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domingo, 22 de maio de 2022

E se de uma janela nem horizonte…


 

Ela assoma à janela. Apenas olha para baixo. Espera pelo baque da porta do prédio, um som indistinto entre vidros e alumínios, e depois surge a figura dele, lá vai, numa passada em que se lê o saber da amargura do destino, mas obstina-se, lá vai, sempre, àquela hora, como se um rito, lá vai, ela mão no vidro, a sentir aquela frieza que traz consigo sempre a memória do real, a mão em adeus, ou num apelo, mas ele sempre, lá vai, a dobrar a esquina, até que, por fim, apenas uma mão no vidro. Horas antes, entrara em casa, com aquela expressão peculiar de quem se quer saber a sós, senta-se no sofá, nisto, a campainha, ela e a irmã em corridas para a porta, passam por ele como se nada, aguardam já de porta aberta, nas suas costas apenas sofá e jornal, o elevador, uns braços cansados pousam a subsistência que ameaça as ténues margens plásticas dos sacos, ouve-se uma expiração com o comprimento da fadiga, ajoelha-se, as irmãs de novo em corrida, os braços cansados agora abrem-se num sorriso para as acolher, assim ficam as três, até se conseguirem, por fim, reerguer, de seguida, entram, uma aresta de subsistência consegue romper a margem plástica do saco, antes de se pousar na mesa, do sofá um aceno, com a cabeça, à vista dos braços cansados e dos sacos de plástico, nada mais, o jornal permaneceu aberto, num horizonte de golos e classificações, ela e a irmã em auxílio dos braços já em queda, como se cada subsistência arrumada mitigasse aquela fadiga jamais gritada, mas por todos sabida, com excepção talvez do sofá, e daquele panorama de remates, vitórias, e pontos, por altura do jantar, os quatro à mesa, trocam-se escassas frases sem entoação, ela e a irmã sempre com o horizonte dos braços cansados, dali questões por escola e deveres, o sofá com o prato, assistia a tudo num mutismo como se com a distância, talvez as observasse de um outro continente, ela e a irmã evitavam, se, por acidente, um olhar ali caía, rapidamente o apanhavam, bolso com ele num gesto envergonhado, e corrida, de novo, para aquele lugar onde brotavam espontaneamente questões por escola e deveres, por outras palavras, sons do seu mundo, já pratos debaixo da torneira, um último esforço daqueles braços, ela entre a mesa e o frigorífico, a irmã, nessa noite, com o trilho da despensa, a porta de casa abre-se, como sempre àquela hora, um gesto com a cabeça para aqueles braços que sustinham um último esforço de pratos e torneiras, a porta, agora, a fechar-se, ela a correr para o quarto, já terminara o périplo entre mesa e frigorífico, a assomar à janela, a vê-lo lá em baixo, após o baque da porta do prédio, um som indistinto entre vidros e alumínios, lá ia, a caminhar passos de amargura, lá ia, contudo, antes de chegar à esquina, antes de uma mão no vidro, na fugacidade imperceptível do momento, levantou o rosto, à altura da sua janela, e falou-lhe, sim, falou-lhe, longe de sofás e jornais, também perguntou pela escola, também perguntou por ela, e, antes de dobrar a esquina, pediu-lhe, sim, baixou a voz, num murmúrio, já a mão no vidro, a desenhar um adeus. Nunca assistiam àquele regresso, acompanhado de cânticos, antes da escola, percebiam-no ali a dormir, no sofá, com a mesma roupa, os braços amanhecidos a cobri-lo com uma manta, a pedir-lhes para evitar barulho, para se despacharem, com o leite, as bolachas, a vestir os casacos, a pôr as mochilas, e, nessa manhã sem sol, antes de fechar a porta atrás de si, ela olhou para o sofá, baixou a voz, e, num murmúrio, disse que sim, que jamais caminharia como ele.


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