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terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Só te conto os meus desejos, se dermos as mãos



Ela saía do trabalho por volta das cinco da tarde. Ele lá estava, do outro lado da rua, dentro do carro. Sorriam-se. Ela atravessava com uma cautela de garota devidamente avisada. Ao entrar no carro, segurava com a mão direita o cabelo, como se este pudesse ficar esquecido. Davam um beijo tímido, que servia mais para recompor a familiaridade, do que de cumprimento. À pergunta Como correu o teu dia?, ela encetava logo uma descrição, demasiado exaustiva para ser deste mundo, do seu desinteressantíssimo quotidiano laboral. Todos os dias, ele arrependia-se da questão, mas esta sempre surgia, há falta de qualquer outra coisa para dizer. E assim, ele iniciava a marcha, grato por qualquer obstáculo que lhe fizesse redobrar a atenção (um súbito peão desavisado, a inesperada travagem do carro à frente, o enervante vermelho que sempre cai quando quase lá se chega, um buzinar algures), para o afastar de um segundo cenário de trabalho que, de tanto o conhecer, é quase seu. Por fim, já muito próximo de casa, ela lembrava-se de perguntar pelo dia dele. E ele, apenas um encolher de ombros, e um normalmente, para virar a página ao assunto trabalho. Ela lembrou-o ainda do leite que acabara e da comida para o cão. Mas, agora, ela já sabia onde iam. Antes das compras, antes dos filhos, antes de tudo. Era a vez de ela se silenciar e de o deixar desabafar, não através de palavras, mas através de um gesto sonhado. Ele desviava-se um pouco do trajecto de casa. Mas, para ele, estava apenas a corrigi-lo. Entrava numa rotunda, virava na segunda à direita, subia uma rua íngreme, ao fundo desta, à esquerda, numa zona só de vivendas, e parava diante da terceira casa. Uma vivenda nova, de arquitectura moderna, aparentemente desabitada (talvez a única por ali), com algum terreno a ladeá-la. Ali chegado, desligava o carro. Virava-se para ela, dava-lhe a mão, e, de dedos entrelaçados nos dela, dizia-lhe: Há-de ser nossa! Um dia, esta casa há-de ser nossa. Ela respondia com a indulgência sorridente possível, de dentro do utilitário, comprado em segunda mão, com a tinta em vários pontos estalada, a precisar de uma séria revisão sempre adiada. De seguida, ele ligava o carro, e partiam para os deveres. Nunca lhe perguntou porquê especificamente aquela casa. No fundo, ela sabia tratar-se de uma questão absurda. Era aquela, ponto final. Após os deveres cumpridos, regressavam ao lar, um apartamentozito, de duas exíguas assoalhadas, numa praceta onde o sol não queria entrar, com os sacos de compras a sucumbirem ao peso, talvez já estivessem rotos, acompanhados dos gritos das crianças, do ladrar do cão que os terá ouvido, e de facturas por pagar, a única correspondência nunca extraviada destes dias...


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