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quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Como se pronuncia vazio?


Hoje, quando acordei, todos tinham saído. Já não me lembro da última vez em que uma palavra pela manhã. Vou à janela, abro as cortinas, há muito que o estore partido, o meu pai Não mexas aí, que sou eu que arranjo, eu não mexo, mas o arranjo continua a aguardar uma vontade por cumprir, talvez nunca a encontre, pela luz, que me devolve as distâncias, percebo a plenitude da manhã, nisto, compreendo, na entrada do prédio em frente, minha mãe, de esfregona nas mãos, está de costas, leio-lhe cansaço na lentidão, baixa-se para aproximar o balde de si, percebo-lhe a dor nas costas, sem lhe ver aquele característico esgar, jamais um lamento, tudo, por ali, se verbaliza em falanges contorcidas, o resto, palavras sem som, minha mãe (Desde quando lava o mundo? E a escada do prédio em frente?) longe desta minha vergonha, por encontrar, diariamente, manhãs em plenitude (Mas que fazer?), a esfregona em círculos, lentos, percebe-se-lhe o cansaço, dois miúdos entram a correr prédio adentro, como se nada diante deles, o calor estende-se, em mim, dos antebraços às mãos, a esfregona continua a sua dança circular, enquanto uma mão, de minha mãe, visita a testa, neste momento, no cimo da rua, meu pai com a sua jornada diária de esquecimento, começa cedo, minha mãe, do cansaço, ou talvez por uma compreensão desgostosa, nada de censuras, afinal, uma vida inteira de trabalho, e depois, uma carta a tentar calar décadas, ainda se deram ao trabalho de contar as linhas, eram oito, os anos de fábrica trinta e dois, continua a sair de casa à mesma hora, se não sair diz que endoidece, compreende-se, apesar da diferença no destino, num destes serões, quase num sussurro, disse para minha mãe, É a única porta que encontro aberta, nunca se ouviram censuras, talvez na sua consciência uma esfregona limpasse recriminações, que, assim, jamais encontrariam o verbo, nestas alturas, ela erguia-lhe os lábios à testa, quanto a mim, permaneço numa zona indefinida balizada por cadernos e livros e por rectângulos que se preenchem após um mês de balcão ou sentado numa caixa, a esfregona de minha mãe persiste nos seus lentos movimentos circulares – máscara do cansaço –, meu pai, agora, com oito linhas que tentam justificar trinta e dois anos, a sair de casa para abraçar o esquecimento, neste momento, à minha frente, do outro lado da rua, minha mãe acena-me, retribuo com uma saudação tímida, afinal, só há pouco abri as cortinas, mas no seu olhar, do outro lado da rua, não havia vestígios de censuras, apenas uma alegria genuína por me encontrar, e, naqueles breves instantes em que nos olhámos, sob a moldura de sorrisos, disse-me que eu não podia fazer mais, que me ouve entrar em casa, todas as madrugadas, em cuidados pela hora, vindo do armazém daquele grande supermercado, onde ajudo a arrumar infindáveis caixotes, com a esperança de assinar, por mais um mês, um rectângulo, assim, sempre ajuda lá em casa, e rectângulo a rectângulo, onde testemunho em magros números demasiadas horas, evito trajectos de esquecimento, contudo, à vista da esfregona, em círculos lentos, numa dança cansada, de minha mãe, daquele verbo peculiar comunicado por falanges contorcidas, sinto-me a olhar gigantes, apesar das horas de caixotes noite dentro, dos dedos dilacerados, das costas que gritam numa dessintonia de omoplatas, ombros, e cervicais, de súbito, uma vontade encontra-me, saio de casa, atravesso a rua, e, antes que as suas falanges contorcidas pegassem de novo no balde, eu pego-lhe, ela ergue-me os lábios à testa, já não há, em mim, vestígios de dedos dilacerados, de costas que gritam numa dessintonia de omoplatas, ombros, e cervicais, nada, neste momento, eu olho gigantes, minha mãe –  quantos degraus cumprem uma vida? –, neste momento, caminha o regresso a meu lado, numa majestosidade ferida, o destino enganou-se-lhe no ceptro, entretanto, do fundo da rua, alguém entoa uma canção de saudade, como se quisesse esquecer e lembrar ao mesmo tempo, meu pai, perdido entre duas margens, de súbito, compreendi a sua frase, sussurrada num destes serões, a minha mãe, É a única porta que encontro aberta.

 

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