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domingo, 8 de maio de 2022

E atravessar uma estrada, não é atravessar um oceano


 

Acho que nunca me reconheci num espelho, pensava ele, àquela hora, no sempre arrastado regresso, sim, regressar é um acto de lentidão, lá ia, passeio fora, na dúvida das idades, talvez porque a idade tem a cor do pensar e nunca a do rosto, ainda há pouco, no quiosque, a tratarem-no por O que vai ser, caro senhor? E ele a estranhar, afinal, naquele momento, com os seus dez anos, perdia-se com a capa, de cores quentes, de uma revista agora em reedição, onde não havia espaço para a palavra limite e os conceitos éticos elementares exibiam-se ao peito, por ali, apenas se velava o rosto, mas ele também nunca se reconheceu num espelho, à hora do almoço, a insistência demasiada do telefone, pelo toque adivinha-se o emissor, a mulher, a natação da filha, a mochila já à entrada, ela, a essa hora, uma reunião na escola da outra filha, a repetição com a mochila, logo a resposta, Sim, sim, não te preocupes, não me esqueço, mecânica, artificial, no fundo, a ocultar, sempre, um outro sentido, o verdadeiro, Cala-te. Não me chateies com isso. Não quero saber. Já me perguntaste que idade tenho neste momento? Desacelerou o passo, como se não soubesse para onde ir, ou talvez se soubesse próximo da paragem, àquela hora já cheia, imobiliza-se a uns metros de segurança daquela anarquia de odores entardecidos, amarguras somadas, desalentos olhados, derrotas silenciadas, mãos nos bolsos, o seu olhar levanta-se, num repente de ventania, e leva-o ao passeio do outro lado, por aí, caminhava ela, com um fato próprio de balcão de sucursal bancária, carteira debaixo do braço, o rosto numa expressão imperscrutável, algures entre o cansaço e a ementa do jantar, propício ao momento da tarde, ele a procurar-lhe linhas de felicidade, ou o inverso, na paisagem da expressão, a frustrar-se pela opacidade, ela ainda não o vira, mantinha-se balizada entre a fadiga e um possível horizonte de fogão, ou talvez uma outra coisa, o desespero não gritado de uma gravidez tardia, é possível, à distância tudo é possível, a ventania repentina agora do seu lado, a encontrar-lhe o olhar, no passeio oposto, a compreender, pelo embaraço não pronunciado, que ele já se demorava por ali há um pouco, ela a refrear a passada, ao mesmo tempo que entreabre os lábios (Por surpresa? O efémero início de uma saudação?), a opacidade do seu rosto a desvelar-se, e, no seu lugar, apenas exclamação, nenhum se moveu, como se padecessem de uma imobilidade súbita, a viajar apenas o olhar e o pensamento, sim, por aqueles instantes, apenas se pronunciou o verbo do olhar, e tanto se falou, ele nem reparou que ela ajeitou quatro vezes a carteira, que o espanto inicial deu lugar a um sorriso reconfortado, que o pé direito ainda se levantou na direcção dele, que… Ela, por seu lado, aquém do facto de ele ter silenciado a insistência do telemóvel, de se obstinar nela e ignorar a chegada do autocarro, do esforço de juntar palavras, como pedras sobre a água, para chegar ao outro lado, mas o mundo a chamá-los, naquela sua fria e peculiar inclemência, talvez não o mundo, mas o tempo, porque eles imobilizaram-se num outro tempo, sim, não tiveram que perguntar por idades, enquanto se olharam sabiam que idade tinham, foi sempre a mesma, por fim, cederam, ele recuou um passo enquanto esbatia o sorriso, ela avançou um para a sua esquerda, o rosto fechava-se de novo, enquanto se afastavam, o mundo devolvia-os à sua circunstância num desamparo cruel, sem concessões, ainda perdurou, por mais um pouco, a encantada doçura de uma outra idade, em que o tempo ainda um desconhecido, e onde o gesto nascia antes do verbo.


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