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sábado, 8 de janeiro de 2022

Como é difícil da corrente avistar a margem


 

Subiram o insignificante degrau, ela à frente, nos alvores convém o cavalheirismo, pensava ele, olharam as mesas disponíveis, e sentaram-se. Olhares de horizonte, enquanto procuravam romper aquele súbito e inoportuno véu que descera sobre eles, semblantes de sorrisos, embora ela mais séria, talvez pelo anelar que espelhava o ocaso iminente, o empregado que tardava, uma pena, pensava o silêncio de ambos, porque, assim, romper-se-ia o desconforto do véu, entretanto, sempre aquele horizonte marítimo, frases de ocasião, sim, meteorologia, o agrado da vista, felizmente o empregado, O que vão desejar, por favor?, ela sabia-se, agora, em palco, optou pelo pudor de uma água, discrição e pureza ficam sempre bem, ele preferiu um sumo natural, saúde e vigor também são valores consideráveis, o empregado retira-se, com ele, de súbito, o véu pelo chão, sim, agora horizontes de olhares, nada mais, ele a encetar por uma questão Então, o que pensas fazer?, mal acabara de a proferir, logo o arrependimento, talvez por ser demasiado directa, talvez por não respeitar o tempo dela, porque o tempo do feminino é um outro tempo,  talvez por saberem que o destino do futuro é o passado, ela a baixar o olhar, as mãos a encontrarem-se sobre a mesa, os dedos inquietos, como se procurassem letras para formular possíveis respostas, mais para si do que para ele, entretanto, emite um longo e prolongado suspiro enquanto os ombros se aligeiram, o olhar sobe, antes dele, de novo aquele azul repousante e de sabor a longe (palavra doce) – quantas vezes procuramos o longe de nós? –, por fim, aquele rosto inquieto, sim, nota-se-lhe a ânsia por um veredicto, ela demasiado perdida para veredictos, ainda esta manhã acordara ao lado dele, o seu despertador sempre primeiro, aquele toque com sabor a fel que lhe relembra não um prazer deixado, uma vez que sempre desconhecido, mas a consciência demasiado repetida do velho desconforto de um despertar, ainda assim, após silenciar aquele grito de existência, não sai logo de si, permanece naquela incógnita zona entre duas portas, uma que irremediavelmente se fechou, e uma outra que tarda em abrir, talvez pelo cansaço da paisagem… Por fim, a sobrevivência, ela levanta-se, olha-o, ainda dorme, apenas com uma ternura espontânea, repreende-se por isso, mas agora, no seu olhar, apenas respeito e ternura. Para muitos, acima do suficiente, mas não para ela, que se lançava naqueles braços como se náufraga do seu próprio existir. Há quanto tempo? Continua a observá-lo, ele testemunha as marcas desse tempo, ela também, embora, no seu caso, uma cegueira obstinada, quanto a ele, o cabelo invernoso, a cintura superior aos ombros, uma capitulação flagrante no rosto, ela em ternura e respeito… Nem vestígios de naufrágio, nem de vertigens, no seu existir. E aqueles braços mirrados e frouxos arrancariam, hoje, alguém das águas? Há quanto tempo? Por escassas frestas do estore anuncia-se dia, ela veste-se, sai do quarto mas, antes, um último vislumbre àquele que, há vinte anos (há quanto tempo?), num abraço, a fez compreender que eternidade soletra-se presente. Mas o presente é fugidio. Agora surge naquele rosto inquieto que a olha na ânsia de um veredicto. De novo, do anelar, um reflexo de ocaso. Ela persiste naquele horizonte de olhar, enquanto um sorriso irreprimível lhe suaviza a apreensão, o cabelo dele apenas outonal, uma cintura de caudal de Agosto, e um rosto ainda com laivos de heroicidade face a um devir sempre de fonte incógnita… Ela ainda num silêncio pensante, o rosto dele mais inquieto, de novo a questão a suspender-se Então, o que pensas fazer? Ela a não ordenar o pensar, no fundo, é única forma de residirmos em nós, entre a saudade de um abraço salvífico das águas, de sabor a presente, e aquele rosto ainda com laivos de heroicidade, a nada pensar fazer, mas como verbalizar que, de momento, apenas ali quer estar, entre um horizonte de olhares e um reflexo de ocaso nascido do seu anelar. Sim, um reflexo de fonte longínqua, mas ainda ali presente, a tremeluzir como uma das memórias que ilumina a noite do nosso pensar.

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