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segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

O amanhã nasce com a noite


 

Havia uma árvore, num lugar da infância, a que gostava particularmente de subir. Quase sempre, ao final da tarde, trepava até ao segundo ramo, e ali me deixava ficar, a olhar. Não bem a olhar, apesar do rio, lá ao fundo, mas a estar. Talvez pela hora, um calor emanava, como uma expiração, da árvore, enquanto o mundo, à minha volta, acolhia a noite, ali perpetuava-se um vestígio de dia. Não havia melhor canto para se estar. Tudo tão longe de mim, e eu somente a dois ramos da nossa angustiada superfície. De vez em quando, o meu nome noutras vozes, tão estranho, o meu nome só com sentido por ser noutras vozes… Mas eu a estar. Apenas. Agora, tudo tão longe de mim. As águas murmurantes, lá ao fundo, a meio do vale, trajadas de laranja, talvez por olharem o céu, e o levarem, na sua corrente, como se passos numa mesma direcção, enquanto olhos que se olham. Uma brisa cansada anima palavras perdidas entre as folhas, que me falam de destinos, eu, neste momento, com o rio, lá ao fundo, a meio do vale, de vez em quando, um cão lamenta-se aos céus, pelas chaminés compreende-se regressos e jantares, uma carroça sobe o vale num gemido desesperançado, fico a ouvi-la, afigura-se-me uma sábia melodia, pela sua humilde convicção, de onde estou, compreendo-a melhor, quem sabe se pelos dois ramos acima da nossa angustiada superfície, em mim, neste momento, apenas o calor emanado deste ser que se finca na terra enquanto tacteia os céus, de novo, meu nome noutras vozes, nunca me souberam aqui, talvez por se terem esquecido de olhar para cima, de certa forma, compreendo-os, naquela superfície, por onde caminham, dificilmente se tacteiam céus, continuo com o rio, lá ao fundo, a meio do vale, entretanto, despira o laranja, agora traja um azul-escuro pontuado, aqui e ali, por vestígios de luz, continuam passos numa mesma direcção enquanto olhos que se olham, uma vez mais, o meu nome noutras vozes, desta vez, sinto a cor da superfície que pisam na entoação, o meu nome pintado de angústia, contudo, persisto com o rio, lá ao fundo, a meio do vale, extasiado por aqueles vestígios de luz, tão longínquos e tão familiares (Quantas vezes os hei-de encontrar em olhos que me olham?), e com o calor emanado por este ser, em parte oculto, em parte visível, mas sempre em harmonia, as vozes recrudescem, um pássaro canta no seu voo de lar, em mim, ainda, aquela sábia melodia, de uma humilde convicção, como um gemido desesperançado, da carroça que subia o vale, nesta altura, já terá cumprido o seu regresso, embora continue a ouvi-la, como se este fosse o seu lugar natural, sempre a procura por um sentido, talvez nas águas que fluem enquanto espelham as cores das alturas, olhos que se olham, sei que aqui vou regressar, amanhã, depois, para o ano, mesmo quando viver amanhãs distantes, sempre que as águas trajarem de laranja, vou-me afastar, dois ramos, da nossa angustiada superfície, embora não saiba para onde fluem as águas, tenho de regressar para me saber, o meu nome mais próximo, entoado com o perfil da superfície, tenho de descer, antes, um último vislumbre a um horizonte de sonhos, talvez por se diluírem distâncias, compreendo que cessara o calor emanado por este ser, em parte oculto, em parte visível, mas sempre em harmonia, talvez agora caminhe por outras paragens, quem sabe se acompanha o fluir das águas, olhos que se olham, já estou no primeiro ramo, antes de sentir o desconforto na sola dos sapatos, uma melodia reacende-se na minha memória, uma sábia melodia, pela sua humilde convicção, como um gemido desesperançado, que me  acompanha os passos enquanto as vozes de há pouco se silenciam, sob um azul-escuro pontuado, aqui e ali, por vestígios de luz, tão longínquos e tão familiares (Quantas vezes os hei-de encontrar em olhos que me olham?).

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