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domingo, 29 de maio de 2022

Os números não choram

 


A campainha soou como se procurassem outra morada. Ela esperava aquele toque mais tarde, encaminhou-se para a porta, o primeiro passo saiu contrariado, o segundo mecânico, do terceiro nem se apercebeu, o quarto já conformado, antes de abrir, olhou o marido na moldura plástica, transparente, em cima da camilha, a gravata ligeiramente torta, ela sempre com vontade de endireitá-la, mas a moldura a impossibilitar, antes, ele ainda a seu lado, a virar-se para ela, Está bem posta?, logo, passos de corrida, os braços estendidos em seu socorro, a verticalizar correctamente aquele enfeite que caracteriza qualquer senhor que se preste como tal, a suspirar pela aparente ilusão do que foi, por fim, a porta, três crianças correm ao seu encontro, ela baixa-se para as receber, embora lhe custe, os joelhos, a ciática, talvez já devesse estar também numa moldura, e assim ajeitar a gravata do marido, as falas das crianças atropelam-se, o som em crescendo, uma guerra jamais declarada pela atenção da avó, ela, apesar dos joelhos, da ciática, a demorar-se sempre com o neto mais velho, quantas vezes já a mão pelo cabelo, as gémeas naquela compreensão ainda não assimilada, tão frequente no início da viagem, agora a levantar-se, a demorar-se inadvertidamente nas malas, a olhar a nora, que se perdia com os filhos, como se um escudo, seguiu-se o filho, este não olhava, talvez se procurasse, por vezes, perdemo-nos de nós, é quando não temos pernas para a vida, ela a lamentar a derrota do filho enquanto baixa, de novo, o olhar para as crianças, para que ninguém lhe leia as palavras no rosto, cumprimenta a nora e o filho, a espontaneidade guia os passos dos netos casa adentro, a vivacidade das vozes no interior em contraste com aquele silêncio púdico e simultaneamente incómodo, ela apercebe-se de que já ali estão há demasiado, pega numa das malas, a nora rectifica-lhe o gesto, e tira-lhe a mala, finalmente, seguem-na, ele reentra numa dor que julgara esquecida no caminho, depara-se com a moldura, embora a tentasse evitar, mas há coisas que nos gritam à vista, o seu olhar ali cai, enquanto frases poeirentas se levantam do caminho julgado esquecido (Hás-de voltar, seu ingrato, hás-de voltar. Nunca digas que estás bem. Um dia, hei-de ouvir esta campainha, e serás tu…), ouve, em si, o som de dentes a entrechocarem-se, a mãe estacara, olha-o como se tivesse ouvido, mas ele ainda se procura, não, desde a campainha, ainda não olhara a mãe, entretanto, a nora apercebe-se dos três colchões na sala para os filhos, de que ela e o marido ficam no quarto em frente à sogra, de que terão de partilhar a única casa de banho da casa, ao sentar-se na cama, compreende os sonoros gemidos que esta emite, olha as quatro gordas malas diante de si, o raquítico guarda-fatos, o marido à janela do quarto, talvez ainda se busque, ouve as gargalhadas dos filhos na divisão ao lado, opta por se deitar, talvez com receio de cair, de novo, gemidos pela casa, ele deixa a janela, quem sabe se acordado pela insistência daquela súplica, olha-a, ali, indefesa, derrotada, cercada por quatro gordas malas, como porto, um raquítico guarda-fatos, senta-se, um gemido ecoa pela casa, deita-se, mais testemunhos sonoros dos seus movimentos, abraça-a, ela grata no indizível de um gesto em forma de sorriso, mais gemidos pela casa, enquanto abraçados apenas presente, nem memória da casa deixada, em que cada filho com a sua cama, dos obesos guarda-fatos, das duas casas de banho, do facto de ser deles, ali não entravam frases empoeiradas esquecidas no caminho, o abraço perdura, neste momento, nem ânsia pelo amanhã, as filas a enfrentar, sim, restava-lhes aquele lugar para onde caminham aqueles a quem retiram, à força, a enxada, ele, agora, mais próximo dela, a sentir-lhe a respiração, os gemidos sucedem-se a cada gesto, ela vira-se para ele e beija-o, olham-se como se primeira vez, compreendem o abismo, ao menos que o façamos juntos.

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