Livros do Escritor

Livros do Escritor

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Se do outro lado não for melhor…

 


Uma das coisas que sempre a fascinou nos velhos foi aquela estranha familiaridade com a morte, como se já lhe conhecessem o rosto, daí a cuidada atenção com que lhes seguia cada palavra, como se por aí vestígios da verdade última das coisas, uma frase recorrente emitida pelos anciãos, Se do outro lado não for melhor, então, não vale a pena…, leva-a a uma profunda anuência interior, de facto, quanta verdade ali contida, Se do outro lado não for melhor, então, não vale a pena…, de certa forma, compreendia a indulgência que, volta e meia, os olhares de há muito derramam sobre os seus gestos, desajeitados e apressados a maior parte das vezes, a familiaridade com a morte, como se já lhe conhecessem o rosto, quando soube onde ia trabalhar, e em que funções, andou uns dias zangada com o mundo, pois, sempre aquela aparente liberdade em que nos movemos no hoje, a funcionária Ou aceita, ou perde o subsídio de desemprego, ela a ouvir, incrédula, ainda a balbuciar argumentos Mas, eu não tenho quaisquer classificações para trabalhar com idosos… Repare, eu sou engenheira informática… Diga-me, o que farei com idosos um dia inteiro? Não faz qualquer sentido! Deve haver pessoas, bem mais classificadas do que eu, para estas funções. Não concorda? A funcionária, sempre inexpressiva, Desculpe, mas não me compete tecer quaisquer considerações sobre as vossas colocações. Tenho, como vê, a obrigação de a alertar para as suas obrigações e direitos. Neste caso, é muito simples, ou a senhora aceita a colocação ou, repito, perde o direito ao subsídio de desemprego… O que prefere? De facto, há perguntas que encerram, em si mesmas, a resposta, esta foi um caso bem ilustrativo, ela nem se dignou a responder, limitou-se a virar costas, com os impressos na mão, para os preencher, a vida, quando acelera, ultrapassa-nos sempre, chamamos a isso mudança, é uma forma de nos iludirmos, como se repetíssemos, para nós mesmos, Ainda tens o controle das coisas, ou então, Espera um pouco, que já o recuperas, quando, em verdade, é tudo tão simples, a vida acelerou e nós ficámos atordoados e perdidos algures na berma de uma qualquer estrada, foi o que lhe aconteceu, saída da faculdade e já lhe choviam convites de múltiplas empresas, optou pela mais sonante na altura, e nem era a que lhe oferecia melhores condições, mas o nome, e ela que sempre ligou a essas coisas, os pais orgulhosos, vinte e poucos anos, formada, empregada, estranharam o desinteresse por namoros, mas talvez fosse melhor assim, pois, a estabilidade, sempre a estabilidade, afinal, o pão na mesa sempre em primeiro lugar, quantas vezes esta frase lá por casa, o resto viria por acréscimo, mas de quanto pão precisa o homem? Ela deixou-se conduzir por melhores condições, nomes sonantes, e, pois, o pão na mesa sempre em primeiro lugar, agora, já com trinta e tal anos, o nome sonante fechou aqui as portas, é natural, noutros lados fazem o mesmo trabalho quase de graça, para quê uma despesa tão monstruosa em ordenados? É curioso, quando foram os alvores desta possibilidade, frases trocadas em surdina nos corredores, em horas de almoço fugidias, por vezes, mensagens, noite adentro, que denotavam uma angústia crescente, neste ponto, ela manteve-se impassível, respeitadora de horários e de expediente, ouvia e procurava abafar aquilo que denominou de boatos, fruto de invejas e mesquinhice, os pais procuravam refrear-lhe as convicções, afinal, sabiam que, por vezes, a vida, quando acelera, ultrapassa-nos sempre, até que, certa tarde, já princípio de noite, ela a regressar, uma carta, releu-a, pelo menos, cinco vezes, em verdade, houve frases que releu mais de uma dezena de vezes, A partir de amanhã, não vale a pena apresentar-se ao serviço. Pelas razões supracitadas, estamos a proceder a uma deslocalização geral da nossa empresa, com excepção dos meios humanos… Face ao exposto, agradecemos a sua colaboração, que cessa a partir de hoje… Os seus honorários, até ao presente momento, serão creditados para o NIB que nos facultou… Na esperança de uma grata compreensão, subscreve-se atenciosamente, o director geral, não sabe o que mais lhe doeu, se a situação em si, o vazio do amanhã (olhou a parede, à sua frente, durante o que se lhe afigurou necessário, pensou, não sabe porquê, que teria de desligar, doravante, o despertador no telemóvel), se o face a face com o desemprego, a ausência de um telefonema, de uma voz, que a reconfortasse, em vez da frieza de umas linhas impressas que aportaram nas caixas-de-correio de todos os funcionários, soube, depois, que nem todos foram presenteados com aquele fel, alguns, filhos da súplica, conseguiram acompanhar uma deslocalização, mesmo que, para o efeito, tivessem que dizer adeus a si mesmos, havia conversas interrompidas pelos pais quando se apercebiam da sua aproximação, há muito que o pai sonhava ter um escritório, agora com a reforma iminente, queria dedicar-se a algo, e como a filha formada, empregada numa empresa de nome, certamente, dentro de pouco, a querer o seu espaço, marido, filhos, assim, o quarto dela livre, porém, tudo num retrocesso, de facto, a vida, quando acelera, ultrapassa-nos sempre, do amanhã, dos computadores, para o ontem, dos velhos, tão estranho, trinta e tal anos tinha ela, e como os compreendia, não raras vezes, sentiu-se até mais velha que alguns deles, sobretudo daqueles que não desaprenderam o sorriso, ela já não conseguia, havia uma velha que passava manhãs e tardes à janela, alheada da sua circunstância, a palma da mão encostada ao vidro, percebia-se que olhava um indeterminado de si, quando se abeirava, a velha persistia com a janela, a palma da mão não deixava o vidro, como se procurasse perceber o porquê de a vida a ter ultrapassado…

terça-feira, 8 de julho de 2025

Harmonia

 


Pensei que fosse mais fácil, enquanto a coisa era só uma ideia, mas depois, bom, quando a materializei, não tinha nada a ver, foi tudo tão penoso, quantas vezes, num desespero calado, me perguntei meu Deus, meu Deus, o que fiz da minha vida? Para ser mais claro, e até para organizar ideias, vou recuar ao que me parece ser o início de tudo isto, foi numa manhã de fim-de-semana, há pouco mais de três anos, percebia-se a chuva ininterrupta lá fora, apesar do quarto ainda em escuridão, despertei com o abraço dela, o seu corpo a colar-se ao meu, percebi-lhe as intenções, há muito que nós longe destas paragens, daí aquela urgência súbita que lhe acelerou o sentir, contudo, eu aquém de urgências e desejos, há muito que me redimia da obrigação conjugal, não se pode dizer que por culpa minha, não, pelo contrário, ela, nos últimos tempos, num descuido contínuo, as formas a alargarem-se, à noite, com a televisão, bolachas e chocolates em tropel, nunca fui de dietas, mas pareceu-me excessiva aquela pilha calórica antes do sono, procurei, claro, chamá-la à razão, logo a resposta Se não gostas, azar o teu! Para amargura, chega-me a vida! E, por favor, não me chateies… Ainda insisti, com o valor da saúde, tudo em vão, nunca percebi, ao certo, em que momento ela se deixou ir pela vida, nem o porquê, tínhamos tudo o que é considerado suficiente, casa, trabalho, filhos, no entanto, aquele alargar das formas, sob a batuta de um tropel de bolachas e chocolates, pois, levou-me o olhar na companhia de brisas estivais, certa tarde, no escritório, percebi tristeza no rosto daquela colega – sabia que se divorciara há pouco –, falávamos disto e daquilo, trivialidades, tudo assim começa, instantes depois, uma chávena de café à frente, ela falava de si ou do trabalho, não me recordo, o que perdura em mim são as cores desse entardecer, não sei porquê, soou-me a tristeza, como se eu deixasse, para sempre, um mundo construído por uma outra qualquer coisa, lembro-me, também, da desagradável frieza do café, deixei-o arrefecer, distraído que estava com as tristes cores desse entardecer, a chávena dela, não deixei de notar, já vazia, conseguira abstrair-se das tristes cores do entardecer, saímos do café já a cidade caminhava de regresso ao lar, ela falou-me que tinha de ir buscar a filha, eu nada disse, não sei porquê, mas gostei que ela só uma chávena de café, longe, muito longe, de um tropel de bolachas e chocolates, seguiram-se mais cafés, deu-me o seu porquê do divórcio, é só o que conseguimos sempre dar (o nosso porquê), por pudor, neste ponto, abstive-me, talvez não lhe conseguisse falar de um tropel de bolachas e chocolates, certa noite, a televisão com a estupidez de um qualquer concurso, ela no sofá a aumentar a dose de bolachas e chocolates, era tal o mastigar que nem ouve aquele característico som a anunciar, no aparelho do hoje, que alguém acaba de se lembrar de nós, a colega recém-divorciada Não podes vir até aqui? Hoje sinto-me tão só… Pousei o aparelho no braço do sofá, olhei à minha volta, a sala estava numa semi-penumbra, além da televisão, a única luz provinha de um candeeiro numa mesa de canto, o nosso mais velho estudava numa universidade do interior, as médias, pois, o mais novo, que cumpria o último ano de liceu, no treino de qualquer coisa, acho que já experimentara todos os desportos, só acontece com quem não serve para nenhum, mas a mãe abençoava-lhe a inconstância, levantei-me, ela nem se apercebera, fui ao quarto, vesti-me, disse-lhe que me ligaram do escritório, antes de fechar a porta, olhei, uma vez mais, aquela semi-penumbra, reparei que, nesses instantes, nem uma bolacha ou chocolate abandonara o prato, a voz dela numa surpresa preocupada Toma cuidado. Olha que já é tarde. E não te demores, assim que fechei, numa lentidão abnegada, a porta atrás de mim, sabia que deixava, para sempre, um mundo construído por uma outra qualquer coisa, regressei na manhã seguinte, tornei-me num construtor de desculpas, não sei se ela acreditava, neste ponto, as formas deixaram de alargar, mas era tarde, no meu sentir restou apenas a amizade, acho que é não assim tão mau, pelo que se vê por aí, porém, ela longe deste desígnio, então, numa manhã de fim-de-semana, há pouco mais de três anos, percebia-se a chuva ininterrupta lá fora, apesar do quarto ainda em escuridão, despertei com o abraço dela, o seu corpo a colar-se ao meu, percebi-lhe as intenções, há muito que nós longe destas paragens, daí aquela urgência súbita que lhe acelerou o sentir, contudo, eu aquém de urgências e desejos, há muito que me redimia da obrigação conjugal, não se pode dizer que por culpa minha, não, a esquivar-me, a relembrar uma qualquer obrigação por cumprir, a levantar-me de imediato, com esforço, claro, porque também erguia comigo a culpa por um mundo deixado, reparei que a mão dela pousara no vazio de mim e por ali se demorou, mas tudo isto foi numa manhã de fim-de-semana, há pouco mais de três anos… Certa tarde, o telefone da colega recém-divorciada, que também se conseguia abstrair das tristes cores do entardecer, uma urgência com a filha, doença, acho que uma gripe forte, o reencontro mais demorado com o ex-marido, também fora avisado, ela só me apareceu na manhã seguinte, nem uma palavra para justificar, pouco nos falámos no decorrer desse dia, à noite, nem uma desculpa procurou erigir, de certa forma, acho que foi o que me magoou mais, sentou-se e num tom pausado disse-me, após uma breve introdução, Sempre o amei. Pensei que terminara, mas, sabes, bastou… E tudo, de novo. Não espero que me perdoes. Mas não posso fugir a esta realidade. Nunca gostei de gritos, de cenas melodramáticas, pela segunda vez na vida, fechei, numa lentidão abnegada, uma porta atrás de mim, vi-me na contingência da campainha da casa dos meus pais, pelo menos, não houve censura, apenas apreensão, por aqui tenho andado, há duas noites, a minha mãe Não queres um prato de bolachinhas e chocolates? E eu pensei meu Deus, meu Deus, o que fiz da minha vida?


 

quarta-feira, 2 de julho de 2025

O trolha, a anã e a parola



Há muitos anos, um trolha assumiu os destinos de uma oficina, nada mais natural, num contexto de tubos-de-escape, bielas, óleos e pneus, foi uma sucessão natural, no entanto, este trolha detinha as suas particularidades, quase como um distintivo, andava sempre com um colete que trazia à memória os retornados do Ultramar, confesso que lhe transmitia uma aura muito para além da sua oficina (um contexto de tubos-de-escape, bielas, óleos e pneus…), parecia um cidadão do mundo, e, em verdade, comportava-se como tal, tinha aquela irritante característica de gostar de se ouvir, mau augúrio, se temos duas orelhas e uma boca é precisamente para ouvirmos o dobro do que falamos, o trolha desconhecia esta máxima, talvez, no seu íntimo, achasse que tinha algo para dizer ao mundo, com um mínimo de atenção, bastava meio minuto para se compreender o logro, o trolha caminhava de paradoxo em paradoxo, e nem deste facto se apercebia, lá pelo bairro da oficina todos sabiam da sua proveniência, hoje podia ser o dono, mas era fatalmente um trolha, apenas e só, até passou a deslocar-se de mota, para dar um cunho de irreverência à sua imagem, quando se dobra os sessenta, há quem, de forma sublimada, procure dizer um rotundo NÃO a este facto, era vê-lo, em cima da mota, com o seu colete que trazia à memória os retornados do Ultramar, parecia um cidadão do mundo, quando surgia algum problema, os óculos sempre ao lado das narinas, levantava os olhitos e lá falava naquele lento compasso de quem aprecia cada sílaba emitida, incautos ou néscios achavam-no um douto (como não?), os óculos sempre ao lado das narinas, com o seu colete que trazia à memória os retornados do Ultramar, parecia um cidadão do mundo, e o timbre, meu Deus, o timbre, quase um sussurro, como se por ali fossem desveladas Verdades há muito ansiadas do lado de cá das coisas, em certa ocasião, por causa de uns papéis, para encobrir negociatas de óleo e bielas em terceira ou quarta mão, o trolha teve de recrutar duas artistas na obscura arte da vigarice, para o efeito escolheu uma anã, sobrevivente nata, perita em camuflar as suas múltiplas torpezas, dada a combustões de documentos, e uma parola, totalmente acéfala, cujo excesso de maquilhagem apenas tinha como intuito obnubilar a sua fealdade, dizia-se que a parola de mapas percebia um pouco, era imperativo unirem esforços para definitivamente cumprirem com os desígnios do trolha: encobrir negociatas de óleo e bielas em terceira ou quarta mão: assegurar a sobrevivência da oficina; há uns anos que o horizonte da reforma era familiar ao trolha, praticamente do quotidiano, lá providenciou um sucessor, como primeira característica teria de considerá-lo um douto (como não?), os óculos sempre ao lado das narinas, com o seu colete que trazia à memória os retornados do Ultramar, parecia um cidadão do mundo, e o timbre, meu Deus, o timbre, quase um sussurro, como se por ali fossem desveladas Verdades há muito ansiadas do lado de cá das coisas, logo que a anã e a parola souberam da iminente possibilidade da reforma do trolha, trataram de assegurar a sua continuidade na oficina, a ideia partiu, claro, da anã, a parola, além de não consolidar duas ideias seguidas, não tinha tempo para tal, a maquilhagem roubava-lhe grande parte do dia, ao longe parecia uma árvore-de-Natal ambulante, tal o festim de cores, azeite em estado-puríssimo, assim sendo, a anã, com as favolas num estado de ameaça permanente de saltar da boca, , infelizmente para o mundo, aquela é a sua cloaca, sobretudo as da arcada-de-cima, conferia-lhe um ar de toupeira desabrida, sugeriu comprar uma placa, com o nome do trolha, para colocar numa parede da oficina, talvez assim, com a merecida dose de emoção, ele interviesse para que elas continuassem, por ali, o seu louvável trabalho de encobrir negociatas de óleo e bielas em terceira ou quarta mão, a placa foi comprada, não sei mais detalhes, em que parede a colocaram, se ao lado de um póster com uma rapariga em greve de vestuário, se houve beberete, se alguém se lembrou de pôr música, a do genérico de “Bob, o construtor,” no meu entendimento, seria perfeita, se houve alguma brasileira, de fartas ancas, por ali a dar à bunda, é possível que sim, já com a devida dose de caipirinha ingerida, de uma coisa tenho a certeza: houve discurso! Imagino a anã, de boca aberta, as favolas jamais permitiam o seu fecho, infelizmente para o mundo, aquela é a sua cloaca, e a parola, também de boca aberta, neste caso, apenas um reflexo do vazio daquela caixa-craniana,  e o trolha naquele lento compasso de quem aprecia cada sílaba emitida, incautos ou néscios achavam-no um douto (como não?), os óculos sempre ao lado das narinas, com o seu colete que trazia à memória os retornados do Ultramar, parecia um cidadão do mundo, e o timbre, meu Deus, o timbre, quase um sussurro, como se por ali fossem desveladas Verdades há muito ansiadas do lado de cá das coisas.