Livros do Escritor

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terça-feira, 8 de julho de 2025

Harmonia

 


Pensei que fosse mais fácil, enquanto a coisa era só uma ideia, mas depois, bom, quando a materializei, não tinha nada a ver, foi tudo tão penoso, quantas vezes, num desespero calado, me perguntei meu Deus, meu Deus, o que fiz da minha vida? Para ser mais claro, e até para organizar ideias, vou recuar ao que me parece ser o início de tudo isto, foi numa manhã de fim-de-semana, há pouco mais de três anos, percebia-se a chuva ininterrupta lá fora, apesar do quarto ainda em escuridão, despertei com o abraço dela, o seu corpo a colar-se ao meu, percebi-lhe as intenções, há muito que nós longe destas paragens, daí aquela urgência súbita que lhe acelerou o sentir, contudo, eu aquém de urgências e desejos, há muito que me redimia da obrigação conjugal, não se pode dizer que por culpa minha, não, pelo contrário, ela, nos últimos tempos, num descuido contínuo, as formas a alargarem-se, à noite, com a televisão, bolachas e chocolates em tropel, nunca fui de dietas, mas pareceu-me excessiva aquela pilha calórica antes do sono, procurei, claro, chamá-la à razão, logo a resposta Se não gostas, azar o teu! Para amargura, chega-me a vida! E, por favor, não me chateies… Ainda insisti, com o valor da saúde, tudo em vão, nunca percebi, ao certo, em que momento ela se deixou ir pela vida, nem o porquê, tínhamos tudo o que é considerado suficiente, casa, trabalho, filhos, no entanto, aquele alargar das formas, sob a batuta de um tropel de bolachas e chocolates, pois, levou-me o olhar na companhia de brisas estivais, certa tarde, no escritório, percebi tristeza no rosto daquela colega – sabia que se divorciara há pouco –, falávamos disto e daquilo, trivialidades, tudo assim começa, instantes depois, uma chávena de café à frente, ela falava de si ou do trabalho, não me recordo, o que perdura em mim são as cores desse entardecer, não sei porquê, soou-me a tristeza, como se eu deixasse, para sempre, um mundo construído por uma outra qualquer coisa, lembro-me, também, da desagradável frieza do café, deixei-o arrefecer, distraído que estava com as tristes cores desse entardecer, a chávena dela, não deixei de notar, já vazia, conseguira abstrair-se das tristes cores do entardecer, saímos do café já a cidade caminhava de regresso ao lar, ela falou-me que tinha de ir buscar a filha, eu nada disse, não sei porquê, mas gostei que ela só uma chávena de café, longe, muito longe, de um tropel de bolachas e chocolates, seguiram-se mais cafés, deu-me o seu porquê do divórcio, é só o que conseguimos sempre dar (o nosso porquê), por pudor, neste ponto, abstive-me, talvez não lhe conseguisse falar de um tropel de bolachas e chocolates, certa noite, a televisão com a estupidez de um qualquer concurso, ela no sofá a aumentar a dose de bolachas e chocolates, era tal o mastigar que nem ouve aquele característico som a anunciar, no aparelho do hoje, que alguém acaba de se lembrar de nós, a colega recém-divorciada Não podes vir até aqui? Hoje sinto-me tão só… Pousei o aparelho no braço do sofá, olhei à minha volta, a sala estava numa semi-penumbra, além da televisão, a única luz provinha de um candeeiro numa mesa de canto, o nosso mais velho estudava numa universidade do interior, as médias, pois, o mais novo, que cumpria o último ano de liceu, no treino de qualquer coisa, acho que já experimentara todos os desportos, só acontece com quem não serve para nenhum, mas a mãe abençoava-lhe a inconstância, levantei-me, ela nem se apercebera, fui ao quarto, vesti-me, disse-lhe que me ligaram do escritório, antes de fechar a porta, olhei, uma vez mais, aquela semi-penumbra, reparei que, nesses instantes, nem uma bolacha ou chocolate abandonara o prato, a voz dela numa surpresa preocupada Toma cuidado. Olha que já é tarde. E não te demores, assim que fechei, numa lentidão abnegada, a porta atrás de mim, sabia que deixava, para sempre, um mundo construído por uma outra qualquer coisa, regressei na manhã seguinte, tornei-me num construtor de desculpas, não sei se ela acreditava, neste ponto, as formas deixaram de alargar, mas era tarde, no meu sentir restou apenas a amizade, acho que é não assim tão mau, pelo que se vê por aí, porém, ela longe deste desígnio, então, numa manhã de fim-de-semana, há pouco mais de três anos, percebia-se a chuva ininterrupta lá fora, apesar do quarto ainda em escuridão, despertei com o abraço dela, o seu corpo a colar-se ao meu, percebi-lhe as intenções, há muito que nós longe destas paragens, daí aquela urgência súbita que lhe acelerou o sentir, contudo, eu aquém de urgências e desejos, há muito que me redimia da obrigação conjugal, não se pode dizer que por culpa minha, não, a esquivar-me, a relembrar uma qualquer obrigação por cumprir, a levantar-me de imediato, com esforço, claro, porque também erguia comigo a culpa por um mundo deixado, reparei que a mão dela pousara no vazio de mim e por ali se demorou, mas tudo isto foi numa manhã de fim-de-semana, há pouco mais de três anos… Certa tarde, o telefone da colega recém-divorciada, que também se conseguia abstrair das tristes cores do entardecer, uma urgência com a filha, doença, acho que uma gripe forte, o reencontro mais demorado com o ex-marido, também fora avisado, ela só me apareceu na manhã seguinte, nem uma palavra para justificar, pouco nos falámos no decorrer desse dia, à noite, nem uma desculpa procurou erigir, de certa forma, acho que foi o que me magoou mais, sentou-se e num tom pausado disse-me, após uma breve introdução, Sempre o amei. Pensei que terminara, mas, sabes, bastou… E tudo, de novo. Não espero que me perdoes. Mas não posso fugir a esta realidade. Nunca gostei de gritos, de cenas melodramáticas, pela segunda vez na vida, fechei, numa lentidão abnegada, uma porta atrás de mim, vi-me na contingência da campainha da casa dos meus pais, pelo menos, não houve censura, apenas apreensão, por aqui tenho andado, há duas noites, a minha mãe Não queres um prato de bolachinhas e chocolates? E eu pensei meu Deus, meu Deus, o que fiz da minha vida?

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