... reparo que algo me ilumina a palma da mão, talvez um vestígio de alma derramado, a garantir-me que uma manhã sempre se levantará após a noite…
Livros do Escritor
sábado, 29 de abril de 2023
A distância suaviza o olhar
Enquanto ele falava, no fundo, aquilo que há muito sabia, afinal, nunca se espera o que se ignora, eu detinha-me numa qualquer outra coisa, algures entre a janela e o seu ombro, um ponto indeterminado onde pudesse aportar uma angústia que pressentia aproximar-se, ele ainda com questões técnicas, pois, para as outras não havia rasgo, ainda as esperei, em certos aspectos, não sei porquê, continuo a olhar o mundo pela janela da minha Escola Primária, mas, por ali, os esquemas dos compêndios sobrepuseram-se às curvas do sentir, terminada a prelecção, sei que o meu rosto impassível, o dele expectante por uma reacção minha, permaneço algures por aquele ponto indeterminado onde pudesse aportar uma angústia que pressentia aproximar-se, neste momento, uma mão pousa, numa demasiada suavidade, sobre a minha, como se por ela um sentir interrogativo, entretanto ele Compreendeu o que tem de fazer? E eu que há muito desistira da compreensão, percebi que esse não é o caminho, opto por uma saída ligeira, encolho os ombros, ele insiste Repare, não é altura para hesitações. Para si, o amanhã vem com um dia de atraso, a mão, que pousara com demasiada suavidade sobre a minha, a emitir uma interrogação entrecortada (Vais cumprir com o tratamento, não vais?), por ali apenas rasgo para as outras questões, das técnicas nem sinal, sentia-lhe os dedos num frémito de montante longínquo, virei o rosto, detive-me nela, reparei que, pela sua face, nem sinais de adeus, pelo contrário, os dedos inquietos persistem naquele jorrar de alma, de novo, a questão (Vais cumprir com o tratamento, não vais?), neste ponto, ele, do outro lado da secretária, aproveitou para demonstrar algum rasgo, Olhe, acho que devia ouvir a sua mulher, a frase soube-me cinzenta, não sei se pela expressão, havia qualquer coisa de mecânico a olhar motores e níveis de óleo, se pela ausência de gestos, os braços ainda não se haviam descruzado desde a nossa chegada, talvez fosse da assepticidade da divisão, apenas uma janela, atrás dele, encostada à parede, do nosso lado direito, uma marquesa, na outra parede, só um armário, três ou quatro pósteres, a omnipresente e tragicamente anacrónica roda dos alimentos, outro de incentivo à vacinação, e já não me recordo dos outros, no entanto, apesar daquele jorrar de alma pelas minhas falanges, das frases ainda suspensas neste rectângulo desumanizado, eu estou com a janela, percebo-lhe um azul geral, apenas riscado, mais abaixo, por um ramo oscilante, nada mais, por ali, nem os sons do mundo encontravam uma porta de entrada, também não era muito larga, a arquitectura, de então, não privilegiava horizontes, contudo, da cadeira onde estava, era o que se me oferecia, talvez fosse o bastante, um azul geral, apenas riscado, mais abaixo, por um ramo oscilante, havia qualquer coisa de comum entre o jorrar de alma pelas minhas falanges e o ramo oscilante que riscava o azul que nos amanhece o olhar, como se, em ambos, uma voz distante nos apelasse à memória, e nós, perdidos numa noite sem manhãs, permanecêssemos numa surdez flagrante face a um ontem que se quer fazer amanhã, ela não se rende (Vais cumprir com o tratamento, não vais?), desta feita num tom mais veemente, à minha frente, os braços persistem cruzados, nesta altura, compreendo que não devo encolher os ombros, não seria de bom-tom, à vista daquele ramo oscilante, optar pela ligeireza, opto por lhe aquietar as falanges, por fim, levanto-me, peço um pouco para pensar, ela, num repente, já de pé, quase ao mesmo tempo que eu, ele estático, com os braços cruzados, observantes, como se debruçados sobre um motor, nisto, reparo que algo me ilumina a palma da mão, talvez um vestígio de alma derramado, a garantir-me que uma manhã sempre se levantará após a noite…
segunda-feira, 24 de abril de 2023
domingo, 23 de abril de 2023
sábado, 22 de abril de 2023
O nosso tempo nunca é o tempo dos outros
Perdi o tempo da viagem, talvez por encontrar o outro tempo,
enquanto o retrovisor me espelha curvas, copas e mais copas, muito fugidiamente
um vulto, debruçado sobre a terra a semear amanhãs, casas, terras, daquelas que
apenas sabemos o nome por ali passarmos, numa inevitabilidade da viagem, mas,
em verdade, as terras são todas iguais, olhares que se cruzam, corações que se
sorriem, caminhos que se desviam, vozes que se emudecem, costas em vez de
rostos, e, sempre, no fim de tudo, uma pedra erguida do chão no lugar de sonhos
caminhantes, pouco mais há, uma praça, uma fonte, um miradouro, isto é do ver,
o antes é pertença do sentir, e é isto que me faz estar ao volante há horas
esquecidas, ela, a meu lado, porém, não sei em que tempo ela, continua a falar-me,
desde a primeira curva, há demasiadas horas atrás, ainda não cessou, amiúde,
uma frase suspende-se Já viste a alegria
da tua mãe com um netinho nos braços… E a minha, coitada, com medo de partir
deste mundo, sem esse sonho se cumprir… Nem uma observação para a
satisfazer, mantinha aquele ar compenetrado, de quem leva a condução muito a
sério, afinal, na estrada, e noutros lados, a segurança é um valor vizinho da
existência, fascinava-me a facilidade com que encontrava temáticas, eu sempre
falei mais comigo, neste momento, em que regresso a uma outra idade, é curioso,
há lugares onde somos sempre plurais, tristes são os lugares onde somos o
singular, nesses nem uma janela para se abrir, as sombras das árvores
espreguiçam-se, como se quisessem abraçar o momento, no céu, aqui e ali,
acende-se um fogo longínquo, como se nos relembrasse que a noite caiu para
todos, olho-a para lhe dizer que certamente já não chegamos hoje, de vez em
quando, perco aquele ar compenetrado, talvez já me demore a sair de mim, as horas
demasiadas a pesar sobre os ombros das pálpebras, ela a sugerir aquele hotel
onde, também há muito, nós, certa noite, de novo, uma frase suspende-se, Já viste a alegria da tua mãe com um netinho
nos braços… E a minha, coitada, com medo de partir deste mundo, sem esse sonho
se cumprir… Sem o escudo do ar compenetrado, da estrada levada a sério,
encosto naquele lugar, onde, antes, nós, ela contava-me sonhos, eu sempre na
serenidade de uma sombra de Verão, compreendia-lhe os anseios e lançava-os para
o futuro, de certa forma, ela agradecia-me o gesto, mas nunca se esqueceu de os
recolher à medida que caminhamos juntos, daí a partida para aquele Norte
distante, onde o Inverno parece devorar as outras estações, lembro-me, na hora
da partida, de sussurrar a meus pais, Compreendam,
dizemos adeus ao desemprego, meu pai cansado de tantas compreensões, a sua
boca numa horizontalidade calada face ao hoje dos seus filhos, minha mãe, a seu
lado, procura, através de gestos vazios, incentivar-nos à estrada, e isto já
foi há tanto, mas, para mim, continua a ser há tão pouco, uma vez mais, naquele
lugar, onde, antes, nós, ela contava-me sonhos, eu sempre na serenidade de uma
sombra de Verão, compreendia-lhe os anseios e lançava-os para o futuro, ela
insiste em recolher algo do caminho através de uma frase que se suspende, Já viste a alegria da tua mãe com um netinho
nos braços… E a minha, coitada, com medo de partir deste mundo, sem esse sonho
se cumprir… Das primeiras vezes, relembrei-lhe o Inverno devorador de
outras estações, a incerteza com que levávamos o pão à mesa, o meu bolso
alargado pelo dicionário, e o dela também, todavia, hoje, nada tenho para lhe
relembrar, no meu rosto vislumbro a linha de uma horizontalidade calada, e eu,
ao contrário de meu pai, ainda não me cansei de compreender, naquele lugar,
onde, antes, nós, ela contava-me sonhos, eu sempre na serenidade de uma sombra
de Verão, compreendia-lhe os anseios e lançava-os para o futuro, repousa o
rosto no meu ombro, é verdade, há lugares onde somos sempre plurais, ela
recolheu futuro e trouxe-mo na forma de um gesto feito desejo, acompanho o seu
olhar às alturas, aqui e ali, acende-se um fogo longínquo, como se nos
relembrasse que a noite caiu para todos, talvez não, neste momento, caminhamos
por sorrisos, sob um sol de Verão, em busca de uma sombra repousada.
sábado, 15 de abril de 2023
- Deixa estar. Tenho de ir. Chega de equívocos! Eu abraço o passado, o
teu irmão optou por abraçar o momento, tu só queres abraçar o futuro… Como vês,
olhamos em direcções opostas. Tenho de me apressar, alguém lá atrás espera-me,
numa madrugada, para reiniciar uma sempre adiada viagem. Não posso adiar mais!
Tenho a certeza: foi ali que me perdi de mim.
in Deslumbramento
sexta-feira, 14 de abril de 2023
quarta-feira, 12 de abril de 2023
Uma pedra, uma palavra
Estou a vê-lo, neste momento, a
estacionar o carro, no lugar do costume, debaixo do candeeiro, sempre com medo
dos roubos, não perdeu aquele hábito de retroceder, pelo menos uma vez, para
endireitar o carro, agora sai, pousa a carteira no tejadilho, acho-o mais
curvado, não sei porquê, afinal, não passou tanto tempo assim, vasculha o
interior com o olhar em busca de uma traição da memória, fecha a porta, guarda
a carteira, eu, do outro lado da rua, saio do meu carro, chamo-o, não muito
alto, ele naquele seu peculiar passo arrastado a caminho do prédio, talvez não
me tenha ouvido, resolvo gritar o seu nome, detém-se, por momentos, receio que
rosto vou encontrar, todavia, não abrando a passada, faltavam-me cerca de dois
metros, quando ele se vira, não sei porquê, mas opto por me imobilizar, o
discurso que havia elaborado, com toda uma sequência frásica, a diluir-se
perante aquela face, ou talvez pelo horizonte de passado que o seu olhar
derramou, eu… eu… bem, eu queria dizer-lhe tanto em tão pouco, geralmente é o
que procuramos, mas cansamo-nos tanto a correr atrás das palavras, que, na
maioria das vezes, socorremo-nos de uma ideia cansada ou de um gesto vazio, e
aquele olhar num gritante contraste com a curvatura pronunciada de há pouco,
uma energia alimentada por uma dor que eu bem sei, foi há uns três anos,
caminhávamos para onze de casamento, aquela fase em que sabemos a passagem dos
dias pela data, como se entre nós e o mundo sempre uma janela, ele trabalhava,
e ainda o faz, numa repartição pública, saía todos os dias à mesma hora,
chegava a casa, hora e meia de volta do aquário, nem dava pela minha chegada,
sempre depois, era balconista, e ainda sou, com muito orgulho, confesso, numa
casa de modas, não há chinês que lhe chegue, via-o absorto com aquelas cores
flutuantes, chegou mesmo a baptizá-las, nunca lhes quis saber os nomes, mas,
surdo para o meu desinteresse, debitava-mos de qualquer maneira, como as
diferenças de águas doce e salgada, nessa altura eu, felizmente, já com a
novela, e um bocejo aqui e acolá para o afastar, aos fins-de-semana, os miúdos
em casa, os pais dele também, de novo, em mim, aquela sensação de entre nós e o
mundo sempre uma janela, ele e o pai, nas tardes de Sábado, de volta daquela
caixa de vidro, cheia de água, nunca soube se doce ou salgada, com cores
flutuantes, ao Domingo, depois de almoço, iam para o café, ao fundo da rua,
porque tinha o canal da bola, durante uns tempos ainda me falou para metermos
isso cá em casa, mas rapidamente percebeu que, em certos lares, o mês demora mais
a passar, isto só sucede quando o porto está sempre um cabo adiante dos desejos
do navegador, enquanto isso, o perfume naftalinoso da minha sogra em cada divisão cá de casa, a
insolência dos miúdos crescia sob o manto indulgente dos avós, e eu perdia-me a
olhar as cores flutuantes na caixa de vidro, cheia de água, enquanto suplicava,
a um grito de mim, que se silenciasse, confesso que não sei quantos
fins-de-semana foram, sei que duraram anos e anos, talvez até à trombose do meu
sogro, aí mudámo-nos para o hospital, por esta altura, certa tarde, entra-me pela loja um antigo
colega de escola, reconheci-o de imediato, chegámos a trocar uns beijos atrás
do pavilhão, era atrevido com as mãos, também me reconheceu, mudara-se há pouco
para o bairro, vinha saber onde eram os correios, ofereci-me para o acompanhar,
era uma hora de pouco movimento da tarde, pedi à minha colega que olhasse pela
loja, lembro-me de cada palavra e olhar que trocámos, é curioso, parecia
reaprender a memória do tempo, quando dei por mim, após uns cafés, telefonemas,
estava deitada com ele no colchão, sobre o soalho, no quarto ainda despido de
móveis, o estore a meio permitia saber as horas, da primeira vez foi na pausa
de almoço, ele continuava atrevido com as mãos, eu gostava, e agradecia,
finalmente abria-se a janela que me separava do mundo, a certa altura, não
conseguia regressar àquele horizonte de costas debruçadas sobre uma caixa uma
caixa de vidro, cheia de água, com cores flutuantes lá dentro, apenas os miúdos
choraram a minha crescente ausência, a minha sogra, pelo telefone, ainda me
gritou um sinónimo corrente de rameira, de certa forma não me admirei desta sua
atitude, cheirava-me a naftalina, mas isto foi na altura, quanto a ele,
silêncio, a repartição pública, a saída sempre à mesma hora, as costas dobradas
sobre uma caixa de vidro, cheia de água, com cores a mover-se lá dentro, os
fins-de-semana agora apenas com a mãezinha, o pai, entretanto, partira, os
miúdos quiseram ficar com ele, eu compreendi, ao contrário de mim, ele tinha
gestos de lar, já não me lembro em que altura foi, mas percebi, muito a custo,
confesso, que as mãos eram atrevidas e demasiado irrequietas, certa tarde,
também à hora de almoço, em que era para estar na loja, no colchão, ainda sobre
o soalho, no ainda quarto despido de móveis, ele e a vizinha do quarto andar,
bem mais nova que eu, acho que fazia unhas numa dessas lojas a atirar para um
barroco tardio, não me perceberam, talvez pelos gemidos, saí tímida, para não
os interromper, tudo o que vestiu aquela
casa veio de mim, dos electrodomésticos aos poucos móveis da sala, ele sempre
refugiado na conversa de estar entre
projectos, à espera dele, pelo menos uma vez por semana, a senha do centro
de emprego, a certa altura, começou a falar mais alto (e como eu estava
habituada a silêncios!), entre nós, apenas a memória do colchão, sobre o
soalho, no quarto ainda despido de móveis, o estore a meio que permitia saber
as horas, as mãos, afinal, sempre pluralmente atrevidas, os beijos, noutra
vida, atrás do pavilhão, era pouco, talvez fosse nada, era isto que te queria
dizer, enquanto por ti, quem sabe, ainda haja a memória do teu nome escrito,
pela minha mão, por pedras à beira-mar, naquela praia do Norte, onde tanto
gostas de passar as férias grandes, à espera dos teus primos emigrados em
França, achava graça ao trejeito que fazias enquanto soletravas cada sílaba sob
a luz marítima de Agosto, se pudéssemos subir, e conversar um pouco, talvez eu
te ajude a limpar uma caixa de vidro, cheia de água, enquanto memorizo, para
sempre, o nome de cada cor flutuante.
segunda-feira, 10 de abril de 2023
Adeus, Peida-Sentada
Caros leitores, bem sei que, há uns tempos, quis terminar esta série da Peida-Sentada com uma trilogia, porém, acontecimentos recentes e, por sinal, imperativos, obrigam a mais esta crónica, assim sendo, fica a promessa de se finalizar esta série com uma tetralogia, mas uma questão já deve pairar nos espíritos dos leitores: que acontecimentos recentes suscitaram tão imperativa crónica? Bom, aqui chegados, creio que o título seja elucidativo (“Adeus, Peida-Sentada”), aos poucos, naquele curral, a Peida-Sentada foi perpassando, às suínas mais próximas, que estava de partida, iria deixar o curral, até ali seu, ninguém transpareceu desgosto com a novidade, tal facto não passou despercebido ao Mocho, no seu elevado ramo, não vá algum dejecto apanhá-lo, e por ali são tantos, que cogitava: saindo do curral, para onde irá a Peida-Sentada sentar-se? Amiúde e em surdina, porcos e porcas comentavam este facto, várias teorias se levantaram para justificar a saída, houve quem apontasse o esfriar de relações entre a Peida-Sentada e a sua adjunta Peida-Sorrisos, todavia, o porco é um animal de memória-curta, a preocupação centrou-se logo na sucessão da Peida-Sentada, quem iria agora dirigir os destinos do curral? O que seria do confessionário instituído pela Peida-Sentada? E as mordomias das porcas mais próximas? Proximidade, num curral, está longe de rimar com amizade, ressalve-se este facto, quem andava num constante vai-e-vem era a peida-platinada, responsável pela contagem e distribuição das bolotas, já aquando do suíno velho e gasto, antecessor da Peida-Sentada, com resultados muito sofríveis, dizia-se que o suíno era taumaturgo na arte da subtracção, daí a sua precipitada saída, não obstante este facto, a peida-platinada continuou com esta pasta no curral, daí a sua azáfama, até pediu o auxílio de um porco-velho, decrépito, que gostava de ir para o pasto passear com vacas-novas, imagine-se o quadro: um porco-velho, decrépito, num pasto, a passear com uma vaca-nova, pois, pior é difícil… Visão dos infernos! Não era só a peida-platinada que andava em azáfama, outras nossas conhecidas personagens rondavam o confessionário da Peida-Sentada, o porco das pernas-arqueadas, com a marca dos dejectos já nas orelhas, sim, esse mesmo, o tal dos grunhidos pelas costas, até hoje há quem aguarde que grunha de frente, mas um suíno é só isso mesmo, um suíno atolado em trampa, o porco-espanhol (espanhol e porco, pior combinação é impossível) em contactos múltiplos a babar-se por uma promoção, houve quem o avistasse, nas mais recônditas zonas do curral, em grunhidos baixos com porcas que se perfilavam como putativas candidatas na sucessão da Peida-Sentada, de facto, este porco-espanhol não queria, de forma alguma, largar o confessionário, mas também havia as porcas já instaladas que impassivelmente aguardavam pela sucessão, as nossas conhecidas: porca dos dentes-de-esquilo, tudo igual, imunda das patas à língua, a peida-varizes, uma porca deveras dissimulada, cada vez mais larga, a porca-da-índia, dizem que perdeu toneladas, embora os intestino continuem próximos da boca, a peida da bata-branca, a tal acéfala que queria ser doutora, onde, num curral, alguém pode almejar uma incólume bata-branca? Pois, só uma suína para tal pretensão, o porco-da-bolsinha, com a desculpa de uma pata ferida, encostou-se a um canto do curral, dizia-se que estava farto da chafurdice, ainda houve o regresso da porca cujos quadris davam para alimentar toda a indústria salsicheira, agora envergava um fato-de-treino, uma porca rotunda de fato-de-treino, outra visão dos infernos, de facto, não havia lugar mais próximo daquele curral, começou a correr o boato de um porco-albino para suceder à Peida-Sentada, embora, por ali, quase todos os porcos fossem castrados, como esse albino, talvez fosse mais um boato, também houve quem afirmasse que a queda da Peida-Sentada se devesse a um notório excesso de tramoias, pois, quem sabe? Recorda-se o leitor da amizade da Peida-Sentada com uma Vaca-Estéril que, para compensar a sua secura, adoptara um casal de porcos-pretos? Mais uma extraordinária combinação: uma Vaca-Estéril com dois porcos-pretos! A verdade é que, passado todo este tempo, a porca-preta deambulava pelo curral da Peida-Sentada como se um domínio seu, embora pertencesse de outro curral, houve quem não ficasse muito agradado, as bolotas já eram escassas, a única coisa ali vasta é a imundície, em verdade, a Peida-Sentada vê-se confrontada com os factos da vida: ninguém irá sentir a sua partida, para alguns, a porca já vai tarde, para outros, nunca devia ter assumido o curral, mas uma lição a suína leva: há portas onde nunca devia ter chegado o seu fedorento focinho!
sábado, 8 de abril de 2023
quarta-feira, 5 de abril de 2023
terça-feira, 4 de abril de 2023
Quem é aquele, parecido comigo, que me olha do fundo de um copo?
Há lugares que, sem sabermos muito
bem como, se tornam nossos parentes, talvez por, enquanto caminhamos por essas
ruas, uma voz, sussurrante ao ouvido, nos aquietasse angústias, ao mesmo tempo
nos relembra que, ao menos, por ali, já desejámos amanhãs, ele, neste momento,
encontra-se num desses sítios, sentado a uma mesa, suficientemente afastada da
entrada, pelo menos o sol não chega e a lua não relembra lar, sabe que inclina
a garrafa pela segunda vez, mas não se lembra da primeira, é curioso, a
convicção sem a memória, não olha à sua volta, apenas o copo, e a garrafa,
apesar da perspectiva geral da sala, desta vez, o copo mais lentamente, quer
saborear aquele gosto crescente da distância das coisas, algo em si se aquieta,
subitamente, repara no seu olhar aparecido no fundo, não é a primeira vez que
se olha, e se estranha, mas, hoje, há uma qualquer diferença, antes evitava
olhar-se, mesmo ao espelho nunca, em verdade, se olhou, afinal, observar não é
olhar (o que vê ele, após o desvelo do líquido escarlate?), talvez alguém caído
num desamparo de beco, sob uma noite sem auroras profetizadas, não se importa,
está naquele momento da vida em que, certas palavras, caem do bolso da sua
linguagem, e não se preocupa nada com isso, pelo contrário, tudo resumido a um encolher
de ombros, afinal, hoje sabe-se mais rico, pelo menos no léxico, aprendeu que
certas palavras sabem a universo, pousa o copo, o seu olhar desvanece-se sob o
horizonte reaparecido da sala, baixa o rosto e procura-se de novo naquele vazio
envidraçado, roda e roda e roda, numa abnegação autista, aquele agora nada, um
náufrago conhecido aproxima-se, não de si, mas da bóia da garrafa, depois dos
cumprimentos, os tentáculos do social são demasiado longos, senta-se sem
convite, da entrada, um latido, como sempre, o cão acompanhara-o até ao
possível, perscruta o interior sentado, à porta, no tapete, o náufrago
conhecido levanta-se numa contrariedade evidente, é compreensível, a bóia ao
alcance da mão e, de repente, forçado a afastar-se, da entrada, agora, apenas
os ganidos do cão, uma cena recorrente, o animal a esquivar-se, passeio fora,
aos pontapés, por fim, regressa, ofegante, uma boa desculpa para haver gesto
sem verbo, senta-se e enche um copo, entretanto desviado do balcão, o outro
continua, numa abnegação autista, a rodar e rodar e rodar, ambos naquela praia
desolada, apenas despojos a toda à volta, o náufrago conhecido avança para o
segundo copo, a garrafa quase um também vazio envidraçado, cada qual naufraga
por motivos distintos, e nem sempre são os que levaram a embarcar, entre eles,
tirando os tentáculos do social, apenas vozes emudecidas, é o suficiente,
aquele não é um lugar de excessos, para isso, basta-lhes contemplar a vastidão
de despojos circundantes, as vagas ameaçam tragá-los, não sabem se seria bom,
talvez fosse, esquecerem-se, de vez, de si mesmos, de repente, pára de rodar o
copo e, num gesto altruísta, manda vir mais uma garrafa, o náufrago conhecido
acompanha-lhe o gesto com feições de uma alegria contida, da entrada, uma vez
mais, um latido, o tapete, de novo, ocupado, a garrafa pousa na mesa pela mão
da empregada, opta por encher, primeiro, o copo do náufrago conhecido, segue-se
o seu, finalmente, face àquele cansado e incessante marulhar, o verbo solta-se,
e, cada um, relembra os porquês de
ter embarcado, certo dia, naquele navio, ou, quem sabe, talvez por lá
deambulasse quando procurou por esses porquês,
e, a uma mesa, suficientemente afastada da entrada, onde pelo menos o sol
não chega e a lua não relembra lar, ouviram-se duas histórias, de quem ousou
olhar o longe, mas, por isto ou aquilo, não encontrou o caminho para lá chegar…
sábado, 1 de abril de 2023
Uns procuram, por uma vida inteira, recuperar o seu rés-do-chão
alugado, outros vivem existências de montra, a maioria procura incessantemente
engordar a carteira, outros buscam protagonismo onde podem, por regra no
trabalho, (...) ainda há os que
preenchem o vazio do tempo, uma das mais duras batalhas, estes já possuem outra
consciência dos factos, estão acima dos anteriormente elencados, compreenderam
o logro do circo social, por fim, há os sonhadores, onde me revejo, um instante
da existência justifica o todo, e aí procuram regressar a cada instante.
in Deslumbramento
A emoção espera sempre pelo pensar
Quando se apercebeu, já se debruçava
sobre o filho, no berço, a seu lado, com esta, talvez a quarta ou quinta vez
que, esta noite, o socorria de uma febrezita, quem sabe um dente, os braços
dela longos, como ramos a sombrear o viajante que se sabe esgotado, naquele
socorro espontâneo, por uma luz que só ela via, talvez por a saber sua, a
colher de xarope, o choro, ela numa vertigem de cansaço, pelo canto do olho a
procurar as horas no despertador, os números, vermelhos, naquela frieza de uma
indiferença surda, passavam uns minutos das quatro da manhã, lá fora, percebeu
a camioneta do lixo, as tampas abertas e fechadas como se dia, o pára e arranca
da viatura, o esforço metálico de içar o caixote, os urros dos homens, tudo
numa sequência orquestral, ela a questionar-se do porquê daquela hora, no
fundo, aprendera a familiarizar-se com os sons da madrugada, o xarope
silenciara a criança, por quanto tempo, questiona ela, daí a pouco mais de duas
horas teria de se levantar, desliga o candeeiro, de novo, um pensamento caminha
por si, quando se vira para o lado esquerdo da cama, ainda estende a mão, como
que para comprovar o frio dos lençóis, deixa-se estar, assim, já se apercebera
de que o sono lhe fugira, talvez fugisse daquele frio irreparável, ainda há uns
meses, ele orgulhoso com a barriga dela, fotos e mais fotos, calcorreou todos
os clichés possíveis, alguns de gosto duvidoso, desde o clássico beijo na
barriga, a fotografar a sombra curvilínea, no relvado ao fundo da rua, tudo
irradiava um entusiasmo nascido do excesso, contudo, o excesso habita longe da
experiência, ele a procurá-la de noite, ela a afastá-lo numa indiferença
mineral, mas ele não lidava bem com o não,
talvez por ainda ocupar alguns guarda-fatos da casa paterna, nesta altura, um
chorrilho de questões precipitava-se de si (Já
não me amas? Sabes há quanto tempo é que não fazemos nada? Mas o que é que se
passa? Foi para isto que quiseste ter um filho? E eu? Onde é que fico no meio
disto tudo?), ela desejava apenas que não se cumprisse um vómito, daí a
súplica pelo silêncio dele, pela pacificação da barriga, que a manhã se
apressasse, ouviu-o levantar-se, sair e atirar com a porta do quarto, apesar
de, lá fora, a camioneta do lixo, as tampas abertas e fechadas como se dia, o
pára e arranca da viatura, o esforço metálico de içar o caixote, os urros dos
homens, tudo numa sequência orquestral, numa tradução de fúria, desde aí,
sempre que se vira para o lado esquerdo da cama, ainda estende a mão, como que
para comprovar o frio dos lençóis, na manhã seguinte, encontrou os lençóis e o
cobertor dele dobrados no sofá, trabalhava com o pai na venda de automóveis
usados, basicamente tinham o dom da subtracção, qualquer carro que adquirissem,
por exemplo, com uns 200.000km passava, miraculosamente, a ostentar pouco mais
de 90.000, havia quem os apelidasse de
taumaturgos, é possível, o negócio lá ia, ela conheceu-o no aniversário de uma
amiga, há tanta coisa que nos demora os gestos em certos momentos, porém, ela
só teve um motivo para ali aportar, esta festa foi há mais de dois anos, hoje,
àquela hora da madrugada, virada para o lado esquerdo da cama, ainda estende a
mão, como que para comprovar o frio dos lençóis, tem a certeza de que se iria,
de novo, demorar nos gestos naquele momento do aniversário, afinal, ela só
tinha um motivo para ali aportar, ainda não se familiarizara com os sons da
madrugada, com colheres de xarope, e já se ouvia no bairro conversas acerca da
nova secretária, também ela perita na arte da subtracção, mais de vestuário que
de quilómetros, desde aquela noite que ele não abandonou o sofá, de manhã, os
lençóis e o cobertor imaculadamente dobrados, ela fingiu não se importar, se
ele um pouco mais de paciência, apesar do vómito, da súplica pelo silêncio, do
incómodo da barriga, da pressa pela manhã,
talvez arranjasse disposição para, mas não, optou por um atalho, não é de
estranhar, afinal, ainda ocupava alguns guarda-fatos da casa paterna, talvez
tenha adormecido com a mão num lugar frio, é possível, ou talvez o cansaço a
traísse, como certeza apenas uma respiração penosa a seu lado e um choro em
crescendo, levanta-se uma vez mais, estende os seus braços, longos como ramos a
sombrear o viajante que se sabe esgotado, naquele socorro espontâneo, por uma
luz que só ela vê, talvez por a saber sua, há quem veja a sua luz como o
despojo de uma derrota, para esses apenas a nuca, nada mais, compreendera, há
pouco tempo, que o destino são as sombras ou luz que o passado derrama no hoje.