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quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Os mortos não sonham


Sempre que aquela música na rádio, ele assumia um ar circunspecto, como se não a ouvisse, ou lhe fosse indiferente, porém, era precisamente esse véu de gravidade a denunciar-lhe os passos do sentir, isto sucedia com mais frequência no carro (afinal, em que outro lugar, do hoje, se ouve rádio?), nesses momentos, olhava a minha vida de uma qualquer janela, como se de uma ilusão se tratasse, tão estranho, ele ali, a meu lado, a conduzir a caminho de casa, e a canção, interminável, a povoar o silêncio que, de súbito, se abriu entre nós, enquanto os melosos acordes ecoavam, eu a olhar calçadas e transeuntes, como se tal me interessasse, logo eu que tão pouco reparava nos outros, e a canção, interminável, a certa altura, já nem posição tinha, de tanto me obrigar a olhar a janela do meu lado, nunca soube se ele se apercebia do meu esforço (pela janela), do meu súbito desconforto, do silêncio que a música nos legou, eu persistia a olhar, através do vidro, gentes, passeios, montras esconsas, creio, em verdade, que, assim que os acordes se repercutiam no interior silenciado do carro, ele desacelerava, como se quisesse eternizar o momento (...)

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