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quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

Hoje refaço dezoito anos

 


Conheci-o há uns largos meses. Bom, é melhor ser mais específica e iniciar este relato convenientemente. Há um quiosque, em frente ao meu prédio, do outro lado da rua, onde me abasteço, há anos suficientes para já não saber desde quando, de revistas e jornais. Mais revistas, confesso, para desgraças já me chega a vida. Moro num primeiro-andar, um humilde apartamentozito, embora com uma renda bem estridente, na companhia do meu gato Popov, e de um periquito, que nunca baptizei, não sei porquê, mas com o gato ainda converso, sobretudo naquelas noites em que o vento ressoa lá fora, e eu para ali, balizada entre o sofá e a novela, ele ao meu colo, de vez em quando levanta-me o olhar, como se me dissesse Está tudo bem, afinal, é o meu único calor, e o vento, lá fora, a amainar, mas regresso ao quiosque, onde me abasteço, há anos suficientes para já não saber desde quando, de revistas e jornais, sempre ali encontrei o rosto do senhor Ramiro, é curioso, nunca me pareceu alterar-se, como se mantivesse a mesma idade desde que o conheci, ou seja, para mim, sempre foi velho, e com o passar dos anos, as pessoas da idade dele como que estacionam e aguardam a nossa chegada, e só aí é que reparamos naquela coisa chamada tempo, não era muito simpático, também nunca conheci um vendedor de revistas e jornais rico em simpatia, contudo, mal me via a atravessar a estrada em sua direcção, providenciava a minha revista preferida e, no caso de haver brinde, tinha-o cuidadosamente guardado, uma vez foi um saco-praia, outra um elegante guarda-chuva, da janela, o Popov seguia os meus passos num zelo fraterno, entredentes o senhor Ramiro praguejava sempre qualquer coisa, ora contra os recorrentes desgovernos do rectângulo, ora contra o fado do seu existir, ora contra o calor demasiado ou a chuva inclemente, mas sempre aquele ruminar imperceptível, por vezes apanhava-se fragmentos que possibilitavam o contexto, como se entoasse uma melodia consentânea com as cores do seu sentir, mas num Domingo, só depois de atravessar a rua, a uns passos do quiosque, após recontar as moedas, na palma da minha mão, necessárias para a revista, compreendo que um outro rosto me aguarda, impassível, sem melodias ruminadas, nem gestos de me colocar, de antemão, a minha revista preferida num saco branco amarfanhado, mais novo, olho à minha volta, alimentada pela incredulidade, para comprovar se não me enganei no destino, de facto, não, os meus passos, agora, renitentes, o rosto impassível lê-me as hesitações, lança-me uma ponte sob a forma de um airoso cumprimento, quando regresso à minha circunstância, compreendo que é o filho mais velho do senhor Ramiro, está ali a substituí-lo enquanto prevalecer o seu internamento, o coração cansou-se de tanto se entristecer com aquelas melodias, encontraram-no caído à entrada do prédio, uma sorte alguém ir a sair naquela altura, o negócio não podia continuar fechado, ainda por cima, aquele filho sem trabalho, a empresa ligada aos computadores falira, e eu sempre ouvira dizer que o futuro está na informática, cada vez percebo menos o mundo, acompanhei a evolução da convalescença do senhor Ramiro pelo filho, sempre que atravesso a rua, agora, sou recebida com aquele airoso cumprimento, em vez de se preocupar com a minha revista preferida num saco branco amarfanhado, a sua atenção em mim, nos meus interesses, naquelas coisas que ninguém me pergunta, os cotovelos sobre cabeçalhos e o rosto a um palmo do meu, gosto daquele seu olhar, parece que tudo à minha volta emudece, faz-me sentir o centro, antes dele, ninguém me fez sentir assim, minto, talvez o Popov, daí àquele café perto do cruzamento foram duas revistas e dois sacos brancos amarfanhados, tudo nele serenidade, e eu tão cansada da solidão deste mar-alto, resolvo aportar, uma noite convido-o para jantar, aparece-me à hora marcada de ramo de flores na mão, ao princípio, fiquei perplexa a contemplar aquelas cores harmoniosas (há quanto não me ofereciam aquela natureza materna?), sempre de gestos contidos, o único excesso da noite proveio de Popov que abandonou a sala de um salto assim que o convidei a entrar, ajudou-me com tudo, pratos, toalha de mesa, talheres, de novo, tudo emudecia à minha volta, ao despedir-se, os seus lábios entre a minha face e um canto dos meus, não sei se de propósito, se por acaso, mas soube-me a céu, uma vizinha, mais tarde, disse-me que ele tinha duas filhas, uma quase adolescente, fruto de uma relação de vozes sobrepostas, entretanto terminada, confesso que tive de me equilibrar perante aqueles golpes do verbo, procurei disfarçá-lo sob o  seu olhar arguto, nessa noite, quando a campainha tocou, ainda não decidira que caminho tomar, em verdade, se nunca lhe perguntara o passado e o presente, ele não me escondera nada, e eu tão cansada de mar-alto, a descansar agora naquele porto de águas serenas, hoje a surgir-me com as cores quentes de uma caixa de chocolates, a sentar-se a meu lado, no sofá, Popov entretanto regressara, mas para o seu colo, de vez em quando, a sua voz rouca e serena segreda-me Está tudo bem, e o vento, lá fora, a amainar, pode ser que, um dia destes, me ajude a baptizar o periquito…

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