Livros do Escritor
segunda-feira, 21 de julho de 2025
sábado, 19 de julho de 2025
quarta-feira, 16 de julho de 2025
Se do outro lado não for melhor…
Uma das
coisas que sempre a fascinou nos velhos foi aquela estranha familiaridade com a
morte, como se já lhe conhecessem o rosto, daí a cuidada atenção com que lhes
seguia cada palavra, como se por aí vestígios da verdade última das coisas, uma
frase recorrente emitida pelos anciãos, Se do outro lado não for melhor,
então, não vale a pena…, leva-a a uma profunda anuência interior, de facto,
quanta verdade ali contida, Se do outro lado não for melhor, então, não vale
a pena…, de certa forma, compreendia a indulgência que, volta e meia, os
olhares de há muito derramam sobre os seus gestos, desajeitados e apressados a
maior parte das vezes, a familiaridade com a morte, como se já lhe conhecessem
o rosto, quando soube onde ia trabalhar, e em que funções, andou uns dias
zangada com o mundo, pois, sempre aquela aparente liberdade em que nos movemos
no hoje, a funcionária Ou aceita, ou perde o subsídio de desemprego, ela
a ouvir, incrédula, ainda a balbuciar argumentos Mas, eu não tenho quaisquer
classificações para trabalhar com idosos… Repare, eu sou engenheira
informática… Diga-me, o que farei com idosos um dia inteiro? Não faz qualquer
sentido! Deve haver pessoas, bem mais classificadas do que eu, para estas
funções. Não concorda? A funcionária, sempre inexpressiva, Desculpe, mas
não me compete tecer quaisquer considerações sobre as vossas colocações. Tenho,
como vê, a obrigação de a alertar para as suas obrigações e direitos. Neste
caso, é muito simples, ou a senhora aceita a colocação ou, repito, perde o
direito ao subsídio de desemprego… O que prefere? De facto, há perguntas
que encerram, em si mesmas, a resposta, esta foi um caso bem ilustrativo, ela
nem se dignou a responder, limitou-se a virar costas, com os impressos na mão,
para os preencher, a vida, quando acelera, ultrapassa-nos sempre, chamamos a
isso mudança, é uma forma de nos iludirmos, como se repetíssemos, para
nós mesmos, Ainda tens o controle das coisas, ou então, Espera um
pouco, que já o recuperas, quando, em verdade, é tudo tão simples, a vida acelerou
e nós ficámos atordoados e perdidos algures na berma de uma qualquer estrada,
foi o que lhe aconteceu, saída da faculdade e já lhe choviam convites de
múltiplas empresas, optou pela mais sonante na altura, e nem era a que lhe
oferecia melhores condições, mas o nome, e ela que sempre ligou a essas coisas,
os pais orgulhosos, vinte e poucos anos, formada, empregada, estranharam o
desinteresse por namoros, mas talvez fosse melhor assim, pois, a estabilidade,
sempre a estabilidade, afinal, o pão na mesa sempre em primeiro lugar, quantas
vezes esta frase lá por casa, o resto viria por acréscimo, mas de quanto pão
precisa o homem? Ela deixou-se conduzir por melhores condições, nomes sonantes,
e, pois, o pão na mesa sempre em primeiro lugar, agora, já com trinta e
tal anos, o nome sonante fechou aqui as portas, é natural, noutros lados fazem
o mesmo trabalho quase de graça, para quê uma despesa tão monstruosa em
ordenados? É curioso, quando foram os alvores desta possibilidade, frases
trocadas em surdina nos corredores, em horas de almoço fugidias, por vezes,
mensagens, noite adentro, que denotavam uma angústia crescente, neste ponto,
ela manteve-se impassível, respeitadora de horários e de expediente, ouvia e
procurava abafar aquilo que denominou de boatos, fruto de invejas e
mesquinhice, os pais procuravam refrear-lhe as convicções, afinal, sabiam que,
por vezes, a vida, quando acelera, ultrapassa-nos sempre, até que, certa tarde,
já princípio de noite, ela a regressar, uma carta, releu-a, pelo menos, cinco
vezes, em verdade, houve frases que releu mais de uma dezena de vezes, A
partir de amanhã, não vale a pena apresentar-se ao serviço. Pelas razões
supracitadas, estamos a proceder a uma deslocalização geral da nossa empresa,
com excepção dos meios humanos… Face ao exposto, agradecemos a sua colaboração,
que cessa a partir de hoje… Os seus honorários, até ao presente momento, serão
creditados para o NIB que nos facultou… Na esperança de uma grata compreensão,
subscreve-se atenciosamente, o director geral, não sabe o que mais lhe
doeu, se a situação em si, o vazio do amanhã (olhou a parede, à sua frente,
durante o que se lhe afigurou necessário, pensou, não sabe porquê, que teria de
desligar, doravante, o despertador no telemóvel), se o face a face com o desemprego,
a ausência de um telefonema, de uma voz, que a reconfortasse, em vez da frieza
de umas linhas impressas que aportaram nas caixas-de-correio de todos os
funcionários, soube, depois, que nem todos foram presenteados com aquele fel,
alguns, filhos da súplica, conseguiram acompanhar uma deslocalização, mesmo
que, para o efeito, tivessem que dizer adeus a si mesmos, havia conversas
interrompidas pelos pais quando se apercebiam da sua aproximação, há muito que
o pai sonhava ter um escritório, agora com a reforma iminente, queria
dedicar-se a algo, e como a filha formada, empregada numa empresa de nome,
certamente, dentro de pouco, a querer o seu espaço, marido, filhos, assim, o
quarto dela livre, porém, tudo num retrocesso, de facto, a vida, quando acelera,
ultrapassa-nos sempre, do amanhã, dos computadores, para o ontem, dos velhos,
tão estranho, trinta e tal anos tinha ela, e como os compreendia, não raras
vezes, sentiu-se até mais velha que alguns deles, sobretudo daqueles que não
desaprenderam o sorriso, ela já não conseguia, havia uma velha que passava
manhãs e tardes à janela, alheada da sua circunstância, a palma da mão
encostada ao vidro, percebia-se que olhava um indeterminado de si, quando se
abeirava, a velha persistia com a janela, a palma da mão não deixava o vidro,
como se procurasse perceber o porquê de a vida a ter ultrapassado…
sábado, 12 de julho de 2025
terça-feira, 8 de julho de 2025
Harmonia
Pensei
que fosse mais fácil, enquanto a coisa era só uma ideia, mas depois, bom,
quando a materializei, não tinha nada a ver, foi tudo tão penoso, quantas
vezes, num desespero calado, me perguntei meu
Deus, meu Deus, o que fiz da minha vida? Para ser mais claro, e até para
organizar ideias, vou recuar ao que me parece ser o início de tudo isto, foi
numa manhã de fim-de-semana, há pouco mais de três anos, percebia-se a chuva
ininterrupta lá fora, apesar do quarto ainda em escuridão, despertei com o
abraço dela, o seu corpo a colar-se ao meu, percebi-lhe as intenções, há muito
que nós longe destas paragens, daí aquela urgência súbita que lhe acelerou o
sentir, contudo, eu aquém de urgências e desejos, há muito que me redimia da
obrigação conjugal, não se pode dizer que por culpa minha, não, pelo contrário,
ela, nos últimos tempos, num descuido contínuo, as formas a alargarem-se, à
noite, com a televisão, bolachas e chocolates em tropel, nunca fui de dietas,
mas pareceu-me excessiva aquela pilha calórica antes do sono, procurei, claro,
chamá-la à razão, logo a resposta Se não
gostas, azar o teu! Para amargura, chega-me a vida! E, por favor, não me
chateies… Ainda insisti, com o valor da saúde, tudo em vão, nunca percebi,
ao certo, em que momento ela se deixou ir pela vida, nem o porquê, tínhamos
tudo o que é considerado suficiente, casa, trabalho, filhos, no entanto, aquele
alargar das formas, sob a batuta de um tropel de bolachas e chocolates, pois,
levou-me o olhar na companhia de brisas estivais, certa tarde, no escritório,
percebi tristeza no rosto daquela colega – sabia que se divorciara há pouco –,
falávamos disto e daquilo, trivialidades, tudo assim começa, instantes depois,
uma chávena de café à frente, ela falava de si ou do trabalho, não me recordo,
o que perdura em mim são as cores desse entardecer, não sei porquê, soou-me a
tristeza, como se eu deixasse, para sempre, um mundo construído por uma outra
qualquer coisa, lembro-me, também, da desagradável frieza do café, deixei-o
arrefecer, distraído que estava com as tristes cores desse entardecer, a
chávena dela, não deixei de notar, já vazia, conseguira abstrair-se das tristes
cores do entardecer, saímos do café já a cidade caminhava de regresso ao lar,
ela falou-me que tinha de ir buscar a filha, eu nada disse, não sei porquê, mas
gostei que ela só uma chávena de café, longe, muito longe, de um tropel de
bolachas e chocolates, seguiram-se mais cafés, deu-me o seu porquê do divórcio,
é só o que conseguimos sempre dar (o nosso porquê), por pudor, neste ponto, abstive-me,
talvez não lhe conseguisse falar de um tropel de bolachas e chocolates, certa
noite, a televisão com a estupidez de um qualquer concurso, ela no sofá a
aumentar a dose de bolachas e chocolates, era tal o mastigar que nem ouve
aquele característico som a anunciar, no aparelho do hoje, que alguém acaba de
se lembrar de nós, a colega recém-divorciada Não podes vir até aqui? Hoje sinto-me tão só… Pousei o aparelho no
braço do sofá, olhei à minha volta, a sala estava numa semi-penumbra, além da
televisão, a única luz provinha de um candeeiro numa mesa de canto, o nosso
mais velho estudava numa universidade do interior, as médias, pois, o mais
novo, que cumpria o último ano de liceu, no treino de qualquer coisa, acho que
já experimentara todos os desportos, só acontece com quem não serve para
nenhum, mas a mãe abençoava-lhe a inconstância, levantei-me, ela nem se
apercebera, fui ao quarto, vesti-me, disse-lhe que me ligaram do escritório,
antes de fechar a porta, olhei, uma vez mais, aquela semi-penumbra, reparei
que, nesses instantes, nem uma bolacha ou chocolate abandonara o prato, a voz
dela numa surpresa preocupada Toma
cuidado. Olha que já é tarde. E não te demores, assim que fechei, numa
lentidão abnegada, a porta atrás de mim, sabia que deixava, para sempre, um
mundo construído por uma outra qualquer coisa, regressei na manhã seguinte,
tornei-me num construtor de desculpas, não sei se ela acreditava, neste ponto, as
formas deixaram de alargar, mas era tarde, no meu sentir restou apenas a
amizade, acho que é não assim tão mau, pelo que se vê por aí, porém, ela longe
deste desígnio, então, numa manhã de fim-de-semana, há pouco mais de três anos,
percebia-se a chuva ininterrupta lá fora, apesar do quarto ainda em escuridão,
despertei com o abraço dela, o seu corpo a colar-se ao meu, percebi-lhe as
intenções, há muito que nós longe destas paragens, daí aquela urgência súbita
que lhe acelerou o sentir, contudo, eu aquém de urgências e desejos, há muito
que me redimia da obrigação conjugal, não se pode dizer que por culpa minha,
não, a esquivar-me, a relembrar uma qualquer obrigação por cumprir, a
levantar-me de imediato, com esforço, claro, porque também erguia comigo a
culpa por um mundo deixado, reparei que a mão dela pousara no vazio de mim e
por ali se demorou, mas tudo isto foi numa manhã de fim-de-semana, há pouco
mais de três anos… Certa tarde, o telefone da colega recém-divorciada, que
também se conseguia abstrair das tristes cores do entardecer, uma urgência com
a filha, doença, acho que uma gripe forte, o reencontro mais demorado com o
ex-marido, também fora avisado, ela só me apareceu na manhã seguinte, nem uma
palavra para justificar, pouco nos falámos no decorrer desse dia, à noite, nem
uma desculpa procurou erigir, de certa forma, acho que foi o que me magoou
mais, sentou-se e num tom pausado disse-me, após uma breve introdução, Sempre o amei. Pensei que terminara, mas,
sabes, bastou… E tudo, de novo. Não espero que me perdoes. Mas não posso fugir
a esta realidade. Nunca gostei de gritos, de cenas melodramáticas, pela
segunda vez na vida, fechei, numa lentidão abnegada, uma porta atrás de mim,
vi-me na contingência da campainha da casa dos meus pais, pelo menos, não houve
censura, apenas apreensão, por aqui tenho andado, há duas noites, a minha mãe Não queres um prato de bolachinhas e
chocolates? E eu pensei meu Deus, meu
Deus, o que fiz da minha vida?
quinta-feira, 3 de julho de 2025
quarta-feira, 2 de julho de 2025
O trolha, a anã e a parola
Há muitos
anos, um trolha assumiu os destinos de uma oficina, nada mais natural, num contexto de tubos-de-escape, bielas, óleos e pneus,
foi uma sucessão natural, no entanto, este trolha detinha as suas
particularidades, quase como um distintivo, andava sempre com um colete que trazia à memória os retornados do
Ultramar, confesso que lhe transmitia uma aura muito para além da sua
oficina (um contexto de tubos-de-escape, bielas, óleos e pneus…), parecia um cidadão do mundo, e, em verdade,
comportava-se como tal, tinha aquela irritante característica de gostar de se
ouvir, mau augúrio, se temos duas orelhas e uma boca é precisamente para
ouvirmos o dobro do que falamos, o trolha desconhecia esta máxima, talvez, no
seu íntimo, achasse que tinha algo para dizer ao mundo, com um mínimo de atenção,
bastava meio minuto para se compreender o logro, o trolha caminhava de paradoxo
em paradoxo, e nem deste facto se apercebia, lá pelo bairro da oficina todos
sabiam da sua proveniência, hoje podia ser o dono, mas era fatalmente um
trolha, apenas e só, até passou a deslocar-se de mota, para dar um cunho de
irreverência à sua imagem, quando se dobra os sessenta, há quem, de forma
sublimada, procure dizer um rotundo NÃO a este facto, era
vê-lo, em cima da mota, com o seu colete que trazia à
memória os retornados do Ultramar, parecia um cidadão do mundo, quando
surgia algum problema, os óculos sempre ao lado das
narinas, levantava os olhitos e lá falava naquele
lento compasso de quem aprecia cada sílaba emitida, incautos ou néscios achavam-no um
douto (como não?), os óculos sempre ao lado das narinas, com o seu colete que
trazia à memória os retornados do Ultramar, parecia um cidadão do mundo, e o
timbre, meu Deus, o timbre, quase um sussurro, como se por ali fossem
desveladas Verdades há muito ansiadas do lado de cá das coisas, em
certa ocasião, por causa de uns papéis, para encobrir
negociatas de óleo e bielas em terceira ou quarta mão, o trolha teve de
recrutar duas artistas na obscura arte da vigarice, para o efeito escolheu uma
anã, sobrevivente nata, perita em camuflar as suas múltiplas torpezas, dada a
combustões de documentos, e uma parola, totalmente acéfala, cujo excesso de
maquilhagem apenas tinha como intuito obnubilar a sua fealdade, dizia-se que a
parola de mapas percebia um pouco, era imperativo unirem esforços para
definitivamente cumprirem com os desígnios do trolha: encobrir
negociatas de óleo e bielas em terceira ou quarta mão: assegurar a
sobrevivência da oficina; há uns anos que o horizonte da reforma era familiar
ao trolha, praticamente do quotidiano, lá providenciou um sucessor, como
primeira característica teria de considerá-lo um douto (como não?), os óculos
sempre ao lado das narinas, com o seu colete que trazia à memória os retornados
do Ultramar, parecia um cidadão do mundo, e o timbre, meu Deus, o timbre, quase
um sussurro, como se por ali fossem desveladas Verdades há muito ansiadas do
lado de cá das coisas, logo que a anã e a parola souberam da iminente possibilidade
da reforma do trolha, trataram de assegurar a sua continuidade na oficina, a
ideia partiu, claro, da anã, a parola, além de não consolidar duas ideias
seguidas, não tinha tempo para tal, a maquilhagem roubava-lhe grande parte do
dia, ao longe parecia uma árvore-de-Natal ambulante, tal o festim de cores,
azeite em estado-puríssimo, assim sendo, a anã, com as favolas num estado de
ameaça permanente de saltar da boca, , infelizmente para o mundo, aquela é a sua
cloaca, sobretudo as da arcada-de-cima, conferia-lhe um ar de toupeira
desabrida, sugeriu comprar uma placa, com o nome do trolha, para colocar numa
parede da oficina, talvez assim, com a merecida dose de emoção, ele interviesse
para que elas continuassem, por ali, o seu louvável trabalho de encobrir
negociatas de óleo e bielas em terceira ou quarta mão, a placa foi comprada,
não sei mais detalhes, em que parede a colocaram, se ao lado de um póster com uma
rapariga em greve de vestuário, se houve beberete, se alguém se lembrou de pôr
música, a do genérico de “Bob, o construtor,” no meu entendimento, seria
perfeita, se houve alguma brasileira, de fartas ancas, por ali a dar à bunda, é
possível que sim, já com a devida dose de caipirinha ingerida, de uma coisa
tenho a certeza: houve discurso! Imagino a anã, de boca aberta, as favolas
jamais permitiam o seu fecho, infelizmente para o
mundo, aquela é a sua cloaca, e a parola, também de boca aberta, neste
caso, apenas um reflexo do vazio daquela caixa-craniana, e o trolha naquele lento compasso de quem
aprecia cada sílaba emitida, incautos ou néscios achavam-no um douto (como não?),
os óculos sempre ao lado das narinas, com o seu colete que trazia à memória os
retornados do Ultramar, parecia um cidadão do mundo, e o timbre, meu Deus, o
timbre, quase um sussurro, como se por ali fossem desveladas Verdades há muito ansiadas
do lado de cá das coisas.











