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sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

A face demorada da tarde



Voltar lá? Nem pensar! Para quê? Acabou? Acabou! Uma página que se fecha. Uma página com mais de quarenta anos! Quando ali comecei a trabalhar, nem casada era, hoje, os meus filhos já divorciados são, nesse aspecto não defraudaram os pais… O quê? Não sabia que eu era divorciada? Pensei que soubesse… Não é uma coisa que se ande para aí a anunciar ou de que se vanglorie, uma história cansada, embora, claro, nunca esperamos que nos suceda, infelizmente bateu-me à porta, uma mulher mais nova, bem mais nova, ele, tolinho, em passos de cachorro tonto lá foi, sabe, creio que chega uma altura, na vida de um casal, mais nos homens, de facto, em que lamentam subterraneamente contemplar o rosto macilento do outro por ser um genuíno espelho do seu, daí a sedução por aragens frescas, não sei se me faço entender, como descobri? É tão simples! Às vezes interrogo-me como há tanta mulher que se deixa enganar, ou talvez prefiram olhar para o lado, creio que seja isso, basta reencontrar no rosto dele a expressão apatetada dos primeiros meses de namoro, o olhar sonhador que procura na distância o vestígio de um rosto, às vezes penso se essa fase não terá sido noutra existência ou se foi uma outra a vivê-la, porém os filhos atestam a sua veracidade, chegou a um ponto que nem procurava erigir desculpas, esperava, somente, pelo meu “adeus”, por dentro desmoronava-me, certa tarde, ouço a porta da rua abrir-se, creio que o ranger das dobradiças traduzia a estranheza pela hora, os seus passos ligeiros pelo entardecido interior da casa, não me recordo onde estava, tenho apenas ideia de também ali estar àquela hora por uma fortíssima dor de cabeça, quando, por fim, nos encarámos, ele baixou o olhar e eu optei por um virar costas, não houve recriminações, injúrias, impropérios, gritos, nada, ele só vinha buscar o que era seu: a vida que lhe restava, não podia impedi-lo, para quê insultar? Se por dentro ruía, optei por uma fachada de indiferença, lá seguiu o seu caminho, escolheu caminhar com um rosto matinal a seu lado, com todos os riscos daí inerentes, primeiro, e fatalmente ignorado, a manhã rapidamente transformar-se-á em tarde, segundo, o aspecto matinal não se restringe ao rosto, a distância entre actos e ideias ainda é difusa pela cegueira matinal da hora, mas esse problema já não me pertence, no mais, tenho de admitir que foi um cavalheiro, assumiu a responsabilidade por termos falhado a nossa caminhada, mais uma a engrandecer a já de si desmesurada estatística (a quem interessará tanto lar em cinzas? Pois, não é assim tão difícil descobrir…), manifestamente só queria a vida que lhe restava, jamais poderia impedi-lo, isso seria sempre pertença sua, tal como o inverso também, num repente dessa tarde, tenho-o tão nítido em mim, olho-me e estranho-me, como sempre sucede quando nos detemos em busca de um vestígio do pensar e sentir na nossa imagem, foi diante do cansado espelho, por cima da cómoda, que me foi legada a salvação do naufrágio generalizado, através de um conceito que se ergueu em mim da planta dos pés à alma: “a dignidade”! Pouco mais me restava, para além da convicção de que a manhã rapidamente transformar-se-á em tarde...

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