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sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Os anjos não caminham


 

Caminhava atrás daquela figura de branco (ou seria de negro?), sem perceber quem lhe ordenava os passos, por aqueles longos corredores, que se lhe afiguravam ainda mais obscuros, ela a ordenar-lhe que se sentasse, ele numa obediência infantil, pelo menos da infância que foi sua, a figura de branco (ou seria de negro?) ressurge, segura, numa mão, um copo de plástico com água, na outra, um pequeno cilindro colorido, diz-lhe, num tom doce, compreensivo, mas, simultaneamente, sem espaço para réplicas, é curioso como uma frase, em certas vozes, possui uma miríade de significações, Tome. Engula de uma só vez, cumpre com o imperativo, Vai ser melhor para si, e para os seus, vai ver. Daqui a uns minutos, venho buscá-lo, deixa-se estar, ali sentado, a olhar, não a parede em frente, que tinha um panfleto qualquer suspenso a fita-cola, talvez a chamar a atenção para a relevância da higiene oral, sombras de pensamentos, ou de sentires, uma indolência ganhava terreno nas suas raízes, olhava, agora, à volta, com o sentir já morno, de repente, uma mão no seu ombro, nem se apercebeu dos passos que a trouxeram, de novo, a voz doce, compreensiva, mas, simultaneamente, sem espaço para réplicas, Está mais calmo? Venha, então, levantou-se com alguma dificuldade, a dado momento, teve de se apoiar no encosto da cadeira, Quer ajuda? Tem a certeza? Recusou duas vezes, sublinhadas com uma horizontalidade em movimento, embora lenta, afinal, uma mão ainda se firmava no encosto da cadeira, por fim, seguiu-a, ao entrar no quarto, cuja penumbra apenas se atenuava por uma luz esbranquiçada proveniente da cabeceira da cama, viu dois braços lívidos que seguravam o universo, agora em repouso, olhou a figura de branco a seu lado (ou seria de negro?), em gratidão pelo cilindro colorido, só assim ali chegara, os braços lívidos levantam um rosto à altura do seu olhar, como é estranho, não havia nele arqueologia de traços salgados, mágoa, revolta, apenas uma dor demasiado subterrânea para ser traduzida em feições, senta-se, na cama, ao lado daquele amplexo, os braços lívidos já baixaram o olhar, contemplam, de novo, aquele universo em repouso, ele relembra o dia em que ali entraram, pela primeira vez, norteados pela angústia em forma de dúvida, embora, entre eles, saltitasse um universo de esperança, tiveram de regressar, e regressar, viram majestades destituídas da sua coroa, mas nunca dos seus sorrisos, mesmo quando os rostos amareleciam, havia aquela dignidade prevalecente, como se a coroa tivesse mudado de lugar, parece que há lugares, neste mundo, que se nos colam à pele, este é um deles, quando ali não estavam, o seu pensar deambulava por aqueles longos e obscuros corredores, com o tempo, o sorriso foi estreitando enquanto os braços empalideciam, aquela vozita filha da espontaneidade foi ficando arrastada, curioso, nunca quis nada que lhe ocultasse o roubo da coroa, apenas uma frase para atenuar o efeito, Assim pareço o Avô, talvez compreendesse que há vazios intangíveis, talvez por gritarem para além da rouquidão, ainda ontem, ao telefone, falava-lhe de natais por nascer e de aniversários por cumprir, os braços lívidos ajudaram-no a pousar o telefone, percebeu-lhes a dificuldade, afinal, ninguém ilumina um universo para assistir ao seu sono.

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