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domingo, 22 de janeiro de 2023

Um suspiro é uma interrogação escondida atrás da porta


 

Sempre que chego à margem do passeio, a minha mão ergue-se em busca de uma mais alta, firme, segura, que me levava até ao outro lado, sem antes proclamar Temos sempre de olhar para um lado e para outro, só então atravessamos, a frase acompanhada de gestos largos e expressões de seriedade, eu, sempre que na margem de um passeio, receoso daquela seriedade, talvez me observasse cada movimento, para ver se eu olho para um lado e para outro, e só depois atravesso, todavia, hoje, apesar da teimosia em erguer a minha mão, antes de atravessar, já não encontro uma mais alta, firme, segura, embora a sinta num lugar de mim, e ouça as recomendações no ouvir de agora, havia uma rua da cidade, que atravessava no regresso a casa, que, apesar da mão, das recomendações, o meu olhar já me esperava na margem oposta, no frio, na forma de castanhas, no calor, em gelados, quando ali desaguava, insistia com a mão mais alta, firme, segura, ou por aquele calor numa estranha forma de fruta que, por instantes, diluía frios e guarda-chuvas, ou por aquele doce arrepio que amenizava o sol de qualquer hora, regra geral, a mão cedia, mas havia, como sempre há, mais qualquer coisa, recebia-nos um casal com a genealogia da humildade, só quem vive do sal do rosto tem tal ascendência, de vez em quando, a filha, mais velha que eu uns anos, ajudava-os, apesar da genealogia, no seu rosto havia mais uma parcela somada, afigurava-se-me como uma realeza calada, qualquer coisa assim, uma altivez sem vertigem, muitas vezes, a mão a estender-me o canudo das castanhas e eu perdido naquele rosto, naquela dignidade com que apanhava os cabelos, a elegância que as páginas amarelas ganhavam nas suas mãos, folhas que se metamorfoseavam em canudos, como se sempre no mundo com aquela forma, apenas aguardavam um despertar, raras vezes os nossos olhares se cumprimentaram, talvez eu, em verdade, nunca tenha atravessado até à sua margem, reparei que, sempre que os céus resolviam lavar a terra, o seu olhar erguia-se até a um indefinível das alturas (Em prece? Súplica? Gratidão?), nunca soube o porquê, ou talvez não o quisesse compreender, é o que sucede mais vezes, na altura dos gelados, era comum vê-la com as cores dos sonhos nas mãos, como se um diálogo de iguais, era a florista, tinha a banca uns quarenta metros de passeio mais abaixo, que lhe dava, achava-a triste, dizia, os pais encolhiam os ombros, na certeza do desconhecimento, uma tarde, naquela rua da cidade, que atravessava no regresso a casa, ela não estava, a mão caminhou por um canudo de páginas amarelas, eu hesitante em segui-la, deixei de sentir frio, pelo menos de fora, por dentro chuvia, o casal com a genealogia da humildade recebeu-nos como sempre, mas o canudo com os frutos do Outono afigurou-se-me tosco e um espelho do céu, desejei, lembro-me bem, nesse momento, que os céus lavassem a terra, compreendi, numa esquina de mim, que ela não ia regressar àquela margem de passeio, por um lado, congratulei-me, afinal, ela olhava o indefinível das alturas, por outro, perdi a vontade de atravessar aquela rua da cidade, em cada regresso a casa, neste ponto, só posso agradecer à mão pela sua firmeza, hoje, perdi-me num oceano de travessias, e procuro encontrar aquele que os outros não quiseram conhecer, porque sempre quiseram que eu fosse, apenas, um já conhecido deles, e nessa minha busca regresso à margem de um passeio, ergo a minha mão, antes de atravessar, para uma mão mais alta, firme, segura, que só eu sei ali presente, ouço-lhe a voz Temos sempre de olhar para um lado e para outro, só então atravessamos, chegado ao outro lado, onde antes, um pouco de passeio, no frio, em forma de castanhas, no calor, em gelados, agora apenas mais um vazio, povoado de sombras caminhantes, ergo o olhar a um indefinível das alturas (Em prece? Súplica? Gratidão?), talvez àquele ponto em que as cores dos sonhos cabem na palma de uma mão.

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