Terminada a refeição, levanta-se da imemorial mesa de
madeira, esvazia o resto escarlate do copo, limpa a boca com as costas da mão,
coloca a boina na cabeça, e sai para o quintal. Aí, observa o frenesim das aves
domésticas pelas sobras do almoço, que a mulher, numa paciência benévola,
distribuía. Olhou-a. Dos traços que demoravam o seu olhar, agora apenas
vestígios. Mas ainda assim, o seu olhar naquele rosto. Apercebia-se de que o
tempo esbatia a luz daquele olhar. No fundo, a de todos os olhares. Seria o tempo?
Ou as esquinas da vida? Pega na bicicleta, e grita-lhe do portão Vou andando, quando, em verdade, lhe
queria dizer outras coisas, com outras palavras… Quantas palavras ficam por
dizer na vida? E ele no portão, já em cima da bicicleta, e ela rodeada de asas
estridentes, ainda mais restos do almoço, e ele apenas queria dizer-lhe que sim, se fosse hoje voltaria a pronunciar
um sim diante do sacerdote, tudo, com
ela, valeu a pena. Pedala com a indolência de um início de tarde. A sua marcha
é ligeiramente oscilante. Será de levar a enxada pelo ombro? Será da idade?
Resquícios daquela estadia no hospital? E o calor a fazer-se sentir. Passa pelo
largo da igreja. O sino canta-lhe, agora, as horas, com a sua voz de séculos.
Quando o sino canta, a terra emudece. E como ele gosta daquela voz! De certa
forma, ecoa em si. Talvez por um anúncio de repouso. E ele num pedalar
obstinado, gotas de suor multiplicam-se-lhe na fronte. Segura o guiador com
maior afinco. E pedala, pedala, a respiração num crescente ofegante, nada ouve,
a não ser a crescente carência de oxigénio. Por fim, vê a sua terra. Encosta a
bicicleta a uma sebe. A enxada no ombro. Olha o céu. Tira do bolso um
amarrotado lenço, que aquieta um pouco a testa. Dá início à labuta. O tempo
passa, mas o calor não. O cabo da enxada já lhe é indiferente. Outrora
desenhou-lhe nas palmas das mãos uma geografia muito particular. Só quem há
mesa sente a leveza dos talheres, tem gravada em si esta indelével rota de
húmus e raízes (...)
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