Como sempre, àquela hora, náufrago de
mim, cedo aos doces apelos da tépida corrente do sono, no sofá, a meu lado,
minha mulher sempre com a novela, assim que me distancio do mundo, com um ténue
movimento de pálpebras, logo a sua voz a ecoar na sala, como se me adivinhasse
a distância, através de uma interrogação, exclamação, mas um tom a sublinhar o
imperativo de uma resposta, eu na contrariedade do regresso, o movimento das
pálpebras mais lento, sempre o desafio da gravidade, de seguida, o esforço de
me contextualizar, a desculpa mais à mão, Diz
lá, não te ouvi, bastava-lhe o olhar, mas ela sempre mais, Já estavas era a dormir. Já nem televisão
vês! Sinceramente, estás mesmo de todo, e eu queria mesmo era estar todo
longe dali, daquela voz tão alta que até faróis encolhia, a exigir-me um
regresso por mim indesejado, pelo menos àquela hora, ou talvez nas outras
também, as mãos dela num frenético movimento de linhas e agulhas, o olhar
absorto nas vidas que desfilam, diante de si, no ecrã, com uma pronúncia temperada,
propícia a gerúndios recorrentes, uma vez mais, O que é que achas?, eu a hesitar, entre a anuência e a
honestidade, se lhe disser Acho que sim, corro o risco da questão
pronta (Mas achas que sim, o quê?),
logo faróis temerosos em penínsulas tempestuosas, se Estás a falar de quê?, inicia o interminável rosário de
lamentações, desde o dia em que nos conhecemos, a apresentação aos pais,
depois, aquele período, na vida dos casais, que antecede, ou não, uma vida
partilhada, em que se conhecem, ou se enganam, porque aí só sorrisos e flores,
como se fosse possível expulsar o azedume do horizonte dos homens, uma altura
em que o gesto antecede o desejo, e é tão raro isto suceder na vida, só aqui um
casal caminha contra o tempo, nunca mais o volta a fazer, Enganaste-me bem! E eu, parva, caí. Cheio de falinhas mansas, promessas
e mais promessas, para acabar nisto…, entretanto, a campainha, por hoje,
escapei, o miúdo vai a correr abrir, prefere brincar no quarto, talvez já
conheça, demasiado bem, a sequência das falas desta divisão, mas ela atira, Já devias estar a dormir, assim que se
recorda da sua existência, a vizinha da frente entra, nos gestos percebe-se a
familiaridade do hábito, o miúdo aproveita para se despedir, pode ser que
assim, no seu quarto, não haja luzes encolhidas, a vizinha senta-se no sofá ao
lado, desde que entrou, o seu olhar não se desviou daquelas vidas com uma
pronúncia temperada, propícias a gerúndios recorrentes, há uns meses que
desagua na nossa sala, sempre a esta hora, parece que o vizinho se iniciou numa
actividade coral, na paróquia, desconhecia-lhe aptidões para o canto, ao
fim-de-semana só o vejo de volta do carro, primeiro com balde e pano, depois só
com pano, apesar da varanda, nessa altura, percebo que um pano diferente, mais delicado,
assim se passam as manhãs de Sábado, por fim, o aspirador ecoa pela praceta,
alimentado por uma sucessão esforçada de tomadas, que se esticam desde uma
janela até ao interior do carro, como uma ponte suspensa sobre um abismo, ora
de calçada, ora de alcatrão, de novo, uma questão povoa a sala, O que é que acha, vizinha?, enquanto
algures uma luz se encolhe, Acho que ela
o deve deixar. Se ele a traiu…, já não ouvi o resto, sempre a mesma e
cansada fórmula, o A que ama o B, o B que ama o C, o C que ama o D, que acaba
por matar A, e olhos absortos perscrutam isto numa avidez virginal, prefiro
abandonar-me aos doces apelos de uma tépida corrente que me leve para longe de
mim, para um lugar onde as luzes não esmoreçam, a distância cresce à minha
volta, continuo a ouvir gerúndios recorrentes, entre as mulheres, agora, nem
uma palavra, talvez se a vizinha não tivesse o olhar tão absorto, e se a voz da
minha mulher não encolhesse faróis em penínsulas tempestuosas, uma dúvida
silenciada encontrasse a voz e o verbo, O
que é que acha, vizinha?, e, então sim, minha mulher poderia responder, Não imagina como me irrita aquele aspirador
todos os Sábados de manhã… Já agora, você tem ido à missa?, talvez me
esteja a distanciar em demasia, há diálogos que só ocorrem num se de nós, levanto-me para ver se o
miúdo já dorme, logo ela Passa rápido!, obedeço,
da porta da sala observo-as, e, de certa forma, compreendo-as, no fundo, elas
procuram recordar sorrisos e flores, uma altura em que o gesto antecede o
desejo, como é raro isto suceder na vida, e uns instantes em que um casal
caminha contra o tempo.
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