Ela saía do trabalho por volta das
cinco da tarde. Ele lá estava, do outro lado da rua, dentro do carro.
Sorriam-se. Ela atravessava com uma cautela de garota devidamente avisada. Ao
entrar no carro, segurava com a mão direita o cabelo, como se este pudesse
ficar esquecido. Davam um beijo tímido, que servia mais para recompor a
familiaridade, do que de cumprimento. À pergunta Como correu o teu dia?, ela encetava logo uma descrição, demasiado
exaustiva para ser deste mundo, do seu desinteressantíssimo quotidiano laboral.
Todos os dias, ele arrependia-se da questão, mas esta sempre surgia, há falta
de qualquer outra coisa para dizer. E assim, ele iniciava a marcha, grato por
qualquer obstáculo que lhe fizesse redobrar a atenção (um súbito peão
desavisado, a inesperada travagem do carro à frente, o enervante vermelho que
sempre cai quando quase lá se chega, um buzinar algures), para o afastar de um
segundo cenário de trabalho que, de tanto o conhecer, é quase seu. Por fim, já
muito próximo de casa, ela lembrava-se de perguntar pelo dia dele. E ele,
apenas um encolher de ombros, e um normalmente,
para virar a página ao assunto trabalho. Ela lembrou-o ainda do leite que
acabara e da comida para o cão. Mas, agora, ela já sabia onde iam. Antes das
compras, antes dos filhos, antes de tudo. Era a vez de ela se silenciar e de o
deixar desabafar, não através de palavras, mas através de um gesto sonhado. Ele
desviava-se um pouco do trajecto de casa. Mas, para ele, estava apenas a
corrigi-lo. Entrava numa rotunda, virava na segunda à direita, subia uma rua
íngreme, ao fundo desta, à esquerda, numa zona só de vivendas, e parava diante
da terceira casa. Uma vivenda nova, de arquitectura moderna, aparentemente
desabitada (talvez a única por ali), com algum terreno a ladeá-la. Ali chegado,
desligava o carro. Virava-se para ela, dava-lhe a mão, e, de dedos entrelaçados
nos dela, dizia-lhe: Há-de ser nossa!
Um dia, esta casa há-de ser nossa.
Ela respondia com a indulgência sorridente possível, de dentro do utilitário,
comprado em segunda mão, com a tinta em vários pontos estalada, a precisar de
uma séria revisão sempre adiada. De seguida, ele ligava o carro, e partiam para
os deveres. Nunca lhe perguntou porquê
especificamente aquela casa. No fundo, ela sabia tratar-se de uma questão
absurda. Era aquela, ponto final. Após os deveres cumpridos, regressavam ao
lar, um apartamentozito, de duas exíguas assoalhadas, numa praceta onde o sol
não queria entrar, com os sacos de compras a sucumbirem ao peso, talvez já
estivessem rotos, acompanhados dos gritos das crianças, do ladrar do cão que os
terá ouvido, e de facturas por pagar, a única correspondência nunca extraviada
destes dias...
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.