamento diário da sua saúde, a interacção com os outros idosos, a segurança, não permitiu que a pasta e a fala delicodoce transpusessem a porta, percebeu logo ao que vinha, apenas lhe perguntou: “Cometi algum crime para ser institucionalizada?” A verborreia delicodoce esmoreceu um pouco, deixou-lhe um cartão, com o contacto, para qualquer eventualidade, logo depositado no lixo doméstico, há muito ela compreendera a essência  das coisas, desejo e acontecer raramente coincidem neste caminhar, por conseguinte, ela simplesmente resolveu sorrir e confiar em Deus ou no destino, como lhe queiram chamar, foi até à janela da cozinha, dava para o estacionamento da praceta e apanhava uma das extremidades do campo de jogos, ali estavam um pai com o filho pequenito num triciclo, nunca os vira por ali, deixou-se estar mais um pouco a observá-los, inspirou longamente, pois, tudo no mundo parecia estar no seu lugar.

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Desolação IV

 


Ele já se inclinava para o regresso, no entanto, ela ainda com o areal, onde uma mãe, num zelo só possível à maternidade, procura o último grão de areia dos pés do filho, este segura um avião de plástico nas mãos, em si talvez o desejo da distância, num último esforço, entrelaça-lhe, com suavidade, os dedos na mão, e tenta erguê-la, para a afastar de um quadro de dor, ela cede, talvez pelo vazio de si, nem meia-dúzia de passos depois, percebe o olhar, uma vez mais, no areal, há vazios, neste caminhar, que levaremos connosco, as minudências acabam por despertar o verbo, concordaram que gente e barulho a mais, quando ontem tudo parecia no seu lugar, é um facto: ontem tudo parecia no seu lugar; ambos sabiam a razão, tantos anos depois, do seu regresso ao local das primeiras férias juntos, esta povoação caiada de branco debruçada sobre o mar, embora jamais o verbalizassem, em verdade, procuravam compreender se, entre eles, tudo estaria no seu lugar ou se nem vislumbres de quem foram, quantas vezes um homem e uma mulher se perderam e insistem no equívoco de caminhar juntos, quando olham em direcções distintas passaram a ser apenas uma memória, ela jamais esqueceu, há quem insista em dizer perdoar, o facto “de lhe relembrar os imperativos da existência do hoje: o curso, a urgência de um trabalho, o choque ou desgosto das famílias por tanta imprudência, a escassez de recursos para chegaram dois, mas regressaram três;” o passado sempre ao alcance de um simples olhar, de uma palavra, de um som, da incessante procura por um grão de areia nos pés de uma criança, quem os visse de uma certa distância compreendia-lhes derrota nos passos e no rosto, como se sobre os seus ombros tantos e tantos sonhos sepultados, o olhar dela em si mesma, como se estivesse irremediavelmente presa num lugar ou situação lá bem atrás, curiosamente nunca respondia à primeira, tinham sempre de lhe repetir a questão, os mais próximos, sobretudo ele, temiam problemas auditivos, nada disso, era apenas o tempo de se regressar, ficara irremediavelmente presa num lugar ou situação lá bem atrás, ele, pelo contrário, olhava constantemente em volta, como se na procura de ponto de fuga que lhe permitisse a redenção de si mesmo, já pouco tinham para se dizer, nem espelhos, em volta, encontravam de quem haviam sido, à medida que subiam a rua principal, que atravessa a povoação caiada de branco, com, pelo menos, o triplo dos carros, os passeios sem vagas para mais transeuntes, tão longe das primeiras férias juntos, como se todos, em Agosto, para ali se precipitassem, umas inquietantes e recém-chegadas sombras observam quem passa, ora estão pelos passeios, ora em lojecas com conteúdos manifestamente descontextualizados com uma povoação caiada de branco debruçada sobre o mar, aquando das primeiras férias juntos, há tantos anos, nem vislumbres de tais sombras, pois, nada é por acaso, o possível verde de Sul cedia ingloriamente ao cinzentismo dos trolhas, não há quase lugar, no hoje, onde essas patas imundas não cheguem, essas inquietantes sombras, tragicamente disseminadas por todo o canto, apenas um reflexo de cinquenta-anos de trolhas ao leme, ele limitou-se a verter todo o desprezo pelo olhar, as inquietantes sombras nem um passo para fora das trevas, afinal, estavam onde pertenciam, quando chegaram perto da pastelaria, ele nem perguntou se…, para lá se encaminhou, embora ela o secundasse ligeira, por fim, um espelho luminoso do ontem, ao menos por ali não havia vozes com um timbre solene e, ao mesmo tempo, deveras irritante, tudo como dantes, excepto um ou outro apontamento da denominada modernice, abrira precisamente no ano das suas primeiras férias juntos, muito irreverente para esta povoação caiada de branco debruçada sobre o mar, a dona era, na altura, uma trintona, anafada, um quê de histeria,  com uma dose exagerada de prepotência, de quem sabe ter escolhido o lugar e o negócio certos, acrescente-se o tempo, factor determinante nesta equação, nada havia por ali que se assemelhasse, um conceito simultaneamente de pastelaria, padaria e mercearia, a inegável qualidade e fausta quantidade de produtos, nos meses de Verão, alimentavam as filas à porta, sobretudo de manhã, o entra e sai de veraneantes, sobretudo da capital, era constante, no fundo ali estava um espelho da sua proveniência, demasiados dias, numa povoação caiada de branco debruçada sobre o mar, sem um vislumbre do seu quotidiano, tornar-se-ia fastidioso, como a sujeita, uma trintona, anafada, um quê de histeria, com uma dose exagerada de prepotência, soube trazer-lhes um espelho do dia-a-dia à lassidão das férias, ficaram logo agradados pela disposição se manter - um conceito simultaneamente de pastelaria, padaria e mercearia –, não havia, por ali, vestígios de sombras inquietantes, pelo menos uma trintona, anafada, um quê de histeria, com uma dose exagerada de prepotência, sabia afastar as trevas da sua porta, o ar adocicado também subsistia, de repente, o tempo parecia ter-se suspendido e eles regressavam às primeiras férias juntos, a quem haviam sido, aproximaram-se do balcão, entreolharam-se, ambos sabiam o que pedir: “Um vislumbre de quem foram no hoje…”

Pedro de Sá

(17/12/24)


 

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Rua das Alfazemas

 


Quem morava na rua das Alfazemas? Todo o mundo ali morava, afinal, numa rua cabem os sonhos vivos e enterrados de cada um de nós, logo após o almoço, ela vinha para a janela, ali ficava até à hora da janta, sabia das rotinas de cada um, mas era um saber-lhe amargo, não era isso que a levava até à janela, mas o que já não encontrava por casa, afinal, numa rua cabem os sonhos vivos e enterrados de cada um de nós… Há quanto tempo ela morava na rua das Alfazemas? Foi depois de, sim, foi depois disso, ainda foram remetentes de outras moradas, talvez duas ou três, até que assentaram na rua das Alfazemas, ele partiu há três anos, mais concretamente trinta e nove meses, foi de madrugada, parece-lhe que foi ontem, de repente, algo a chamá-la para o lado de cá das coisas, o telefone parecia contorcer-se para que ela o viesse silenciar, por ter de se socorrer de um candeeiro para lhe alumiar os passos, lá fora, o mundo ainda uma harmonia de silêncios e sombras, o frio do momento fê-la cobrir-se, de imediato, com o robe e valer-se também de um xaile, compreendeu que a vida ainda não recomeçara, pelo contrário, despedia-se, antes de silenciar aquele obsceno grito na noite do mundo, sabia o que ia ouvir, sentiu-o no peito antes do silêncio pelo auscultador levantado, o coração partira de si para um qualquer lado, o pensar uma tela branca, por fim, uma voz mecânica, que mal conseguia disfarçar a total ausência de um calor sentido, informou-a de que o marido se finara, há uns minutos, em paz, o que lhe ficou, desse momento, foi a imagem de um imenso deserto diante de si, nada mais, afastou o auscultador, do outro lado, a voz mecânica persistia no seu desfiar de trivialidades, acalme-se, por favor, queira sentar-se… Quer que lhe mande algum apoio? Está-me a ouvir? Tem a certeza de que está bem? Ouça, infelizmente esta era uma situação expectável… Pense que, ao menos, o seu marido não sofreu… Partiu em paz… Um dia, irá juntar-se-lhe, acredite, lembre-se… Desligou, que sabia aquela voz ou qualquer outra de situações expectáveis e de partidas em paz, não, não se sentou, foi para a janela olhar o céu, há quanto não assistia ao nascimento da vida, tudo se inicia com um tímido alaranjar a Este, uns veios de luz que trazem substância às coisas, e o movimento na terra acompanha os passos da luz, como se tudo fosse um coro imemorial a saudar a vida, pensamentos assim passaram-lhe pelo espírito, saudar a vida, tão longe estava de tais desígnios, um imenso deserto diante de si, nada mais, ainda foram remetentes de outras moradas, talvez duas ou três, até que assentaram na rua das Alfazemas, e dali ele partiu para uma morada incógnita, a última, a por todos conhecida e por todos sempre ignorada, é acometida de um cansaço súbito, cede às horas de sono por cumprir, ao desgosto, à frieza doravante dos lençóis, à solidão impronunciada de cada sombra lá de casa, e um imenso deserto diante de si, agora, lá fora, a luz era demasiada para as cores do seu pensar, não sabe se a luz ou o movimento próprio da vida, talvez fosse o todo, correu a cortina e deitou-se à espera de não sabe o quê, mais de quarenta anos com ele a seu lado, tinha a qualidade rara de ser um edificador de sonhos, em verdade, nunca os alcançava, contudo, assim que se diluíam, logo partia em busca de um outro, assim foi quando de regresso à metrópole, após mais de uma década de África, onde se conheceram, encantou-se com aquela aparente segurança, que mal disfarçava a criança que, até hoje, se recusa a caminhar às escuras pela casa, mais duas solidões originaram um casamento, não há assim tantos anos tudo desaguava em casamento, no que respeita a partilhar vidas, depois começaram as dúvidas, as inevitáveis questões atiradas de fora, a cada instante, como pedras em feridas ainda por cicatrizar, Então, para quando um herdeiro? Não me digam que não está no vosso horizonte? Preferem menino ou menina? Não acham que já está na altura? Estão a deixar para muito tarde… Não vos parece? Assim era, mal saíam de casa, pedras vindas de todo e qualquer lado, algumas bem traiçoeiras, como doíam, ela pensou ser a fonte do problema, não se esquivou, pelo contrário, médico, exames, do seu lado, estava tudo bem, era uma fonte segura, afinal, ele é que… Nunca lhe mostrou qualquer exame, escondeu-os no fundo de uma gaveta sua, de roupa interior, até que, certo dia, resolveu mesmo deitá-los no lixo mais próximo, entre eles nunca houve acusações nem censuras por isto, ela, até hoje, nunca soube se ele tinha consciência da sua infertilidade, talvez sim, mas é apenas uma suposição, é curioso, mais de quarenta anos a partilhar tectos e lençóis e fica tanta coisa silenciada entre um homem e uma mulher, no fundo, ambos perceberam que já bastavam as inclementes pedradas exteriores, como doíam, não era preciso, entre eles, elevar os ecos da dor, quando aterraram na metrópole, obrigados por uma súbita incerteza que se instalou em cada canto da sua, e de todos os outros, existência, nada traziam, bolsos famintos, olhares caídos, o amanhã apenas um medo, olhavam os outros regressados nas mesmas circunstâncias, e perceberam que, dos anos de África, ao menos, traziam, pelas mãos, o fruto de algo chamado amor, eles nem esse desígnio atingiram, mesmo assim, lá seguiram em frente, como não podia deixar de ser, mais de quarenta anos a partilhar tectos e lençóis e fica tanta coisa silenciada entre um homem e uma mulher, à noite, antes do sono assumir o leme do pensar, ela incessantemente revisitava o passado, e assim percebia a outra que se negara ser, ou que a vida lhe subtraíra, com indisfarçável esforço, resolve levantar-se, ele partiu há três anos, mais concretamente trinta e nove meses, foi de madrugada, acredita que ele a espera em algum lugar, longe das inclementes pedradas exteriores, como doíam, abre a cortina, já é noite, a rua num silêncio iluminado pela luz derramada dos candeeiros, os lençóis na cama persistem no seu frio há mais de três anos, se, ao menos, pelas mãos, o fruto de algo chamado amor, quando regressaram de África, se não houvesse tanto silêncio sob um tecto, entre um homem e uma mulher, talvez a vida uma outra, e possivelmente uma existência fosse resgatada de um estigma de nome orfandade, lá fora nem um carro se ouve, se alguém ali passasse, àquela hora, diria que tudo está em paz na rua das Alfazemas.


 

terça-feira, 10 de dezembro de 2024


... reencontrar a praia onde as águas verdes do rio abraçam o mar, sobretudo da parte dele, sempre encontrou ali algo de hipnotizante, o único local com o dom de permanentemente se metamorfosear, ou pela luz, ou pelas areias emergentes aquando da vazante, o seu espírito aquietava-se, como se exorcizasse de si todas as noites somadas neste caminhar...

in Desolação III

domingo, 8 de dezembro de 2024

Desolação III

 



Assim que abriram a porta do quarto, de novo a sensação de imutabilidade, nada se havia alterado, nem o cheiro, um quê a flores-silvestres e a madeira, para trás ficou o varandim, as águas verdes do rio que, pouco mais à frente, abraçam o mar, o ar povoado pelo cântico estival das cigarras, como se um grito da vida, efémero, trágico, mas que o mundo ouve, os olhos dela em tristeza pelo fim anunciado da doçura daquelas águas, entraram dois naquele quarto, saíram três, nada disseram, tudo se gritava entre eles, de novo, o equívoco de ali terem regressado, quantas vezes ele desejou que o pensar se apiedasse de si, jamais, incessante, feroz, nem por um fragmento de tempo o largava, neste ponto, sabia-a mais quieta, tranquila, como se em cadência com o vagar do dia, assim que a porta do quarto se fechou, ele abriu a janela e ficou a contemplar o possível de montes e águas-esverdeadas, ela a desfazer a mala, queria povoar o quarto da sua identidade, ele procurava-se, ela derramava-se, nesse momento estavam de costas, o silêncio do pensar – entraram dois naquele quarto, saíram três –, as minudências acabam por despertar o verbo, saíram do quarto já a tarde em despedidas, desceram a rua principal até à praia, a ligeireza do ar permitiu-lhes sorrir, lá estava a pastelaria do ontem, um espelho onde ambos gostaram de se rever, ao menos por ali não havia vozes com um timbre solene e, ao mesmo tempo, deveras irritante, tudo como dantes, excepto um ou outro apontamento da denominada modernice, no regresso lá entrariam, havia neles uma latente urgência de reencontrar a praia onde as águas verdes do rio abraçam o mar, sobretudo da parte dele, sempre encontrou ali algo de hipnotizante, o único local com o dom de permanentemente se metamorfosear, ou pela luz, ou pelas areias emergentes aquando da vazante, o seu espírito aquietava-se, como se exorcizasse de si todas as noites somadas neste caminhar, ela chegou aqui depois, pela mão dele, também se sentiu esperada neste lugar onde as águas verdes do rio abraçam o mar, o olhar dele acabava por se perder inevitavelmente pelas areias ora douradas, ora alaranjadas, da margem Sul, ali só um cafezito de madeira como testemunha de haver homem no mundo, daí o seu fascínio, acabava  por ali repousar o olhar e assim  iluminar sonho, ela sempre lhe respeitou os silêncios, talvez intuísse haver nele divisões  onde nem à porta queria passar, não se trata do incomunicável de nós, mas onde sepultamos os nossos sonhos, quantos sonhos suporta um homem? Quantos sonhos suporta uma mulher? Talvez a mulher, pelo seu carácter prático, seja mais lesta a sepultá-los, ou talvez seja o inverso, pois, não sei, ele, como o miúdo que foi, e ainda é, segundo o próprio, olhava para Sul, como desde sempre o fez, a intuição ditava-lhe que talvez na distância o pensar se apiedasse de si, ou por ali, quem sabe, houvesse sonhos à sua espera (quantos sonhos suporta um homem?), ela sabiamente apoia o rosto no seu ombro, num gesto pede-lhe para regressar da lonjura do Sul e, ao mesmo tempo, diz-lhe que alguém o espera, nunca foi insensível a tais singelezas, no rosto desenha-se-lhe um sorriso de gratidão, pensou no que leva um homem, com um tesouro ao lado, a olhar a distância, coisa mais estranha: a beleza das coisas morar num indefinível ponto só tangido pelo pensar; o grito de uma gaivota anunciou o aproximar da noite, ela ainda com o rosto no seu ombro, olhou-a e percebeu-lhe tristeza, ela, neste momento, acompanhava uma mãe, com infinita paciência, a limpar a areia, lá em baixo, na praia, dos pés do filho, teria uns três anos, preferiu manter o silêncio, os argumentos para justificar “entraram dois naquele quarto, saíram três” há muito se lhe esgotaram, bem como a paciência, facto, não foi a sua fonte a secar, mas a dela, antes de entrar naquela sala, as ocas palavras de incentivo (Incentivo para quê? Para o indesejado? Há fases, numa vida, para o amor? Para acolher uma vida nos braços?): “Vai correr tudo bem! Não te preocupes! Tudo voltará a ser como dantes…”: nada foi como dantes, uma fonte ali secou, se o olhar dele, há pouco, pelas areias ora douradas, ora alaranjadas, da margem Sul, o dela simplesmente uns metros abaixo, nos degraus, de madeira, para o areal, onde uma mãe, num zelo só possível à maternidade, procura o último grão de areia dos pés do filho, este segura um avião de plástico nas mãos, em si talvez o desejo da distância, ela reflectiu no que leva um garoto, com um tesouro ao lado, a olhar a distância, ele tentou juntar palavras que os levassem a regressar, não as encontrou, ainda menos que fizessem sentido, nada tinha substância perante a cena a que ela desoladamente assistia, por fim, ela levantou o rosto do ombro dele, com o olhar soletrou-lhe “Entrámos dois naquele quarto, saímos três.”

Não te esqueças de trazer um sonho contigo

 


Assim que ali entrei, depois de folhear três ou quatro revistas, que, de certa forma, reclamavam um merecido descanso, de tão manuseadas serem, além do evidente atestado anacrónico, bastava atentar nas temáticas, não era necessário o preciosismo de verificar devidamente o cabeçalho, espalhadas numa mesa, bem à nossa frente, depois de também percorrer, por mais que um par de vezes, os outros para ali sentados, suficientes para não haver cadeiras vagas, mais elas, é verdade, sinal dos tempos, o feminino aprendeu a determinação, também me olharam, os outros para ali sentados, mais que uma vez, percebi isso, o mais velho devia andar próximo dos quarenta, talvez já tivesse dobrado esse cabo, vinha dentro de um fato habituado a estes cenários, estava sentado muito direito, ao colo uma mala, de couro, coçada em várias partes, também velha viajante destas paisagens, percebia-se-lhe a nervoseira pelo permanente oscilar de joelhos, embora se revestisse de uma expressão imperturbável, como se soubesse ao que vinha, pois, a aparência, a geada da madrugada que se dilui ao irromper da luz primeira de um recomeço, no anelar esquerdo o flagrante vazio, num gritado branco, de um anel retirado, talvez na velocidade da raiva, talvez na lentidão dolorosa do arrependimento, talvez na lucidez fria de quem olha o fim chegado, quem sabe se daquele gritado branco não ficaram despojos, que oscilam, aos fins-de-semana, entre lares, desde que olham o mundo, abaixo da altura de um banco, compreendem na carne do sentir o ser-se indesejado, seres apátridas submergidos na veloz e tumultuosa corrente do hoje, sem direito a réplica, ainda olham o mundo, abaixo da altura de um banco, e já sabem que, entre um homem e uma mulher, para sempre é uma expressão votada a um tempo algures adormecido nos idos da História, foi isso, abaixo da altura de um banco, o que o mundo lhes ensinou, mesmo em frente, uma mulher mais jovem que eu, não devia ter deixado os bancos da faculdade há muito, não sei porquê, mas foi o que me pareceu, havia nela um traço de arrogância de quem se distanciou em demasia da realidade, mas que se vai gradualmente esbatendo à medida que compreendemos a distância entre uma ideia, traduzida por caracteres, gravados na impessoalidade branca de uma página, e a agonia de uma viagem, em hora de ponta, num qualquer transporte público, devia morar em casa dos pais, é possível, denotava-se-lhe ainda aquela segurança de quem desconhece o flagelo da calculadora para se manter à tona até ao final de cada mês, usava as roupas do hoje recicladas, como sempre acontece, ao ontem, não se conseguia perceber se bonita ou feia, tal a dose de efeitos especiais providenciados pela maquilhagem, ao contrário do quase quarentão, permanecia impassível no lugar, de certa forma, parecia mais curiosa do que outra coisa, como se uma exploradora num território inóspito, de facto, desconhecia o flagelo da calculadora para se manter à tona até ao final de cada mês, a dada altura, começou o entra e sai de um gabinete, cada um demorar-se-ia cerca de uma dezena de minutos, percebi que, para o efeito, usaram a ordem de chegada, pareceu-me justo,  por fim, ouvi o meu nome, numa voz sumida, do interior do gabinete, levantei-me e avancei, entrei ao mesmo tempo que fechava a porta atrás de mim, deparei-me com um sujeito um pouco mais novo que eu, nem se dignou a levantar para me cumprimentar, estava dentro de um fato impecavelmente engomado, a gravata condizente, para já, no conjunto, só os modos a destoar, e o cabelo, que insistia em reflectir a luz do tecto por um desencontro de há muito com o champô, os gestos transpareciam a indolência  de quem cumpre um papel a contragosto, e a expressão não desmentia o enfado, pelo contrário, só o acentuava, era outro que desconhecia o flagelo da calculadora para se manter à tona até ao final de cada mês, estendeu-me a mão sem me olhar o rosto, optei pela educação, encontrei uma mão pequena e oleosa, um cumprimento débil, talvez um eco do seu carácter, ouvi, uma vez, que o carácter de um homem se vê pelo vigor do aperto de mão, não sei se é conversa resultante da soma de testosterona e álcool, mas reconheço-lhe alguma credibilidade, e aquele afigurou-se-me um exemplo flagrante, “Ora vem-se candidatar ao…”, optei por encurtar o diálogo e ir ao cerne da coisa, “Sim, e aqui tem o meu currículo”, enquanto lhe estendia uma pasta, com umas quantas folhas impressas, por ali andavam muitos sonhos seguidos de outras tantas frias manhãs, vencia um monte, naquele cume pensei repousar, mas, ali  chegado, só encontrei a sombra de um outro ainda mais alto, logo iniciava nova escalada, com a esperança de alcançar nesse outro cume o merecido repouso sob a luz revigorizante de um sol apenas meu, o sujeito virou as folhas, não sem antes levar o indicador à boca, nem conseguia disfarçar o desinteresse, o facto de nem estar a ler, finalmente, devolveu-me a pasta,Pois, de facto, tem um currículo muito interessante… Como deve calcular, para já, não podemos garantir nada. A ver vamos… É uma questão, se for seleccionado, de aguardar o nosso contacto. Tenha um bom dia!” E lá me estendeu, pela segunda vez, aquela sua mão untuosa, seguiu-se o cumprimento débil, talvez um eco do seu carácter, levantei-me, dirigi-me para a porta, antes de sair, observei o sujeito, nem que fosse uma vez, teria de o ver de cima, claro que nem se apercebeu destas minhas conjecturas, perdido que estava no seu próprio enfado de despachar papéis, sem se aperceber que despachava vidas, que nessas folhas que teatralizava ver, havia muitos sonhos seguidos de outras tantas frias manhãs, muitos montes vencidos, e quando se julgava poder repousar, ainda a arfar pelo cume conquistado, só a sombra de um outro ainda mais alto, logo se iniciava nova escalada, com a esperança de alcançar nesse outro cume o merecido repouso sob a luz revigorizante de um sol apenas seu, mas era o suíno que se sentava atrás de uma secretária, era o suíno que decidia quem teria a possibilidade de lutar, na manhã seguinte, pelo pão de cada dia, nestes momentos, sinto-me um viajante que caminha por cenários longínquos, já não reconheço o meu mundo, um suíno atrás de uma secretária, que leva o indicador à boca para virar folhas, onde estão impressos muitos sonhos seguidos de outras tantas frias manhãs, saio para o que resta da tarde, no ponto onde estava no passeio, percebo a sombra derramada pelo edifício em frente, terei de iniciar uma nova escalada…

domingo, 1 de dezembro de 2024

Desolação II


 

Nos arredores da povoação caiada de branco debruçada sobre o mar, o possível verde de Sul cedia ingloriamente ao cinzentismo dos trolhas, pois, não há quase lugar, no hoje, onde essas patas imundas não cheguem, entre eles, no interior do veículo, apenas silêncio, tentavam reconhecer um vislumbre do lugar das primeiras férias juntos, como estava difícil, o possível verde de Sul cedia ingloriamente ao cinzentismo dos trolhas, a dificuldade maior residia, sem dúvida,  precisamente no interior do veículo, entre eles, aí, sim, nem vislumbres do que eram aquando das primeiras férias juntos, não por acaso ela procurava suspender o tempo, para reencontrar algo que talvez por ali estivesse entre lençóis, areia e mar, ele talvez nem se recorde de, numa manhã de Domingo, lhe tocar à porta coberto com um frondoso ramo-de-flores, à entrada da povoação caiada de branco debruçada sobre o mar, do lado direito, havia uma tascazita, sombria, com similitudes a filme do faroeste, ele prontamente olhou para lá, nada, portas fechadas, o casebre anunciava, num anglicismo, ser hospedaria para quem viesse do exterior, um reflexo do hoje neste território que, há cinquenta anos, faleceu como nação independente: uma hospedaria para quem chega do exterior! A rua principal, que atravessa a povoação caiada de branco, com, pelo menos, o triplo dos carros, os passeios sem vagas para mais transeuntes, tão longe das primeiras férias juntos, como se todos, em Agosto, para ali se precipitassem, ao silêncio, entre eles, no interior da viatura, somava-se um desolado espanto, como se uma sabida vã esperança de se terem enganado no destino, andavam uns metros e logo tinham de se imobilizar, ora pela imperativa passadeira, ora por um carro, na sofrível e mal executada marcha-atrás a sair de um lugar, nova passadeira, outro a sair, de marcha-atrás, num constante pára e arranca cumpriram, durante mais de quinze minutos, os cerca de trezentos metros até ao alojamento das primeiras férias juntos, foi ele a reservar, tal como no passado, um conhecimento de família, aqueles lugares, não obstante a sua centralidade e opulência, exigem um contacto prévio, até um vasto estacionamento interior possui, assim que saíram do carro, não evitaram sorrir, a leveza do ar mantinha-se como da primeira vez, afinal, algo subsistia, dirigiram-se para a entrada, a austeridade das instalações em flagrante contraste com a luminosidade e leveza do exterior, quase se entreolharam para “Afinal, era isto? Na altura, pareceu-nos tanto, e era só isto…”; mas foram surpreendidos por uma figura do passado, uma mulher tão ou mais austera que as instalações, no fundo, parecia uma extensão animada daquelas paredes e ambiente, a voz com um timbre solene e, ao mesmo tempo, deveras irritante, intuíram que ela os reconhecera, apesar de jamais o verbalizar, procedeu à entrega da chave do quarto e a relembrar as regras e horas das refeições, ali, de facto, o tempo suspendera-se, ele chegou a se questionar “Alguma vez entrei ou daqui saí?”; tudo imutável: regras, mobiliário, quadros, as personagens, o timbre, até as flores dos canteiros, no exterior, talvez fossem as mesmas, no entanto, eles destoavam, porque se sabiam outros, de imediato, naquele entreolhar incumprido, compreenderam o equívoco de ali terem regressado, mas era tarde, jamais ousariam confrontar a voz com um timbre solene e, ao mesmo tempo, deveras irritante, e ele já com a chave-do-quarto na mão, quase ousou virar-se para a figura do passado, uma mulher tão ou mais austera que as instalações, no fundo, parecia uma extensão animada daquelas paredes e ambiente, “Não nos víamos há tanto, não é verdade?! A senhora está na mesma…”, no entanto, afigurou-se-lhe ridículo, estéril, descontextualizado, olhava à sua volta e não encontrava quaisquer pontes de diálogo, até as múltiplas figuras religiosas expostas pareciam aquém da compreensão, apenas espelhavam silêncio e sofrimento, o quarto ficava num anexo sobre o rio, tudo permanecia imutável, como se aguardasse pacientemente pelo seu regresso, o olhar dele procurou a racha num dos degraus, ali estava, imperturbável, orgulhosa, como se proclamasse a sua vitória face ao tempo, antes de entrar, ficaram, por uns instantes, do varandim a olhar as águas verdes do rio que, pouco mais à frente, abraçam o mar, o ar povoado pelo cântico estival das cigarras, como se um grito da vida, efémero, trágico, mas o mundo ouve, os olhos dela em tristeza pelo fim anunciado da doçura daquelas águas, entraram dois naquele quarto, saíram três, ela numa total solidão, nada lhe disse, ele tão aquém da compreensão da tristeza pelo fim anunciado da doçura daquelas águas…

domingo, 24 de novembro de 2024

Desolação I

 


Há muito ela falava, com insistência, em regressar ao local das primeiras férias juntos, de início, ele relativizou, talvez mais um capricho, a nostalgia batera-lhe à porta, reacender o que inexoravelmente o tempo diluiu, a insistência, no entanto, mantinha-se, “Fomos tão felizes lá! Era tudo mais simples… Lembra-te: durante esses dias, nem precisávamos do carro para nada! Era só descer a rua e estávamos na praia… Já reparaste: não enfrentávamos o caos do aeroporto, horas e horas de espera, passaportes, documentos e mais documentos, malas, avião, basta uma hora de carro e ali estamos!,” uns instantes de silêncio e recomeçava, “Fomos tão felizes lá… Era tudo mais simples…,” ainda apelou ao que se economizava, ele que nunca lidou muito bem com a claustrofobia de estar, horas e horas, dentro de um cilindro, que mais parece imóvel nas alturas, lentamente a, por fim, ouvi-la, de outra forma, a dar-lhe a devida razão, tão raro nestes últimos tempos, “Fomos tão felizes lá… Era tudo mais simples…,” acordaram, no próximo Verão, rumar ao local das primeiras férias juntos, ele encarou como uma pausa, para recuperar o fôlego, do inferno do aeroporto, ainda muitos destinos para cumprir, não atingira que o Destino sempre nos aguarda, embora já lhe tenha murmurado “O aeroporto tira-nos anos de vida…,” lá rumaram, numa manhã de Agosto, ao local das primeiras férias juntos, uma povoação caiada de branco debruçada sobre o mar, ela, em verdade, procurava suspender o tempo, para reencontrar algo que talvez por ali estivesse entre lençóis, areia e mar, da parte dele já se percebeu, uma pausa, para recuperar o fôlego, do inferno do aeroporto, ainda muitos destinos para cumprir, quando se tomam as coisas como certas, a atenção esmorece, este é um erro capital, quantas vezes não vem a vida, com o seu impetuoso caudal, relembrar este facto? Durante a viagem falaram de trivialidades, há muito só falavam de trivialidades, havia uma dor, antiga, que sublimadamente nem ousavam verbalizar, de certa forma, ambos compreendiam o magnetismo que os unia, como se uma inevitabilidade, talvez fosse ele, em vários momentos, quem mais remou contra esse facto, embora dele tivesse consciência, daí a sua luta, ela acabou por se acomodar, apesar de não descurar o seu brilho, não lhe passavam despercebidos certos olhares quando descia a rua ou noutras circunstâncias, ambos nutriam um carinho muito particular por esta povoação caiada de branco debruçada sobre o mar, não foi só o primeiro lugar das férias juntos, a intuição dela sempre lhe ditou: chegaram dois, mas regressaram três, esta convicção enraizara-se-lhe no ser; chegou a partilhar-lhe, na altura, melodiosamente ao ouvido, ele apenas sorrisos, para, pouco tempo depois, relembrar-lhe os imperativos da existência do hoje: o curso, a urgência de um trabalho, o choque ou desgosto das famílias por tanta imprudência, a escassez de recursos para chegaram dois, mas regressaram três,” não, não podia ser, algo teria de se corrigir, de início, ela prontamente cortou qualquer possibilidade de diálogo, até o telefone lhe deixou de atender, ameaçou “sim, chegaram dois, mas regressaram sempre, pelo menos, dois,” neste ponto, ele já se via fora da equação, porém, ambos compreendiam o magnetismo que os unia, como se uma inevitabilidade, num Domingo, de manhã, escudado por um frondoso ramo-de-flores, bateu-lhe à porta, foi o pai dela a abrir, perante tal cenário, quase não resistia à gargalhada, muito a custo lá se conteve e disse-lhe para entrar, a filha, ao vê-lo, em pé, na sala, escudado por um frondoso ramo-de-flores, quase tinha a mesma reacção que o pai, não fosse a memória de “chegaram dois, mas regressaram três,” o seu rosto coloriu-se de frieza, ele estendeu-lhe o frondoso ramo-de-flores enquanto dos seus lábios “Aceita, por favor, como um pedido de desculpas…”, hesitantemente a sua mão ergueu-se para aceitar, estavam os dois a morrer de amor por dentro, havia somente que liquidar o orgulho, neste particular, ele foi mais eficaz, deu um passo em frente e abraçou-a por inteiro, desconheço por quanto tempo assim ficaram, no meio da sala, a relembrar o magnetismo que os unia, se fosse possível, nesta manhã de Agosto, durante a viagem para o lugar das primeiras férias juntos, alguém lhes relembrar esta cena, afigurar-se-lhes-ia de uma longínqua existência, não por acaso ela procurava suspender o tempo, para reencontrar algo que talvez por ali estivesse entre lençóis, areia e mar, ele talvez nem se recorde de, numa manhã de Domingo, lhe tocar à porta coberto com um frondoso ramo.de-flores, que pena, talvez se esta memória o acompanhasse não perdesse anos e anos de vida, no aeroporto, a fugir de si mesmo, mais uma curva e já avistam o contraste da povoação caiada de branco e do azul, que tanto demora o olhar, daquele mar, ela, num gesto hesitante, como há tantos anos quando recebeu um frondoso ramo-de-flores, pousou a mão sobre a dele, sentiu felicidade, retribuiu com um sorriso no olhar…

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Ontem cruzei-me com um estranho na rua…

 


Não sei se cheguei a dormir, andei por ali, entre o cá e o lá, entre o estar ao leme do meu pensar e o abandonar-me aos caprichos do sono, que mais não faz do que levantar a carpete da nossa consciência, ora me virava para um lado, ora para outro, ele, a meu lado, nem se mexia, apenas a respiração, num compasso pesado, indiciava os caminhos, pelo menos, do sono, não sei se abrira as portas do sonho, nunca mo dissera, olhei as luzes vermelhas em cima da minha mesa-de-cabeceira, para ver se podia prolongar a esperança de me abandonar, nem que fosse por mais um pouco, aos caprichos do lado de lá, percebi que me restavam vinte e oito minutos até que as luzes começassem a tremeluzir e o aparelho a gritar numa urgência de ave caída, resolvi levantar-me, não, não valia a pena insistir, ora me virava para um lado, ora para outro, e o sono uma repetida miragem de Verão, saí do quarto, também não valia a pena acordá-lo, afinal, sai de casa quatro horas depois, vesti-me na sala como sempre fazia desde que tenho este trabalho, uma chávena de café com leite que me soube a pressa, há tanto que a comida não tinha outro sabor, uma carcaça com manteiga, no meio de tudo, casaco, cachecol, abri e fechei a porta num devagar contrastante com os meus intentos, mas a hora era de silêncios e repousos, só eu e o mundo num face a face, como se não houvesse outras almas neste intermédio de qualquer coisa a que alguns chamam vida, de novo a carcaça, ou o que dela restava, desci os dois andares, saí para a ainda fria noite do mundo, do outro lado da rua, a minha vizinha e colega já me aguardava, acenou-me, hoje foi ela a esperar-me, regra geral, esse papel pertence-me, atravessei a rua ao seu encontro, contudo, decidi não sublinhar este facto, iniciava logo o relato das peripécias da véspera, coitada, juntou-se há três anos a um tipo que passa mais de metade do ano desempregado, até ouvi dizer que se ajeita bem com as madeiras, porém, diz-se, lá no bairro, em conversas de escada e de portas entreabertas, que deve o valor de uma casa a gente muito pouco recomendável, por causa de umas apostas clandestinas, desde então, álcool e mais álcool, volta e meia, os gritos dela, do outro lado da rua, chegam-me a casa, cansei-me de lhe dizer que há coisas degradantes, mas logo se socorre da memória, e fala-me, por vezes demasiado explicitamente, das tardes de suor e gemidos dos fins-de-semana, e como ele, nesses instantes, se revela um verdadeiro cavalheiro, “Sabes, nem parece o mesmo… Não tem nada a ver! Acreditas que até já me levou, por mais que uma vez, o pequeno-almoço à cama? Pois é… É só para tu veres! Algum dia deixava um homem destes? Nunca!”, neste ponto, nem lhe relembro aquele dente que quase perdia, ainda abanou por dois dias, além de, durante pelo menos cerca de uma semana, o zumbir do ouvido esquerdo, um efeito da descontrolada mão dele, às vezes, confesso, acho que ela até gosta, os ciúmes, pois, um pretexto tão dúbio, que tudo explica menos uma breve ausência de amor, uma daquelas brevidades que chega a durar, em alguns casos, toda uma vida, preferia, claro, a minha situação, a memória de um calor ido, volta e meia, uns reacendimentos nos fins-de semana, afinal, que resta aos pobres fazer nos tempos livres? Se ao menos a nossa situação fosse diferente, talvez um filho, mas ele não estabiliza, eu ainda menos, o tempo só o vemos quando somamos anos e paramos, de repente, para os contar, e passamos grande parte a queixarmo-nos da vida, um belo dia, talvez por cansaço, ela vira-nos costas e percebemos que já é tarde, àquela hora, em que a noite começa a fazer a mala, só nós as duas no autocarro, o trajecto até ao cais dura cerca de quinze minutos, apanhamos sempre o primeiro barco, vai para dez meses, não me posso queixar, ao menos pude escolher, quando os meus pais “Tens de estudar, minha filha! Não queres ser alguém na vida? Aproveita esta oportunidade! Olha que um dia vais querer e aí perceberás que já é tarde”, neste último ponto, enganaram-se, desde há dez meses que é demasiado cedo, a cidade, diante dos meus olhos, dorme como se fosse um espaço longe do pecado, da dor, onde todos tivessem o seu lugar, as ruas iluminadas reflectem a madrugada, volta e meia, umas luzes velozes que logo se diluem, parecia-nos uma declaração de vida, pela ponte, à nossa esquerda, também poucos carros, de certa forma, parecia que tudo estava suspenso, como se aguardasse uma qualquer coisa, talvez fosse isso que melhor traduzisse o ser da madrugada, esqueci-me de dizer que a minha colega ainda não se calara, por esta altura dissertava sobre uma qualquer doença da mãe que vivia lá para os lados de Viseu, acho que foi isso que ouvi, somente anuía, assim ela não pedia que lhe respondesse, o que era óptimo para mim, podia dar galope ao meu pensar, e tentar compreender como, desde há dez meses, apanho o primeiro barco rumo a Lisboa, como vivo com um homem, num minúsculo apartamento da margem Sul, que nem vestígios de ternura me suscita, dizem que, no fim, pelo menos fica a ternura pelo que foi, eu já nem isso, não que ele alguma vez tenha sido grosseiro ou incorrecto, nada disso, apenas as coisas são o que são, e eu olho de frente a indiferença que lhe sinto, aproximo-me nesta madrugada, vai para dez meses, de um trabalho que igualmente desprezo, limpeza de sucursais bancárias antes da abertura, há tanto que de fragrâncias só conheço a esterilidade aromática de detergentes, conversas só de escada e de portas entreabertas sobre tardes de suor e gemidos de fins-de-semana, ainda por cima dos outros, não sei que escolha, pensamento, ou frase, me fez estar hoje aqui, e vai para dez meses, de primeiro barco da madrugada, a sentir o frio que se levanta das águas pela face, não, não sei, à minha volta, tudo parece suspenso, como se aguardasse uma qualquer coisa, talvez seja  isso que melhor traduz o que vai dentro do meu peito.

domingo, 17 de novembro de 2024

Deus também erra?

 


Ensinaram-me, em criança, que Deus é perfeito, o mal é resultado do livre-arbítrio do homem, sempre tive estas duas premissas bem presentes, até que, há uns dias, alguém, durante o relato de um episódio biográfico, a dada altura afirma: “Deus também erra”; a frase ecoou por cada canto do meu ser (“Deus também erra”), em verdade, tirando a perspectiva teológica, eu não tinha como contrariar esta evidência (“Deus também erra”), quem, nos seus passos pelo aqui, não queria, num dado momento, tudo fosse uma outra coisa? E o amanhecer confrontado (ou será resignado?) com o mesmo tão indesejado do ontem, um velho aforismo dita que “Não há ateus na hora da morte,” concordo plenamente, a morte acompanha-me a cada passo, porque, há muito, não a temo, em verdade, só a receei durante a infância, no entanto, houve em mim uma mudança, desconheço a sua génese, facto é que desde a adolescência me sinto pronto para a acolher, num certo momento até já lhe senti o calor, a morte não é fria, como se pensa, mas quente e tranquilizadora, a primeira sensação que tive, ao ouvir esta frase (Deus também erra”), foi de distância, senti que talvez Deus se tenha cansado do homem e partido para bem longe, minha avó sempre me pareceu ser detentora de um canal de comunicação privilegiado com Deus, as pedras, entre seus dedos, ritmadas por palavras suplicantes e de glória, ora de manhã, ora de tarde, sempre uns momentos consagrados para pôr a conversa em dia com o Criador, e não passava um dia sem entrar no lugar de encontro entre nós, que para aqui andamos, e Ele, a seu lado, era impossível esquecê-Lo, meu pai também era crente, nunca se deitava sem antes dirigir umas palavras de louvor e gratidão ao Altíssimo, embora nunca lhe visse pedras, entre seus dedos, ritmadas por palavras suplicantes e de glória, ora de manhã, ora de tarde, só uma vez por semana entrava no lugar de encontro entre nós, que para aqui andamos, e Ele, de uma visita diária a uma semanal, pois, apesar da fé paterna, em relação a minha avó, a presença de Deus, lá por casa, diluiu-se um pouco, feitas as contas, que dizer da minha…? As coisas, pelos vistos, estão num gritante decréscimo, ou terão somente mudado de coloração? Outro velho adágio dita “Cada um tem o Deus que merece,” pois, não sei, como todas as relações, há os seus altos e baixos, proximidades e enormíssimas distâncias, a verdade é que Nele acredito, independentemente da forma, o conteúdo só pode ser fatalmente o Bem, continuo sem responder à questão (“Deus também erra?”), apesar de me ter sido apresentada sob a forma de uma afirmação, a realidade é que não tenho resposta, só quando a morte se sentir pronta para me acolher tê-la-ei, antes é, de todo, impossível não dar uma resposta parcial mediante a nossa circunstância, dei voltas e voltas à cabeça e, de facto, o “sim” é a resposta mais plausível, quantos sonhos sepultados não jazem à vista do nosso horizonte? Quantas vezes o acontecer não foge à cor do nosso sentir? Quanta Dor não grita na noite das nossas almas? Quase subscrevo que “Deus também erra,” mas aqui levanta-se-me a honestidade, o facto de só deter uma visão parcial dos factos, vemos o mundo da varanda de nós, é esta a nossa realidade, o vislumbre do Todo é apenas uma quimera, por conseguinte, não, não posso subscrever tal afirmação, também não a posso refutar, isto que fique bem sublinhado, só quando, por fim, o meu cansado coração adormecer, conseguirei responder, se minha avó sempre me pareceu ser detentora de um canal de comunicação privilegiado com Deus, as pedras, entre seus dedos, ritmadas por palavras suplicantes e de glória, ora de manhã, ora de tarde, se meu pai nunca se deitava sem antes dirigir umas palavras de louvor e gratidão ao Altíssimo, eu para aqui ando, como todas as relações tem os seus altos e baixos, proximidades e enormíssimas distâncias, a verdade é que Nele acredito, talvez, de um certo lugar, estas palavras se assemelhem às pedras que passavam entre os dedos de minha avó.

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Quando ainda fôlego para uma derradeira súplica…

 


Ao passar, diante daquele edifício branco, com uma cruz ao alto, a imagem da mãe, nos últimos tempos reduzida a um ténue articulado de ossos, envolta num manto negro, a ali entrar, todas as tardes, numa discrição condizente com as vestes, de imediato o respeito conduzia-lhe os joelhos ao chão, assim ficava, a passar aquelas pedras por entre os dedos, enquanto os lábios pediam que as alturas se lembrassem, nem que fosse um pouco, de nós que para aqui andamos, todas as tardes de uma vida, neste ponto, afastou-se da mãe, tal como em muitos outros, nunca foi apologista de discretos mantos negros como vestes, nem de joelhos no chão, mas, hoje em particular, gostaria que alguém se lembrasse, nem que fosse um pouco, de nós que para aqui andamos, parou, percebeu a porta aberta, o mundo mergulhado na tarde da vida, cada um cumpria com o seu destino de horas e afazeres, deixou-se ali estar por uns instantes, contou os degraus até à porta aberta, daquele edifício branco, com uma cruz ao alto, totalizavam sete, hesitou, até que, sem o perceber, já vencia o primeiro degrau, nem uma dezena de segundos depois, transpôs a entrada e logo aquele silêncio a envolveu, como se sempre ali estivesse à espera do seu regresso, apreciou aquela semi-obscuridade, instava a confidências e reflexões, apenas dois ou três vultos àquela hora, a quem o respeito conduzira os joelhos ao chão, pediam para que alguém se lembrasse, nem que fosse um pouco, de nós que para aqui andamos, inspirou profundamente e sentou-se, o seu olhar maravilhado pelas chamas ondulantes das velas espalhadas pelo templo, havia algo de irreal nessa luz que se curvava com uma qualquer brisa para logo se reerguer, numa verticalidade fantasiosa, rumo às alturas, passaram-se décadas desde que ali estivera pela última vez, a vida, pois, afastou-se dessas questões de pedir ajuda a um amigo que habita algures entre o pensar e sentir de cada um, além disso, tem muitos nomes, consoante o idioma em que o convocamos, uns desistem, julgam que nunca responde, outros afirmam que sempre responde, mas numa outra linguagem, porém, algo sobreviveu às décadas desde que ali estivera pela última vez: o silêncio. Dali, o mundo parecia um lugar longe, tudo se tornava relativo face àquela promessa de alturas, embora os joelhos dela, sem saber como, sintam, neste momento, a frieza áspera das lajes, junta as mãos e ali repousa, agora, a testa, enquanto procura as palavras certas para recuperar um diálogo interrompido há décadas, a vida, pois, caminha, agora, pelas paisagens de si, tantas sombras, talvez por cansadas noites sem luar, aqui e ali um vestígio de luz sempre filtrado por algo, mas também espaço para vislumbres de Sul, subidas demasiado íngremes, precipícios abruptos, vales de pouca extensão, lugares recônditos que convidam a confidências e virar costas ao tempo, se ao menos aquelas pedras para passar por entre os dedos, enquanto os lábios pediam que as alturas se lembrassem, nem que fosse um pouco, de nós que para aqui andamos, mas nada, de repente, senta-se diante de um dia da meninice ida, vê-se a perguntar, à sua avó, por aquele amigo que habita algures entre o pensar e sentir de cada um, a resposta da velha não tardava Ele, antes mesmo de lhe pedires, já sabe o que queres, tão estranho, pensou na altura, no entanto, hoje compreendeu perfeitamente as palavras da velha, de repente, diante dela, o marido a abrir aquela gaveta, um copo com água na mão, a pegar sofregamente numa lamela, a retirar um comprimido para logo o engolir, sem espaço para mais, reflectir, ponderar, sopesar, tudo tão longe, ele queria aguentar mais um dia, e se chegar ao amanhã, tudo se repetirá, abrir aquela gaveta, um copo com água na mão, a pegar sofregamente numa lamela, a retirar um comprimido para logo o engolir, tudo isso desde que não se levanta pelo pão de cada dia, nem dignidade para lhe dizerem que foi despedido, rotularam-no de dispensado, feriu-o ainda mais o embrulho da expressão, logo ele tão directo, frontal, desconhecedor de eufemismos, a meio dos cinquenta, por outras palavras, vê a meta mas ainda está na corrida, agora nem uma coisa nem outra, como se o desclassificassem tão próximo do fim, já lá vão uns meses, tem falado uns disparates, nestes últimos tempos, que a têm assustado, a filha também não anda melhor, o casamento, nem a isso chegou, no fundo, juntaram-se, as coisas, de facto, relativizaram-se e foram destituídas do seu profundo e legítimo carácter, mas a filha a visitá-los à noite com uma frequência crescente, a contar-lhes que não gosta de passar os serões sozinha, pelo meio, diz que o companheiro acumula horários para trazer mais, no final do mês, para casa, embora ela não dispense, na hora do regresso, um saco de provisões, três litros de leite, cinco carcaças, uma manteiga, um cachito de bananas, nunca fizeram mal a ninguém, não é verdade? Se o marido estivesse acordado a essa hora, isso só seria possível se não abrisse aquela gaveta, um copo com água na mão, não pegasse sofregamente numa lamela, para retirar um comprimido e o engolir, percebia a crescente apreensão dela pela filha, cada vez mais, no pântano do hoje, se comunica o essencial calando-o, ela, antes de fechar a porta, um derradeiro olhar para a filha, com o saco de provisões na mão, que lhe diz, sem palavras, Percebes, não é? Estou prestes a ser trocada… Ele não me procura há quase dois meses. Não consigo um emprego condizente com aquele canudo que de nada me serve… E, lembras-te mãe, tantas e tantas noites em branco para o conseguir… Agora, se o evoco, olham-me como um empecilho… Se digo que nada tenho, olham-me como um verme… Nada se disse entre elas, e o marido, aquém de tudo isto, já dorme embalado pelo fruto da lamela, a olhar uma meta tão próxima, mas sempre tão longínqua… Quais são as palavras certas para recuperar um diálogo interrompido há décadas? Como pedir que as alturas se lembrem, nem que seja um pouco, de nós que para aqui andamos? Se lhe perguntassem, ela não saberia responder, levantou-se, saiu, antes, olhou maravilhada, uma vez mais, as chamas ondulantes das velas espalhadas pelo templo, ou talvez soubesse a resposta, afinal, fora-lhe revelada na meninice, pela avó, aquele amigo, que habita algures entre o pensar e sentir de cada um, antes mesmo de lhe pedires, já sabe o que queres.

terça-feira, 12 de novembro de 2024


 

... assim vão os dois, amparados, rumo à única janela iluminada da noite, para trás fica o molhe, onde uma gaivota assiste,  de um certo banco, à serenidade de um fim.

in Serenidade


 

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Serenidade


 

Caminhavam desencontrados, embora na mesma direcção, o extremo do molhe, onde um banco para assistir ao nascer da noite, ele numa passada vagarosa, hesitante, como se aguardasse ela, primeiro, no banco, a segurança de se saber esperado, uma desavença (o quê?)  fê-los caminhar desencontrados, tantas são as fontes da discórdia, ela parou a meio, virada para Oeste, olhos nas águas, a brisa entardecida ondulou-lhe uma melena, ele fingiu não reparar, não asfixiava palavras, mas sentires, o orgulho a nortear-lhe os passos, daí o caminhar desencontrado, os olhos dela nas águas, nenhum pousava o orgulho, há poucas coisas piores do que morrer de amor por dentro em troca da esterilidade do orgulho exterior, calar o sentir para suster a altivez, num repente, após levantar os olhos da água, ela regressa, passa por ele como se lhe invisível fosse, compreende-se-lhe um vislumbre de a seguir, talvez o orgulho, num derradeiro instante, o imobilizasse, em desespero olha o extremo do molhe, onde um banco para assistir ao nascer da noite, por fim, ela já uma ausência, agora é o olhar dele a encontrar as águas, ambos, como é evidente, sabem o que os fez caminhar desencontrados, não alcança, desta vez, o banco onde se assiste ao nascer da noite, pouco depois, acabou por também se ir embora, o olhar caído a espelhar que nada saiu como esperava, não há assim tanta coisa que faça um casal caminhar desencontrado, uma gaivota levantou vôo ao perceber a chegada estridente de uma criança a pedalar o triciclo, a mãe não se distanciava um passo, quase corria para o acompanhar, imobilizaram-se a meio do molhe, a criança deixou o triciclo e correu para abraçar a mãe, teria dois ou três anos, a mulher pegou-lhe ao colo e apontou extremo do molhe, onde um banco para assistir ao nascer da noite, a criança passou a mãozita pela face, onde um traço salgado corria, da mãe, a mulher ainda deu um passo em frente, hesitou, deu outro, em direcção ao extremo do molhe, onde um banco para assistir ao nascer da noite, lentamente coloca o filho no triciclo e inicia o regresso, a criança, agora, pedala ao ritmo da passada materna, nem vestígios da chegada estridente que fez uma gaivota levantar o seu vôo sobre as águas, talvez retorne assim que o molhe em silêncio, entra um casal de velhos, ela ligeiramente à frente, parece guiar-lhe os passos, ele segue-a numa obediência quase infantil, numa infinita confiança de jamais correr riscos, passos curtos embora seguros, não, nunca chegam ao extremo do molhe, onde um banco para assistir ao nascer da noite, a velhota continua ligeiramente à frente, fala-lhe ininterruptamente, o olhar ausente dele parece não ouvi-la, talvez seja só uma impressão, interrompem a arrastada marcha também a meio, é possível que ela levantasse a memória de quando, naquele exacto ponto, ele, a seus pés, lhe erguia o símbolo de amor e  compromisso, ela, por todos os meios, a contorcer-se para disfarçar as faces ruborizadas, até que, se inclinou para lhe murmurar “Sim, aceito,” passaram pouco mais de cinco décadas, todos os finais de tarde, desde que o tempo permita, descem a rua, ela ligeiramente à frente, parece guiar-lhe os passos, as suas palavras a iluminar este e outros momentos da sua história, a única que lhes importa, o resto apenas uma ilusão de entretenimentos, ele, no entanto, devorado pelo esquecimento, um vazio caminhante, uma ruína, onde o interior somente  vegetação rala desprovida de qualquer beleza, o olhar de ambos nas águas, o espanto de mais de cinco décadas passadas, as águas parecem sempre as de ontem, a expressão dele, nesses instantes, suaviza-se, parece rejuvenescer, olha-a com um brilho que, pois, é isso, fá-la ruborizar, não fosse o facto de, no seu anelar-esquerdo, figurar o símbolo de amor e  compromisso, não haveria duvidas de que, uma vez mais, ele se ajoelharia para o erguer à sua altura, uma repentina brisa relembra a chegada da noite, ela aproveita para lhe endireitar o cachecol, iniciam os passos do lar, mais uma vez, a velha ligeiramente à frente, antes dos seus olhares se despedirem das águas, as falanges dele, com uma enérgica ternura, relembram as dela que as águas parecem sempre as de ontem, recua um passo, assim vão os dois, amparados, rumo à única janela iluminada da noite, para trás fica o molhe, onde uma gaivota assiste,  de um certo banco, à serenidade de um fim.